GAÚCHOS EM GRAMADO: O MELHOR E O PIOR

por Jorge Furtado
(16/08/1999 18:21)
publicado originalmente no Não 65

Mais um rodenir de emoções, alôs, até dois mil e uma ou duas histórias novas. O pior de Gramado foram as piadas sobre o fim do mundo. Muitas, e nenhuma boa. O melhor foi a variedade e qualidade da produção gaúcha, trinta e sete filmes em todas as bitolas. Nos 16 e 35mm (12 filmes) a quantidade é resultado, com raras exceções, do Fumproarte e do prêmio Governo do Estado. Os super-8 (25 filmes) são feitos com pouco ou nenhum incentivo, só pela vontade de gastar a mesada fazendo cinema. A RBS anunciou apoio para o festival do ano que vem. Grande idéia, principalmente se parte for em dinheiro para os prêmios. E para melhorar a qualidade da projeção.

A Vingança de Kali Gara, de Jerri Dias, uma paródia de cinema mudo e policial noir apresentada com música ao piano na sala de projeção, ficou com todos os prêmios do júri dos super-8. A boa direção de atores, a ótima produção e especialmente o bom roteiro, capaz de inventar piadas novas sobre um velho artifício narrativo, justificam todos os prêmios.

Como parte integrante do júri popular, fui voto vencido. Votei em “Cinemeando no Garagem”, de Gustavo Spolidoro. O filme é um documentário sobre a mostra de super-8 que acontece semanalmente no Bar Garagem Hermética. Narrado pelo diretor, que apresenta a equipe, explica o roteiro e comenta a realização de cada plano, “Cinemeando” explora novas possibilidades narrativas e fala de uma realidade claramente conhecida pelo autor. Em seu texto na “Artigo de Cinema” (número 10) Gustavo manda “as-puta-que-os- pariu” quem defende um cinema “que cante sua aldeia”. As mães em mira parecem ser as dos realizadores gaúchos de longas “históricos”. (Ele não dá os nomes, mas suponho que fale de “Lua de Outubro”, “Anahy de las missiones” e “Netto Perde sua Alma”, ainda nem filmado). “Minha aldeia é anos 90”, informa o autor. Felizmente Gustavo faz em seus filmes o oposto do que prega em seu texto. Nenhum filme da mostra cantou mais a sua aldeia do que “Cinemeando”. A idéia de que filmes ambientados no passado - ou no futuro - não são capazes de retratar sua própria época, me desculpe, não vale um ticket refeição de ontem. Os anos 90 estão com os dias contados e eu ainda espero ver o Gustavo filmando Machado de Assis. “Cinemeando” levou uma menção do júri. Merecia mais.

O júri, bem que ele fez, deu ainda vários destaques. Também vou dar os meus:

“W.C”, dos alunos do curso “Produções e Filmes da Resistência”, é um raro exemplo de montagem no tempo certo, ajudada pela boa decupagem e atuação. Outra qualidade do filme é o roteiro, que apresenta clara e rapidamente o conflito e é adequado às limitações da produção. Por isso funciona muito bem.

“Banda 2 - A Missão”, de Leandro Rangel e Danielle Perciavalle, crônica de um dia rodada a poucos quadros por segundo, uma experiência no tamanho certo e com ótimas imagens.

“Hélio”, de Carolina Siqueira Conte. Tem os planos mais bonitos da mostra, especialmente o do fusca verde na frente do Hotel Castelo, em Cidreira. Pena que a atuação caricata do personagem principal distancie o público do bom texto.

“Subterrâneo”, de Renata Timm. Filme experimental, desenhado sobre o negativo. Difícil inovar no gênero mas o que dá para fazer ela faz: belos desenhos, cores e movimentos, ótima música.

Sobre a música: alguns filmes super-8 foram projetados sem som, com uma música de cd rodando, mixada na sala, pelo realizador. É um bom truque, a qualidade do som melhora muito. Mas os filmes, sinto informar, não existem ainda. A sincronização precisa e definitiva de som e imagem são um elemento expressivo do qual o realizador não pode abrir mão. O problema é menos grave quando a produção tem os direitos sobre a trilha, aí é só conseguir grana para fazer a cópia.

Sugiro aos super-oitistas a leitura dos Dez Mandamentos da Good Machine, uma produtora americana de filmes de baixo orçamento, entre eles os primeiros do Jim Jarmusch.


