por Giba Assis Brasil
(abril de 1990)
PRIMEIRA SEQÜÊNCIA, CENA UM (1)
Auditório do Hotel Serrano, 24 de março de 1981. Naquela tarde de terça-feira, pela primeira vez em cinco anos de Festival Super-8 de Gramado, seria exibido um longa-metragem. Ainda por cima, gaúcho. Na sala, o público normal da mostra (realizadores da bitola, amigos, parentes), mais um grupo de curiosos, que estavam em Gramado para assitir ao festival “de verdade”, mas que foram atraídos pelo folheto distribuído desde o dia anterior, e ainda um ou outro profissional (o diretor Romain Lesage, a produtora Marisa Leão, o ator Walmor Chagas). Expectativa, nervosismo dos realizadores durante as quase duas horas de projeção.
Mas o filme agradou, e mais do que isso: surpreendeu. Foi comentado e elogiado durante quatro dias, chegou a roubar espaço na imprensa dos filmes “quentes” (Eu te amo, O Homem que virou suco, Cabaret mineiro). No sábado, ao receber o prêmio de Melhor Filme, foi reprisado com a sala superlotada, estrelas do Rio e São Paulo sentadas no chão. Abriu um caminho, formou uma equipe, lançou uma idéia: nos dois anos seguintes, outros dois longas gaúchos em super-8 ganharam o Festival. Inventou um mercado: foi exibido em salas alternativas para mais de 20 mil pessoas. Fechou uma era: Deu pra ti, anos 70.
ÚLTIMA CENA (2)
Zoo-Palast, 14 de fevereiro de 1990. No Festival de Cinema de Berlim, um dos três ou quatro mais importantes do mundo, o curta-metragem é tratado com seriedade, mas dificilmente vira atração. A organização do Festival não entende muito bem por que um curta de 13 minutos realizado no Brasil, numa cidade chamada Porto Alegre, tem lá uma delegação de quatro pessoas, que pagaram do próprio bolso suas passagens e estadias. Durante a projeção, o apresentador do Festival, preocupado com as vaias dadas a alguns filmes, avisa a equipe que ela não precisará subir ao palco se a reação do público não for boa. Quatro gaúchos se olham assustados. Sabiam que seria absurdo esperar uma receptividade como a que o filme teve em Gramado, sete meses antes: mais de cinco minutos de aplausos emocionados, oito Kikitos. Mas só agora começam a temer a reação dos alemães.
Bobagem. Num festival que teve a estréia internacional de filmes de Costa-Gavras, Volker Schloendorf, Woody Allen, Jiri Menzel, Cacá Diegues, Jim Jarmusch e muitos outros, o curta gaúcho foi sem dúvida um dos mais aplaudidos. Seis dias depois, quando foi anunciada a premiação, o Urso de Prata para curta-metragem não foi surpresa para ninguém: Ilha das Flores.
OUTRAS CENAS
Antes que me acusem de qualquer coisa. O cinema gaúcho dos anos 80 não acha que nasceu do nada, por geração espontânea. Pelo contrário, sabe-se filho do Festival de Gramado e do Grupo de Cinema Humberto Mauro, do super-8 e da TVE, das sessões do Vogue e do Bristol, do Ponto de Cinema e da Sala Paulo Amorim. Estruturou-se como classe com a criação da Associação Profissional dos Técnicos Cinematográficos, APTC/RS (1985). Não é só um grupo ou apenas uma geração. Deve muito aos pioneiros do cinema no estado e à ousadia de seus seguidores. Não existiria sem a convivência com os companheiros que começaram nas décadas anteriores e que, evidentemente, também são cinema gaúcho dos anos 80.
Do meu ponto de vista, a delimitação do assunto a estes dois momentos (início e fim de uma década) diz respeito, é claro, ao fato de eu ter estado diretamente envolvido nos dois (co-roteirista e co-diretor no primeiro, produtor e montador no segundo). Mas deriva também de uma impressão histórica concreta, mesmo que prematura. DEU PRA TI ANOS 70, embora se propusesse (até no título) a ser o inventário de uma década passada, foi muito mais o marco de um novo caminho, filme multiplicador a mostrar a quem interessasse que era possível fazer. Já ILHA DAS FLORES, com sua fusão absolutamente nova de ficção e documentário, funciona para nós, principalmente em função do prêmio recebido em Berlim, como fita de chegada, ponto final, parada para rediscutir o futuro.
Nos anos 80, fizemos muitos filmes, ganhamos alguns prêmios, testamos várias propostas de produção, formamos profissionais em algumas áreas. Mostramos a viabilidade do cinema gaúcho. Primeiro, inventamos um mercado em super-8. Quando a bitola se tornou insuficiente, provamos que podíamos fazer longas em 35mm. Quando o mercado de longas se mostrou hostil, ajudamos a renovar a dramaturgia do curta-metragem brasileiro. Nunca neste país uma geração de cineastas insistiu durante tanto tempo na criação de uma cinematografia regional.
Terminamos a década sem qualquer esboço de uma proposta estética globalizante. O que é ótimo. Absurdo querer que o estilo de interpretação dos atores ou a estrutura temporal de VERDES ANOS se adapte a uma parábola sobre a violência como ADIóS GENERAL ou a um filme de estrada como O MENTIROSO. Que bom que a loucura passional do VICIOUS seja diametralmente oposta à da DIVINA PELOTENSE, ou que o herói de INVERNO use o frio como justificativa para o seu conformismo, enquanto o preso de O DIA EM QUE DORIVAL ENCAROU A GUARDA se rebele inclusive contra o calor.
Para os anos 90, há ainda muito a criar. Aprofundar a relação dos filmes com o mercado tradicional, rediscutir e exigir o cumprimento da lei do curta. Investir em infraestrutura, consolidar o apoio governamental à produção de curtas (o qual já rendeu cinco filmes que estarão em Gramado este ano), batalhar mecanismos de investimento para os longas. Descobrir novos públicos, discutir mais os filmes, abrir espaços na imprensa para esta discussão.
Mas que nem os mecanismos de mercado nem as discussões estéticas sejam critérios normalizadores: a riqueza do nosso cinema está na sua variedade.
(C) Giba Assis Brasil
publicado no jornal TRINTA DIAS DE CULTURA, abril de 1990
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NOTAS:
(1) Título de um curta-metragem de Antônio Carlos Textor, que em 1980 refletia as dificuldades de fazer cinema no Rio Grande do Sul. Profético.
(2) Jornal de cinema que circulou em Porto Alegre de junho de 1986 a dezembro de 1988, divulgando os filmes em cartaz e pensando a produção local. Deixou saudade.