por Giba Assis Brasil
(junho de 1998)
publicado originalmente no Não 55
Este texto nasce de duas frases escritas pelo Gustavo Spolidoro no último número do CAC (jornal Cooperativa Artigo de Cinema), em seu ótimo artigo EU TAMBÉM VOU RECLAMAR: (1) “Quanto ao nosso ‘curto-circuito’, lamento dizer, mas nisso somos mais competentes que a turma do Gerbase quando eram superoitistas.” (2) “Quanto ao desafio de pagar um filme com a exibição de outro, digo que estamos fora. Não queremos enriquecer com o super-8.”
Em primeiro lugar, não tenho nenhuma dúvida de que vocês, os “novos superoitistas gaúchos” (desculpem o rótulo, mas é inevitável) são competentes: o CAC é a maior prova disso e não há motivo para lamentações. Mas eu pergunto: pra que essa comparação? Parece aquelas coisas de futebol: Garrincha teria lugar na seleção brasileira de 98? Por outro lado, vocês realmente têm idéia de que tipo de circuito a “turma do Gerbase” (viu só?) montou “quando eram superoitistas”? Quem estiver interessado no assunto, leia a tese de mestrado da Flávia Seligman. Ou então siga-me até o final desta página: quem não conhece a sua própria história está condenado a repeti-la - como farsa, é claro.
DEU PRA TI ANOS 70, por exemplo, estreou no dia 7 de maio de 1981, uma quinta-feira, no Clube de Cultura, uma sala com 150 lugares onde nós colocamos 190 cadeiras. Pra nosso espanto, o público da estréia foi de 201 pessoas. Na dia seguinte 207, depois 217 e 202. Então nós diminuímos o espaço entre as filas e conseguimos colocar 210 cadeiras. Público da segunda semana: 211 na quinta, 240 na sexta, 258 no sábado. No domingo, 250 mais uma sessão extra, duas horas depois, para “apenas” 109 pagantes. Nas três semanas em cartaz, o público total foi de 3229 pessoas (mais de 90% pagantes). Em todos os 12 dias teve gente voltando pra casa porque não tinha mais lugar.
Voltamos a cartaz no Teatro de Câmara, depois na Sala Alvaro Moreyra, no Museu de Comunicação. Em São Paulo ficamos duas semanas no Lira Paulistana. Fizemos sessões no Rio, em Florianópolis, em Montevidéu. Percorremos o interior gaúcho: Novo Hamburgo, São Leopoldo, Caxias, Pelotas, Passo Fundo, Santa Maria, Uruguaiana. No verão, Tramandaí, Torres, Capão, Atlântida. Mostramos o filme em colégios, universidades, cursinhos, sindicatos. No “Cio da Terra - encontro da juventude gaúcha”, dia 30 de outubro de 1982, fizemos uma sessão gratuita no pavilhão da Festa da Uva para 832 pessoas. Até 1984, registramos 148 sessões, para um público de 23.276 pessoas.
A partir daí, na tentativa de preservar o filme, passamos a diminuir o número de sessões: menos de 20 até a mais recente, em 16 de dezembro de 1997, na Eduardo Hirtz superlotada. Porque, é bom lembrar, todas estas sessões foram feitas com o filme original, emendado com durex, sem cópias. No início, no Clube de Cultura, éramos eu, Nadotti e Gerbase, com a ajuda do meu pai (que transportava os equipamentos) e do meu tio Nico (que não deixava ninguém entrar sem convite). Logo se juntaram o Sérgio e o Helinho, eventualmente o Wander. Depois o Werner, o Foguinho, o Grübber, o Alex. Nosso equipamento eram dois projetores, um amplificador (mais tarde também um equalizador), duas caixas de som (ou quatro, nas sessões maiores), uma tela de pano (às vezes substituída por uma parede branca), metros e metros de fio, fita crepe, tesoura, chave de fenda, martelo, pregos e uma puta vontade de ver as pessoas vendo os nossos filmes, e de conversar sobre isso. (Eu devo ter participado de uns 100 debates pós-projeção.) Enfiávamos isso tudo num carro (às vezes num ônibus, duas ou três vezes num avião) e íamos embora, assoviando “Nos bailes da vida”, só de sacanagem.
Tá certo, vocês vão dizer que esses números só valem pro DEU PRA TI, que foi um filme de exceção, feito na hora certa, quase que por acaso. Mas não é verdade, ou é só meia verdade: INVERNO, de 1983 a 1985, teve 76 projeções públicas para um total de 7774 pessoas. Não tenho os dados do COISA NA RODA, que ficaram com o Foguinho (hoje ele mora no Rio e é bem menos organizado que eu, portanto não esperem encontrar dados confiáveis), mas eu chutaria, sem medo de errar, que o filme deve ter feito mais de 100 sessões para mais de 6000 espectadores. Perguntem ao Amon, ao Henkin e ao Betinho os números de A PALAVRA CÃO NÃO MORDE. Como a gente acreditava na Lei do Curta antes mesmo que ela funcionasse, passamos a exibir, antes dos nossos longas, um “complemento nacional”. Podia ser um filme nosso, como o MEAN GIRL do Gerbase ou o meu EXPEDICION LOCH NESSI, ou um filme de amigos, como o ETC do Henkin, o DOMINGÃO do Amon ou O REI CAVALAR do Yanko del Pino.
Enriquecemos? Claro que não. Mas mostramos os filmes pra um monte de gente (perguntem por aí, alguns ainda devem estar vivos), estimulamos outras pessoas a fazerem os seus filmes, aprendemos pra caralho sobre cinema vendo as reações do público e até ganhamos algum dinheiro - o que também não é nenhum demérito, meus amigos. Quanto custava fazer um longa-metragem em super-8 na época? Fazendo a atualização via dólar (nem sempre confiável), eu diria que DEU PRA TI ANOS 70 custou R$ 2,5 mil, COISA NA RODA por volta de R$ 6 mil, INVERNO R$ 5 mil. Quanto ganhamos? Tirando a parte que pagava as dívidas do filme (sem paitrocínio e sem dinheiro público) e ainda o cachê dos atores, ganhamos o suficiente pra pagar o aluguel, colocar alguma coisa na geladeira, ir ao cinema três vezes por semana e ainda fazer uma poupancinha pro próximo filme. Pecado? Só pra quem acredita nisso! Em 1981, eu larguei meu emprego na rádio Gaúcha pra poder terminar o DEU PRA TI, e tenho orgulho de dizer que vivi 3 anos só de super-8. Simples assim.
Complicado foi quando a gente começou a fazer filmes em 35mm e achou que tinha virado “profissional”. Mas isso já é outra história.
P.S.: O título, Gustavo, é só pra continuar a referência, e mostrar que o “abismo de gerações” tem pontes surpreendentes. Meus filhos também adoram ouvir Raul Seixas.