ANOTAÇÕES PARA UM DEBATE SOBRE MEMÓRIA, CINEMA E PSICANÁLISE

por Jorge Furtado
26/04/2006

Participação em debate durante o curso de extensão universitária “Cinema e Psicanálise”, na PUC/RS, depois da exibição do filme “Toda a memória do mundo” (22 minutos, 1956), direção de Alain Resnais. Também participaram da mesa a psicanalista Nina Rosa Furtado e o doutor Ângelo Antonello.

Eu nunca participei de um seminário sobre cinema e dermatologia. Não sei se já houve algum, acho que poderia ser muito interessante. Tenho quatro sugestões de filmes sobre o tema. Meu caro diário, de Nanni Moretti, um longa com três episódios, todos muito bons. O terceiro episódio, meu preferido, é um documentário sobre uma coceira, resultado de uma rara doença de pele contraída pelo próprio Moretti, que é o diretor, roteirista e ator do filme. O Livro de Cabeceira, de Peter Greenaway, um belíssimo romance erótico que explora as relações entre a beleza do corpo, da pele e da palavra escrita. O Silêncio dos Inocentes, de Jonathan Demme, um suspense aterrorizante onde um serial killer constrói um vestido com retalhos da pele de garotas. Entrevista, de Federico Fellini, onde o protagonista é um jovem repórter em visita a Cinecittá, bastante nervoso por ter uma espinha no nariz justo no dia em que vai entrevistar uma grande diva do cinema italiano.

Imagino que dermatologistas possam achar bizarra minha idéia de um ciclo de cinema, afinal eles estudam a pele com a intenção de mantê-la saudável e não de admirá-la como objeto estético, erótico, dramático ou cômico. Imagino e, preventivamente, discordo. Médico ou paciente, quem quer a saúde da pele busca, entre tantos desejos possíveis, evitar constrangimentos como os provocados pela espinha do jovem Fellini, acabar com a agonia da coceira sentida por Moretti, ou busca ainda o prazer sensual ou estético, como os personagens de Greenaway. Tudo o que puder ajudar os dermatologistas a entender melhor a pele, mal não faz.

Eu já participei de muitos encontros sobre cinema e psicanálise. Imagino que o motivo de tantos debates sobre as relações entre atividades tão distintas seja óbvio para todos os presentes: o cinema, uma arte industrial criada por fotógrafos franceses, e a psicanálise, uma teoria da alma ou método terapêutico criado por um neurologista austríaco, nasceram praticamente juntos e têm em comum o interesse pelo funcionamento da mente humana.

Antes de avançar no assunto, uma advertência. Debates sobre cinema e psicanálise freqüentemente enveredam pela psicanálise dos personagens, o que me parece atividade tautológica, algo como tentar fazer batatas a partir de purê de batatas. Quando vejo alguém tentando descobrir as motivações de um personagem num filme, alguém se perguntar, por exemplo, depois de ver Psicose, “por que Norman Bates esfaqueou a mocinha no chuveiro?” a única resposta que me ocorre é que ele agiu assim porque o diretor mandou e isso estava escrito no roteiro.

Norman Bates é um personagem, não tem motivações fora do filme. Talvez ele até possa ser considerado um amálgama das neuroses de Alfred Hitchcock, que dirigiu o filme, Robert Bloch, autor do livro, Joseph Stefano, que escreveu o roteiro, e Anthony Perkins, que interpretou o papel. A “psicanálise dos personagens” seria então uma espécie de psicoterapia de grupo zipado, uma tarefa ingrata.

