por Jorge Furtado
05/05/2003
“Faça como o velho marinheiro,
que durante o nevoeiro,
leva o barco devagar”.
(Paulinho da Viola)
Na última semana um debate inflamado tomou conta da classe cinematográfica brasileira por conta das novas orientações das estatais no financiamento aos projetos de culturais, tornados públicos através dos sites da Eletrobras e de Furnas (1). A primeira e mais forte reação pública foi de Cacá Diegues em entrevista a O Globo em 3/5/03 (2). A segunda reação, e também contundente, foi de Hector Babenco, em matéria publicada em Carta Capital de 7/5/03, nas bancas (3). A polêmica continua hoje em matérias publicadas em O Globo e no Estado de São Paulo (4). Muitos artistas e intelectuais apoiaram a manifestação de Cacá contra o “dirigismo cultural”(5). O governo rebateu as críticas através de nota oficial da Secretaria de Comunicação (6) e também em entrevista de Chico Alencar, titular da Comissão de Cultura da Câmara (7).
A simples leitura das instruções normativas, embora cause desconforto e estranhamento, não justificaria os argumentos mais inflamados, que falam em “ditadura”, “Albânia”, “stalinismo”, e descambam para algumas ofensas pessoais a integrantes e consultores do governo. O exagero do discurso revela que a polêmica é mais profunda e mais antiga, envolve a disputa de poder e verbas entre o Ministério da Cultura (Gilberto Gil) e a Secretaria das Comunicações (Luiz Gushiken) e infelizmente retoma, em parte, a velha disputa entre paulistas e cariocas pela hegemonia cultural brasileira.
Sendo gaúcho (distante mais de mil quilômetros do calor da batalha) e petista (não filiado, mas eleitor desde sempre, fiz cinco campanhas eleitorais para o partido), talvez possa contribuir à distância neste debate metendo meu bedelho onde não fui chamado. Por partes.
1/ Não é exata a informação de que o governo Lula esteja fazendo algo totalmente diferente do que disse em campanha. A idéia básica de Lula para a cultura, embora bastante genérica, foi divulgada durante a campanha, item 40 do programa de governo:
“Nosso governo adotará políticas públicas de valorização da cultura nacional, em sua diversidade regional, como elemento de resgate da identidade do País. (…) Para realizar esses objetivos será necessário encontrar novos mecanismos de financiamento da cultura e de suas políticas, que não podem continuar, como hoje, exclusivamente submetidos ao mercado (8).
Outro documento, “A Imaginação a serviço do Brasil; programa de políticas públicas de cultura” (9), apresentado pelo coordenador da campanha Antonio Palocci, foi ainda mais claro em sua crítica à política cultural do governo FHC.
“Nela, cada vez mais, o mercado tem definido o caminho dos investimentos de recursos públicos da cultura via leis de Incentivo. Ou seja, a ação do governo resume-se ao financiamento de projetos culturais do interesse de bancos e de grandes empresas.”
Concordando ou não com o atual processo, todos nós sabemos que isto é verdade. Quem decidiu, até agora, que projeto será financiado ou não foi o setor de marketing das empresas, em contatos pessoais com os produtores e seguindo critérios quase indecifráveis. Se esta política é compreensível nas empresas privadas é inaceitável nas empresas públicas. Dinheiro público deve ser utilizado com critérios públicos e, isto é o óbvio, sua utilização deve ser fiscalizada publicamente. Resumindo: um governo tem que ter critérios e um governo democrático tem legitimidade para estabelecer seus próprios critérios.
2/ Os critérios (ou instruções normativas, ou indicações, ou sei lá que nome têm) divulgados por Eletrobras e Furnas variam da obviedade à burrice, passando por idéias defensáveis, outras demagógicas, outras subjetivas (e esperando melhor definição) e outras ainda incompreensíveis.
São, em conjunto, inaceitáveis e, se levados a sério, perigosos.
São óbvios quando pretendem “otimizar (palavra horrível!) os recursos orçamentários e fiscais”, ou “garantir transparência aos critérios de apoio”, ou ainda “distribuir os recursos orçamentários de forma proporcional entre as diversas áreas culturais”.
São incompreensíveis quando pretendem “dar prioridade a projetos que democratizem o acesso à cultura”, não entendi essa. Que eu saiba, todo projeto cultural democratiza o acesso a cultura, uma vez que a cultura só existe se o projeto deixar de ser projeto e virar obra. Ou a idéia aqui é financiar prioritariamente grandes espetáculos populares com ingressos baratos como, por exemplo, um Gre-Nal?
São subjetivos quando pregam a “descentralização”, uma boa idéia que depende de números. Uma diversificação que não concentre recursos em Rio e São Paulo seria injusta. É lá que estão a maioria dos produtores e consumidores culturais - assim como a maior parte dos produtores e consumidores de batata frita e de tudo mais - e o investimento estatal deve levar isto em conta. Mas é justo que uma política cultural democrática incentive a reversão gradual deste quadro, faz parte da lógica federativa. É uma discussão de números, não de conceito, que é bom.
São demagógicos (além de inexeqüíveis e possivelmente ilegais) quando pretendem “atuar em sintonia com a política governamental, em especial com o Programa Fome Zero, tendo como diretriz fundamental (…) a exigência de contrapartidas sociais no apoio a projetos, notadamente os de geração de emprego e renda para as comunidades carentes, capacitação de jovens para a produção de cultura popular e acesso gratuito, ou a preços populares, a atividades culturais”.