Dez Mandamentos da Good Machine

  1. O orçamento é a estética - adapte seu roteiro às suas possibilidades. Lembre-se: se a escala de sua história ultrapassa os seus recursos, o público vai achar que algo está faltando e você vai perdê-lo.
  2. Realismo custa dinheiro - por isso determine bem suas opções estéticas e atenha-se a elas.
  3. Se você não pode realizar um filme de baixo orçamento sem ter um orçamento e ater-se a ele. Saiba o custo de tudo, saiba quanto você já gastou, saiba quanto você ainda vai precisar gastar.
  4. Faça tudo o mais legalmente possível - consiga licenças, escreva memorandos, trate dos direitos autorais, liberações, permissões, etc. Não deixe que nada venha a atrapalhar a obtenção da licença final para a exibição do seu trabalho.
  5. Não faça acordos para conseguir dinheiro que façam com que você se sinta desconfortável ou que possam comprometer muito sua liberdade - seja preciso, claro e inequívoco quanto a sua linha criativa fundamental.
  6. Não seja um idiota com sua equipe (há duas formas de ser idiota: ser rude ou ser desorganizado e desperdiçar o tempo deles).
  7. Se você deixar, as pessoas desaparecem. Alimente bem o elenco e a equipe - uma boa alimentação é meio caminho andado para compensar o mau pagamento. E dez horas de descanso entre os dias de trabalho não é um luxo, mas uma necessidade.
  8. Todos os erros são cometidos na pré-produção. Improvisação e sorte são recursos excelentes durante as filmagens - mas eles não substituem a total falta de preparo. Comunique suas idéias à equipe. Não a obrigue a adivinhar o que você está pensando.
  9. Não perca tempo terminando esta lista. Comece a rodar.

O júri dos curtas gaúchos foi mais econômico, só deu os prêmios já previamente definidos: melhor filme para “Até”, de Gilson Vargas, prêmio especial do júri para “Três Minutos”, de Ana Azevedo e o Prêmio Prawer-APTC para o ator Nelson Diniz.

Entre os não premiados, a ótima direção e os atores de “Um Estrangeiro em Porto Alegre”, de Fabiano de Souza, o bom roteiro e a atuação de Júlio Andrade em “Fome” e o desempenho de Débora Finocchiaro, Carlos Cunha e Carlos Azevedo em “O Negócio”, filme do curso de pós-graduação da PUC.

Os gaúchos mantiveram erguido nosso penacho na competição nacional. “O Oitavo Selo”, de Tomás Créus, levou o júri popular, roteiro e um dos prêmios do Canal Brasil. O outro foi para “Deus é Pai”, de Allan Sieber, que também ganhou o prêmio da crítica e de animação, dividido com três filmes: outro gaúcho, “Cidade Fantasma”, de Lisandro Santos, “De Janela pro Cinema”, de Quiá Rodrigues (RJ) e “Amassa que Elas Gostam”, de Fernando Coster (SP). A divisão do prêmio em quatro tem os méritos de destacar bons filmes e de criar, na prática, o prêmio de animação. E o defeito de esvaziar o prêmio. Distribuir prêmios é um serviço sujo mas alguém - o júri - tem que fazê-lo.

“Oitavo Selo” e “Deus é Pai” reafirmam o peso de um bom roteiro no resultado final de um projeto. Sem ele o filme fica dependendo do virtuosismo do realizador, como é o caso de “Nocturnu”, de Dennison Ramalho.

Claro que entre os 37 filmes gaúchos há muita chatice, muita pretensão e maneirismo, piadas que não contentes de serem velhas ainda pecam por serem longas, artifícios narrativos do tempo da vovó, roteiros inadequados para as precárias condições de produção, muita referência cinematográfica de gosto duvidoso, sobram zooms, diálogos explicativos, gente parada pensando, garotos pegando em armas pela primeira vez como se isso não fosse importante, gente acendendo o cigarro e fumando como se isso fosse por si só uma ação dramática e muito humorismo involuntário, incluindo gente caminhando até encostar com a barriga na câmera para fazer o corte. Mas também há a diversidade, talento, boas idéias e vontade de contar histórias. Acho que é para isso que serve o cinema.

Jorge Furtado