Menos estranha, mas igualmente inútil, me parece a psicanálise do autor do filme. Menos estranha porque o autor, ao contrário do personagem, tem existência real, fora do filme: teve uma infância, uma adolescência, coceiras e espinhas. Igualmente inútil porque, se o procedimento tem resultados precários com obras individuais e inteiramente autorais como os romances, pinturas ou músicas, torna-se um tanto ridículo quando o assunto é cinema, sempre um trabalho de equipe, com muitos autores. Talvez a psicanálise do autor possa ter algum sentido se tiver como alvo o conjunto da obra de alguns cineastas em cujos filmes uma maneira de ver o mundo e o cinema muito claramente se impõe, basta pensar em Fellini, Buñuel, Woody Allen ou Almodóvar. Mas o procedimento volta a ser falho se pensarmos em Billy Wilder, Kubrick, Scorsese ou Michael Curtiz, grandes cineastas com obra tão diversificada que correriam o risco de serem diagnosticados como esquizofrênicos.

A obra artística - e o cinema eventualmente se inclui nesta categoria - já foi definida como um “sonho compartilhado”. A definição é boa, produzir obras artísticas parece ser a única maneira aceitável de compartilhar sonhos. Não tenho interesse algum em ouvir descrições de sonhos alheios e não suporto cenas de sonhos em filmes, acho que deveriam ser proibidas, como o uso da lente zoom e da grande angular. Tenho parceiros ilustres na minha aversão aos sonhos como narrativa dramática. Freud uma vez recusou-se, através de uma carta, a participar da antologia de sonhos organizada por André Breton, líder do movimento surrealista, afirmando que “uma simples coletânea de sonhos sem as associações do sonhador, sem o conhecimento das circunstâncias em que eles ocorreram, não me diz nada, e mal consigo imaginar o que possa dizer aos outros”.

Em sua palestra à sociedade psicanalítica britânica em 1953, publicado com o título a “A Psicanálise e a História da Arte”, o crítico Ernst Hans Gombrich lembra que se a obra de arte tem mesmo o caráter de um sonho compartilhado, faz-se urgente especificar com mais clareza o que é que se compartilha.

Gombrich se propõe a colocar o problema “de forma tão concreta quanto possível” usando como exemplo uma obra muito conhecida, a Pomba da Paz, de Picasso, um desenho feito com sete linhas.

“Mostro aos senhores aqui uma das obras mais populares de Picasso, a sua chamada Pomba da Paz. A pomba constitui antigo símbolo convencional da paz, e deve este significado à certeza de que é uma ave muito mansa. É possível que seja importante o fato de que na verdade as pombas e os pombos são, na maioria das vezes, selvagemente agressivos. Talvez, então, o psicanalista queira ir além deste sentido superficial. Ele indagará que outras qualidades devem ter contribuído para o sucesso da pomba como símbolo. Ernest Jones chamou a atenção, num contexto um pouco diferente, para as qualidades que a levam a servir de símbolo fálico. Este sentido está realmente presente para reforçar o apelo do desenho enquanto desenho, mas isso seria também verdadeiro se qualquer amador, e não Picasso, o tivesse feito.”

“O pai de Picasso, Don Pepe Ruiz, que era um artista e curador do museu local de Majorca, costumava pintar quadros de pombais. Para pintar esses quadros Don Pepe usava pombos empalhados que ele levava para o escritório e trazia de volta para casa. (…) Picasso lembra-se de ter ficado paralisado de medo quando uma vez foi deixado sozinho na escola, conta como costumava grudar-se ao pai e como mantinha como reféns sua bengala, seus pincéis e, sobretudo, seus pombos empalhados, para ter certeza de que o pai voltaria para buscá-lo.”