A não ser que entregasse o material de cena para alguém comer, não imagino como um curta como “O Sanduíche” poderia contribuir para o programa Fome Zero. Se a idéia é doar parte do dinheiro do patrocínio, não é melhor a Eletrobras reter esta porcentagem na fonte? Se a idéia não é essa, é qual?
Afirmo que a comunidade de eletricistas, maquinistas e atores é muito carente.
Garanto que todos os filmes feitos no Brasil “capacitam jovens para a produção de cultura” alguns são até jovens demais para o meu gosto. E os velhos? Não tem direito a trabalhar? Haverá cotas para negros, judeus, mulheres, homossexuais e canhotos? Não seria muito mais simples - no caso dos filmes - o governo simplesmente garantir parte de suas verbas para diretores estreantes, esta sim uma boa idéia?
Adoraria fazer sessões a preços populares de “Houve Uma Vez Dois Verões” na periferia de Porto Alegre mas lá não há salas de cinema e eu, infelizmente, também não tenho salas de cinema. Procurem o exibidor.
Os critérios se tornam perigosos quando enveredam pelo conteúdo das obras, ao “valorizar patrocínios a projetos que tenham forte conteúdo de inclusão social, de valorização da cultura popular, de promoção da cidadania e do desenvolvimento social de comunidades de baixa renda”. A rigor isto não quer dizer nada, mas delega ao governo o poder de definir o que é “forte conteúdo de inclusão social”, o que é e o que não é “cultura popular”, o que promove e o que não promove a cidadania e o desenvolvimento social, estabelecendo uma estética de estado. É um conceito que termina em picaretagem e em filmes ruins. É muito boa a imagem criada por Babenco (em entrevista à Carta Capital): que o governo contrate diretores com direito a férias e décimo-terceiro salário. Ou, como escreveu Maiakovski, “se vocês pensam que se trata apenas de copiar palavras a esmo, eis aqui, camaradas, minha pena, podem escrever vocês mesmos!”.
3/ A reclamação dos cineastas é justa mas o volume excessivo da gritaria faz pensar que se trata de um jogo de cena para marcar posição, do tipo “deixa tudo como está que assim está ótimo”. Concordo que o processo de produção (que depende de financiamento do estado) não pode ser interrompido enquanto classe e governo se mobilizam em intermináveis reuniões e assembléias mas acredito que é possível e necessário corrigir rumos durante o vôo. Recebi (e não aceitei) propostas de patrocínio de um milhão de reais que incluiam verbas de “comissão” de 30% (trezentos mil!). Acho imoral que uma pessoa ganhe 300 mil reais de dinheiro público apenas por ser amiga do gerente de marketing de uma grande empresa. Isso para não falar dos filmes inexistentes, dos fracassos lucrativos, dos projetos eternos e sempre adiados enquanto o dinheiro (público) rende no banco.
4/ A discussão sobre as normas das estatais me parece ser um passo atrás no atual momento do cinema brasileiro. O sucesso popular de bons filmes como “Cidade de Deus”, “Carandiru” e “Deus é brasileiro” se deve, além da qualidade dos filmes, muito mais à concretização da idéia anciã de parceria entre a televisão e o cinema, através da Globofilmes, do que às políticas públicas de investimento em cultura. Num momento em que o cinema brasileiro amplia sua participação no mercado, em que ouvimos gente na rua dizer que “o cinema brasileiro está melhorando” (uma frase e uma idéia que levou 20 anos para ser construída) não seria a hora de ampliar esta parceria (tv e cinema), de lutar para diminuir o preço dos ingressos (as pessoas não vão ao cinema porque é muito caro) e de ampliar o número de salas populares? Não será este um debate mais interessante do que discutir “instruções normativas” da Eletrobras ou de Furnas?
Acho que é o momento de argumentar sem ofensas, gritos ou exageros, sem discursos que comecem por “eu, por exemplo…” e sem legislar em causa própria. E, o mais importante, sem parar de produzir. Torço para que o cinema brasileiro, que resistiu a tantos anos de fracasso, saiba resistir a este momento de sucesso.
Jorge Furtado Porto Alegre, 5 de maio de 2003.
(1) As tais instruções normativas podem ser lidas em:
Eletrobras http://www.eletrobras.gov.br/servicos/mostra_arquivo.asp?id=http://www.eletrobras.gov.br/downloads/servicos/patrocinios/patrocinio.pdf&titulo=Patrocínio%20Cultural
Furnas: http://www.furnas.com.br/portug/sociedade/patrocinio.htm
(2) A entrevista de Cacá Diegues pode ser lida em http://arquivoglobo.globo.com/pesquisa/texto_gratis.asp?codigo=1294221
(3) O site da Carta Capital é http://cartacapital.terra.com.br/ mas o texto de Babenco não é disponível online.
(4) O Globo: http://oglobo.globo.com/Suplementos/SegundoCaderno/107694315.htm
O Estado de São Paulo http://www.estado.estadao.com.br/editorias/2003/05/05/cad027.html
(5) Texto de Caetano Veloso em: http://oglobo.globo.com/oglobo/Suplementos/SegundoCaderno/107694317.htm
(6) Nota oficial da Secom: http://oglobo.globo.com/oglobo/Suplementos/SegundoCaderno/107694319.htm
(7) Entrevista de Chico Alencar: http://oglobo.globo.com/oglobo/Suplementos/SegundoCaderno/107694318.htm
(8) Para quem não leu antes de votar, o site da campanha do Lula continua no ar: http://www.lula.org.br/obrasil/programa_int.asp?cod=41
(9) http://www.lula.org.br/assets/cadernocultura.pdf