Jorge Furtado
(março de 2001)
publicado originalmente no Não 74
Num meio-dia de fim de primavera Fernando Pessoa teve “um sonho como uma fotografia”. Até o século dezenove sonhava-se como pintura. A fotografia tornou-se a mais convincente representação da realidade. Muita gente disse, cedo demais, que a pintura não lhe iria sobreviver. A aparente neutralidade da máquina e a perfeita representação visual de uma fração de segundo estabeleceram os novos padrões da ilusão. Até surgir o cinema.
Muita gente disse, cedo demais, que o século vinte foi o século do cinema. Ainda hoje podemos imaginar o espanto provocado pelas imagens em movimento. O Jornal do Comércio de 9 de julho de 1896 registra com assombro a primeira projeção de cinema no Rio de Janeiro, com sua imagens “nítidas, firmes, acusando-se em um relevo extraordinário, dando magnífica impressão de vida real. O espetáculo é curioso e merece ser visto”. Todo mundo foi ver e era ver para crer. Mudando todos os costumes, exportando idéias e padrões de consumo, o cinema reinou absoluto na primeira metade do século. Até surgir a televisão.
Muita gente disse, sempre cedo demais, que a televisão terminaria com o cinema. Como competir com o caleidoscópio de imagens que invadia todas as casas? A televisão se apoderou da linguagem audiovisual, com sua “magnífica impressão de vida real” e, melhor, ao vivo! A televisão transformou o espectador em testemunha.
A pintura sobreviveu, não como escrava do real mas quase como seu oposto. O ponto de vista único do artista, representado em forma e cor, continua surpreendendo seis séculos depois de Giotto. A fotografia sobreviveu ao cinema, e o cinema à televisão. As formas que o homem inventa para criar ilusão, para compartilhar suas visões de mundo, seus medos e desejos, se transformam e se aglutinam. Procriam, mas não se desinventam. Na arte, que é tudo que a natureza não é, também nada se perde.
Muita gente ainda fala, tarde demais, das diferenças entre a linguagem cinematográfica e televisiva. São a mesma linguagem, com os mesmos signos, a mesma força da fotografia, a mesma ilusão de volume provocada pelas imagens que se movem em planos sobrepostos, música, palavras, luz e movimento. A diferença não está na linguagem em que se constrói a narrativa no cinema ou na televisão e sim na maneira como uma e outra são apreendidas. A diferença não é como se faz mas sim como se vê. Uma sala iluminada apenas pelas imagens que por algum tempo numa grande tela se movimentam, sem que sobre elas tenhamos qualquer controle, é cinema. Uma pequena tela se esforçando para chamar atenção o tempo que for possível, sempre e enquanto nós deixarmos, é televisão.
É natural que a diferença de atenção do público de cinema e de televisão provoquem diferentes usos da mesma linguagem. O cinema, como disse Jean Claude Carriére, “ama o silêncio”. A sensação de ver, numa grande tela, no escuro, é mais que suficiente para causar encantamento. A televisão odeia o silêncio. A imagem na televisão precisa constantemente da muleta do som e quase sempre da palavra. Não basta mostrar a faca, é preciso dizer, “Olhe, uma faca! Aqui! Na mesinha da sala, ao lado do vaso, está vendo? É uma faca! Não mude de canal! Não desligue, por favor!” A televisão não cala a boca. O cinema é um pescador, joga sua isca no meio do lago e espera pacientemente que a vítima deixe o seu refúgio entre os juncos, estacione o carro e compre ingressos. A televisão vai a caça, busca o tatu na toca enfiando-lhe o dedo onde for preciso.
Desde o momento em que alguém tem a idéia para um filme até que você o veja na tela de um cinema passam-se muitos anos. Tudo que chega ao filme foi visto muitas vezes por muitas pessoas. Você vê um filme sabendo que nada está ali por acaso. Na televisão tudo pode acontecer. Mesmo um filme na televisão pode ser interrompido a qualquer momento pela queda de um ministro ou de um avião. Televisão é sempre ao vivo.
Tem gente dizendo, cedo demais, que o século vinte um será da internet. A estréia é boa: a internet trouxe o texto de volta ao dia-a-dia de milhões de pessoas e só isso já é mais que suficiente para que seja recebida com vivas e tapinhas nas costas. Os e-mails anunciam uma nova era epistolar e quem quiser diz o que quer a quem quiser ouvir. Na internet a tela também é câmera.
Sentindo escapar do seu controle os meios de produção de imagens e informações, os doninhos de sempre se apoderam cada vez mais da mídia. Você pode até clicar suas imagens por aí mas só consegue mostrar para muita gente pagando pedágio para o distribuidor do filme/livro/programa de tv/site. Os donos da mídia estão cada vez mais no poder. Mas o século ainda nem começou. A luta continua.