“Diante de uma platéia como esta, dificilmente preciso estender-me sobre o significado simbólico de todos estes implementos sobre o pai. Tampouco, suponho, os senhores iriam considerar forçado imaginar que este medo desvairado de perder o pai revela um evidente desejo edipiano. Não é de espantar muito, os senhores podem dizer, o fato de o rapaz ter feito grande empenho em ajudar o pai e pintar pombos, ter posto, num jornal infantil, um anúncio onde procurava estas aves e, com seus desenhos de pombos, ter sobressaído como criança-prodígio e ter ganho um prêmio por exercícios acadêmicos quando tinha doze anos. Menos espantoso ainda é que seja este mesmo rapaz que, depois de adulto, tenha retirado de sua assinatura o nome Ruiz, de seu pai, e tenha passado a usar Picasso, nome de família de sua mãe, e tenha se esforçado para extinguir todos os padrões acadêmicos de seu pai não só em si mesmo como também no mundo inteiro. Até agora a história parece bastante clara. Mas a questão estética continua sem resposta. Será que este sentido de caráter privado brilha realmente na obra? Será que os senhores poderiam suspeitar disso a partir desse desenho? Francamente, eu duvido. Embora o pombo estivesse para Picasso carregado e sobrecarregado de significado e memória, embora ele pudesse não ter aproveitado - mas o fez - a oportunidade de desenhar um pombo, como seu pai o fez tantas vezes, mas um que pudesse voar sobre a metade do mundo, não percebo nenhum indício de que esse significado e essa memória reverbera na obra”.

Se não estamos aqui para analisar os personagens nem os autores de um filme, o que nos resta é examinar as pontes entre o funcionamento da mente humana, sua memória e consciência, e o funcionamento dos filmes. Nesta psicanálise do filme também me proponho a repartir com vocês minhas dúvidas sobre de que maneira a memória, pessoal e coletiva, “reverbera na obra”, mantendo em vista o ensinamento de Borges: “a arte é sempre uma ficção”. O jovem repórter de Entrevista é alter ego assumido de Fellini, que aparece no filme, conta parte da história e diz que tudo aconteceu realmente com ele. Pode ser tudo mentira, mas a nós, espectadores, isso pouco importa. Talvez importasse ao psicanalista de Fellini, se ele tivesse tido um.

A memória é o tema central da obra do cineasta francês Alain Resnais. Seus longas mais importantes, O Ano passado em Mariembad, Hiroshima, Meu Amor, Meu Tio na América e os curtas Noite e Nevoeiro e Toda a memória do mundo, não só têm a memória como tema explícito mas parecem ser ainda transposições para a linguagem do cinema, brilhantemente bem sucedidas, dos procedimentos mentais de organização da memória, tanto pessoal quanto coletiva. Resnais se utiliza com maestria dos movimentos de câmera, dando-lhes sentido poético. Foi a partir da análise dos seus filmes que o crítico Luc Moullet escreveu a frase imediatamente adotada no Brasil pelo Cinema Novo: “o traveling é uma questão moral”. A rigorosa utilização da palavra, a repetição e o ritmo, aproximam o cinema de Resnais da poesia, uma poesia de imagem e som. O crítico Helio Nascimento sintetiza com perfeição: “a arte de Resnais torna a palavra um elemento cinematográfico, sem que resulte desta opção um cinema literário. Resnais descobriu que a palavra poderia ter um outro papel, bem mais importante do que aquele até então a ela reservado. Um papel semelhante à composição de um plano.”

Nossa psicanálise do filme Toda a memória do mundo poderia perceber a grandiloqüência do tema musical e a escuridão dos planos iniciais, uma câmera que flutua nas trevas. Nossos olhos buscam referências na escuridão, formas indefinidas, pequenos pontos de brilho que se afastam, até o momento em que um refletor de cinema acende e nos lembra que luz demais pode nos deixar tão cegos quanto luz de menos. A breve cegueira provocada pela luz excessiva do refletor serve de ponto de corte para um novo movimento da câmera, que agora se afasta da luz de um refletor que se apaga. A câmera de Resnais busca a luz e, quando a encontra, ela lhe remete imediatamente a outra luz, que logo se perde na escuridão. “Como têm a memória curta, os homens acumulam inúmeros lembretes”, nos diz o filme. O personagem principal e o tema nos são apresentados: os homens e sua memória. O emaranhado de canos, ferros e escadarias da Biblioteca de Paris, uma “fortaleza de memória” em forma de livros, é então percorrido como um organismo vivo, em constante atividade e crescimento.

Poderíamos seguir nesta “psicanálise do filme”, plano a plano, buscando sentidos em cada novo enquadramento, cada frase, cada acorde da trilha, até sua mensagem final, a memória plena como forma de felicidade, o paraíso borgiano de uma biblioteca infinita. Tal procedimento me parece uma brincadeira ingênua, o bom filme é sempre auto-explicável. Georges Sadoul, escrevendo a respeito de Resnais, lembra que seus filmes falam ao coração, “sem que se tenha a necessidade de compreender sua mensagem em detalhes”.

Será que podemos entender o funcionamento da mente usando coração? Não parece razoável. Mas também não é razoável imaginar que a mente humana seria capaz de entender com perfeição o funcionamento da mente humana. A fé absoluta na objetividade da ciência é uma das mais estranhas formas do misticismo. Artistas, poetas, psicanalistas, filósofos, neurologistas, cineastas, escritores, lingüistas e toda sorte de exploradores que se aventuram a desbravar o cipoal da mente, vez ou outra vislumbram algum horizonte, eventualmente descobrem clareiras e espécimes raras, mas é certo que imensa parte deste território continua desconhecido. Isso sem falar no fato de que, com o tempo, espécimes raras surgem e se extinguem, o que também costuma acontecer com as clareiras.

O pouco que sabemos sobre o funcionamento da mente já estabelece muitas pontes com o funcionamento do cinema. Sabemos, por exemplo, que o cérebro só consegue distinguir uma imagem a cada 1/15 de segundo, aproximadamente. Quando recebe mais de 15 imagens por segundo, o cérebro começa a misturá-las. É disso, a ilusão de movimento que o cérebro inventa entre a percepção de duas imagens estáticas, chamado de fenômeno Phi, que o cinema vive. Sabemos disso faz tempo, parece que desde o antigo Egito, mas em 1824 o médico inglês Peter Market Roget escreveu um artigo intitulado “Persistência de Visão Referente a Imagens em Movimento”. Girando uma moeda ele percebeu que podia ver, ao mesmo tempo, os seus dois lados. Vários inventores empregaram a descoberta em brinquedos, com desenhos: zootróprio, fenaquistoscópio, fantoscópio. Com a invenção e o desenvolvimento da fotografia foi possível chegar às “imagens moventes do mundo natural”, que hoje chamamos de cinema.

Se sabemos pouco sobre o funcionamento da mente, sabemos menos ainda sobre o seu produto, a consciência, “o padrão mental unificado que reúne o objeto e o self”, a definição é de um neurologista, António Damásio. Talvez haja neurologistas presentes e um debate sobre cinema e neurologia também pode ser muito interessante. Mas aqui, o assunto é cinema e psicanálise, e isto nos afasta do mundo sem crises das máquinas de filmar, das conexões químicas e neurológicas, e nos move na direção do mundo informe das narrativas, abstrações construídas de memória, observação e linguagem.

Para António Damásio, “os filmes são a representação exterior mais próxima da narrativa dominante que ocorre em nossa mente. O que acontece em cada plano, o enquadramento diferente de um assunto que o movimento da câmera pode mostrar, o que se passa na transição de planos, produto da edição, e o que ocorre na narrativa construída por uma específica justaposição de planos é comparável, em alguns aspectos, ao que está se passando na mente, graças ao mecanismo incumbido de produzir imagens visuais e auditivas e aos numerosos níveis de atenção e de memória operacional.”

“A narrativa sem palavras é natural. A representação imagética de seqüências de eventos cerebrais, que ocorre em cérebros mais simples do que o nosso, é o material de que são feitas as histórias. Uma ocorrência natural de narrativa pré-verbal pode muito bem ser a razão pela qual acabamos por criar a arte dramática e finalmente os livros, o que hoje leva boa parte da humanidade a passar tanto tempo de suas vidas diante das telas de tevê e do cinema.”

“Contar histórias, no sentido de registrar o que acontece na forma de mapas cerebrais, é provavelmente uma obsessão do cérebro e talvez tenha início relativamente cedo, no que concerne tanto ao processo evolutivo como à complexidade das estruturas neurais necessárias para criar narrativas. Contar histórias precede a linguagem, pois é, na verdade, uma condição para a linguagem”.

Acredito que para nós, cineastas e psicanalistas, a mente tem interesse comum principalmente pela sua capacidade de contar histórias. Noam Chomsky acha “muito provável que sempre possamos apreender mais sobre a vida e a personalidade humanas no romance do que na psicologia científica”. A razão disto, segundo David Lodge, é que a ciência trata de “formular leis gerais que expliquem tudo, que sejam de aplicação universal, que já estavam em funcionamento antes que a descobríssemos, e que cedo ou tarde a descobriríamos. As obras literárias descrevem, por traz do disfarce da ficção, a densa especificidade da experiência pessoal, que sempre é única, porque cada um de nós possui uma história pessoal ligeira ou marcadamente distinta, que modifica todas as novas experiências que tenhamos”. (…) “A ciência, ao contrário, é um discurso na terceira pessoa. O pronome da primeira pessoa do singular não é usado em textos científicos”.

É importante assinalar que Noam Chomsky e David Lodge se referem aos “romances” e às obras literárias ficcionais, mas não é bom esquecer os livros e filmes de não-ficção onde a primeira pessoa do singular não só pode estar presente como é, em muitos casos, o assunto principal da obra, tradição iniciada pelo gênio de Michel de Montaigne. Cito um trecho do capítulo 2 do segundo livro dos seus Ensaios:

“Os outros formam o homem, eu relato a seu respeito e represento um em particular, bastante mal formado: eu mesmo. (…) Não posso fixar o meu objeto; ele vai, confuso e titubeante, com uma ebriedade natural. Pego-o em qualquer lugar, como está, no instante em que com ele me divirto; não descrevo o ser, descrevo a passagem. Ninguém tratou de um assunto do qual entendesse ou o qual conhecesse melhor do que faço. (…) Descrevo uma vida baixa e sem brilho: dá na mesma; é possível achar toda a filosofia moral numa vida popular e privada tanto quanto numa vida feita de matéria mais rica: cada homem leva em si a forma inteira da condição humana.”

Em seu extraordinário ensaio sobre a consciência e o romance, David Lodge lembra que “num mundo onde não há certezas inapeláveis, onde a crença transcendental foi soterrada pelo materialismo científico, onde mesmo a objetividade da ciência se encontra sob suspeita diante da relatividade e da incerteza, a voz humana singular que conta sua própria história é a única que pode aspirar a ser o modo autêntico de registrar a consciência”.

Esta aspiração, é claro, nem sempre é cumprida. O autor que narra a si mesmo, tradição iniciada por Montaigne, virou uma espécie de praga moderna, o “eumesmismo”. O eumesmismo grassa como macega brava em blogs, diários íntimos, colunas de jornais, revistas e até mesmo livros, frutos de egos tão impregnados de si mesmo que crêem ser urgente comunicar ao mundo suas descobertas matinais, suas desilusões amorosas, seus sonhos, suas opiniões sobre filmes e livros e suas receitas de molho de lazanha. “Eu, por exemplo”, eles dizem, certos de que encontrarão leitores com vidas tão vazias a ponto de ouvi-los. Como ensina o poeta Manoel de Barros, “coisa que não acaba no mundo é gente besta e pau seco”.

Se é verdade que a narrativa por imagens é natural, também é verdade que a palavra representa com maior exatidão a complexidade do pensamento humano e uma linguagem composta só por imagens seria bastante limitada. A primeira destas limitações é lembrada por Sol Worth em seu ensaio “Pictures Can’t Say Ain’t” (Uma imagem não pode dizer “eu não sou”). A imagem não pode afirmar a inexistência da coisa representada, mesmo que René Magritte brinque com esta impossibilidade ao desenhar um cachimbo e sob esta imagem escrever “isto não é um cachimbo”. Para afirmar uma negação, Magritte precisou usar palavras.

Outro problema é que a imagem pode expressar simultaneamente muitos sentidos, como observa Nelson Goodman: “a pintura de um homem pode significar um exemplar da espécie humana, ou designar uma certa pessoa com uma certa fisionomia, ou ainda especificar que uma certa pessoa, em dado contexto e em dado momento, está vestida de um certo modo, e assim por diante”. Lembro de uma sátira da revista Mad aos filmes “de arte”, onde um repórter entrevista um diretor no set de filmagem. O diretor explica ao repórter o que significa cada um dos personagens de uma cena: a mulher de roxo representa a luxúria, o homem de negro representa a morte. “E este homem de branco?”, pergunta o repórter. O diretor responde: “É o sorveteiro. Você quer de creme ou de chocolate?”

Em seu livro “Em busca da língua perfeita” Umberto Eco analisa as limitações de uma linguagem visual a partir de uma história exemplar. Em 1984 a Comissão Americana de Regulamentos Nucleares fez uma encomenda ao semiótico húngaro Thomas Sebeok. “O Governo Americano escolhera algumas zonas desérticas dos Estados Unidos para enterrar, a centenas de metros de profundidade, detritos nucleares. O problema não era tanto o de proteger a zona de intrusões imprudentes nos dias de hoje, mas sim o resultante do fato dos detritos permanecerem radioativos durante dez mil anos. Ora, sabemos que grandes impérios e civilizações florescentes se afundaram em prazos muito menores, sabemos que alguns séculos depois do desaparecimento dos últimos faraós os hieróglifos se tornaram incompreensíveis, e sabemos que é possível que, dentro de dez mil anos, a Terra tenha sofrido alterações de modo a deixarem-na habitada apenas por populações regressadas a um estado de barbárie, ou que seja visitada por visitantes de outros planetas. Como informar estes visitantes “extraterrestres” das zonas perigosas?”

“Sebeok excluiu imediatamente qualquer forma de comunicação verbal, os sinais elétricos que exigiriam um fornecimento constante de energia, as mensagens olfativas porque são de pouca duração, e toda e qualquer variedade de ideograma que só se possa compreender na base de convenções precisas. Mas as linguagens pictográficas dão lugar igualmente a dúvidas sérias. Ainda que sustentássemos que qualquer povo é capaz de compreender certas configurações fundamentais (figura humana, figuras animais esquematizadas, etc.), Sebeok argumenta que há imagens a partir das quais é impossível dizer se os indivíduos nelas representados estão lutando, dançando, caçando ou se dedicando a outra atividade qualquer.”

“Uma solução seria estabelecer segmentos temporais de três gerações cada um (supondo-se que em nenhuma civilização a língua se altera demasiado sensivelmente entre avô e neto) e fornecer instruções assegurando que ao fim desse período as mensagens serão reformuladas tendo em atenção as convenções semióticas do momento. Mas esta solução pressupõe justamente a continuidade social e territorial que o problema levantado punha em questão. Outra solução seria multiplicar nas zonas perigosas mensagens de todo tipo, em todas as línguas e sistemas semióticos, jogando com a possibilidade estatística de, pelo menos um dos sistemas adotados continuar a ser compreensível para os futuros visitantes; ainda que um só segmento de uma só mensagem permanecesse decifrável, a redundância do conjunto representaria para esses visitantes futuros uma espécie de Pedra de Roseta. Também essa solução pressupõe, no entanto, uma certa, ainda que exígua, continuidade cultural.”

“Restaria portanto, apenas a solução de instituir uma espécie de casta sacerdotal, formada por cientistas nucleares, antropólogos, lingüistas, psicólogos, que se perpetuasse por cooptação ao longo dos séculos, mantendo viva a consciência do perigo, e criando, em torno deste mito, lendas e superstições. Os membros desta casta, com o tempo, sentir-se-iam vinculados a transmitir qualquer coisa cuja noção exata teriam perdido, pelo que, no futuro, ainda que a sociedade humana voltasse à barbárie, os tabus poderiam, imprecisos mas eficazes, contar com uma sobrevivência mais ou menos obscura.”

Umberto Eco conclui:

“É curioso que, tratando-se de escolher entre várias línguas possíveis, a última solução seja do tipo “narrativo” e retome o que de fato aconteceu nos milênios passados. Desaparecidos os Egípcios, desaparecidos os detentores de uma língua primordial, perfeita e sagrada, o mito desta última perpetuou-se, texto sem código, ou cujo código se perdeu, mas capaz de manter desperto o nosso esforço desesperado de decifração”.

No Brasil, nossa desatenta nobreza acadêmica e nossa irresistível vocação para a comédia produziram um caso que põe em xeque a proposta de Sebeok, alertando para a eventual songamonguice das futuras gerações. Os engenheiros que construíram a primeira usina nuclear em Angra dos Reis enfrentaram sérios problemas: as fundações de concreto cediam, rachavam, moviam-se, pareciam incapazes de assentar nas rochas. Descobriu-se então que o lugar escolhido para a construção era conhecido pelas populações indígenas locais com o nome de Itaoca, em Tupi Guarani, “pedra podre”. Parece que o pessoal da tribo, bem antes da chegada de Cabral, entre um banho de mar e outro, comentava que aquele era um péssimo lugar para se construir uma usina nuclear.

É preciso, portanto, para construir um futuro apoiado na memória do passado ou, pelo menos, para evitar lixo atômico, estar atento aos mitos, que se preservam em forma de histórias que, por sua vez, vivem na língua.

Nossas línguas, lendas, mitos e tabus, nossas histórias, livros e filmes, capazes de serem entendidos com o coração, capazes de manter desperto o nosso esforço desesperado de decifração, imprecisos mas eficazes, são as formas mais duradouras de perpetuar a memória da raça humana.

Para terminar, e só para não dizer que não falei de Shakespeare, o maior de todos os contadores de histórias, volto às considerações de Antonio Damásio sobre a consciência: “É fascinante pensar que os primeiros cérebros que produziram a história da consciência estavam respondendo a perguntas que nenhum ser vivo ainda formulara: quem está produzindo essas imagens que estão acontecendo? Quem possui estas imagens? “Who’s there?”, “Quem está aí?”, como na instigante fala inicial de Hamlet, uma peça que é a síntese extraordinariamente eloqüente da perplexidade do ser humano com as origens de sua condição”.

(C) Jorge Furtado
abril de 2006


Filme:

Toda a memória do mundo (Tout la memoire du monde). Direção de Alain Resnais; texto de Remo Forlani; música original de Maurice Jarre; fotografia de Ghislain Cloquet; produção de Pierre Braunberger. França, p/b, 22 minutos, 1956.

Bibliografia:

BOORSTIN, Daniel J. O nariz de Cleópatra: ensaios sobre o inesperado. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1996.

DAMÁSIO, Antônio. O mistério da consciência. São Paulo, Companhia das Letras, 2000.

DAMÁSIO, Antônio. Em busca de Espinosa. São Paulo, Companhia das Letras, 2004.

ECO, Umberto. A Procura da língua perfeita. Lisboa, Editorial Presença, 1996.

GOMBRICH, Ernst Hans. Meditações sobre um cavalinho de pau e outros ensaios sobre a teoria da arte. São Paulo, Editora da USP, 1999.

LODGE, David. La conciencia y la novela. Barcelona, Ediciones Península, 2004.

MONTAIGNE, Michel de. Os ensaios, livro II. São Paulo, Martins Fontes, 2000.

NASCIMENTO, Hélio. O reino da imagem. Porto Alegre, Secretaria Municipal de Cultura, 2002.