MEU CARO OTTO GUERRA

por Jorge Furtado
(junho de 1998)
publicado originalmente no Não 55

Li a entrevista no jornal Artigo de Cinema onde você admite uma “manobra eticamente discutível” ao participar do concurso de produção do governo do estado. “Manobra eticamente discutível” é muito bom. Depois das boas intenções, a segunda população do inferno é a de eufemismos.

Para os desinformados, os mal-intencionados e os idiotas, únicos que ainda não entenderam o que se passou, cabe aqui uma recapitulação. O Otto ganhou um concurso público com um projeto (“O Arraial”). Ainda não tinha terminado o filme mas queria entrar num novo concurso, com outro projeto (“Cavaleiro Jorge” ou “A História do Cavaleiro Jorge Antes de Virar Santo”). Um critério mínimo para garantir a moralidade de concursos que distribuem dinheiro público é proibir de concorrer quem ainda não cumpriu sua parte num antigo contrato - no caso, fazer o filme. Alguém ainda não entendeu? Vou explicar outra vez: quem pegou dinheiro público para fazer um filme e ainda não fez não pode pegar mais dinheiro público para fazer outro filme. (Quem não entendeu, por favor, pare de ler este texto e procure a escola especial mais perto de sua casa. Quem entendeu mas finge que não entendeu ou não concorda, o melhor que faz é filiar-se à Juventude do PFL).

O que você chama de “manobra eticamente discutível” foi ter inscrito o filme no novo concurso com outro nome, outro diretor e outra produtora. Acontece que, com o título “A História do Cavaleiro Jorge Antes de Virar Santo”, direção de Otto Guerra e produção da Otto Desenhos animados, o mesmo filme havia ganho o Fumproarte. Você disse - publicamente, na assembléia da APTC, o resto é fofoca - que comunicou “verbalmente” ao Fumproarte da mudança, mas não por escrito. Você ainda sustenta esta versão? Para quem conhece um pouco a burocracia do Fumproarte isso é uma piada, equivalente a fazer uma declaração de imposto de renda “verbalmente”, para a Dona Neuma, no balcão da receita federal.

Quando a sua “manobra eticamente discutível” se tornou pública, todas as pessoas de bom senso, alguns deles seus amigos, por conhecerem você há muitos anos, por saberem das suas boas intenções, tentaram POR CINCO MESES fazer com que você visse que estava se metendo numa roubada. Depois de CINCO MESES de tentativas infrutíferas de fazer você ver o que parecia evidente, a APTC, entidade que tem a obrigação de defender o interesse de todos os seus filiados (e não só dos seus filiados mais ilustres ou amigos da diretoria, como é o seu caso), cumpriu a sua obrigação, informando oficialmente ao governo do estado sobre a “manobra eticamente discutível”. O departamento jurídico do governo do estado, um pouco mais veloz na compreensão do óbvio, cancelou o prêmio.

Cabe aqui lembrar um outro detalhe: sua “manobra” impediu a realização de um filme gaúcho. Você diz que queria apenas “produzir o filme”, que não pretendia “pegar o dinheiro e fugir para Cuba, pra Indonésia”. Você acha que os outros participantes do concurso, entre eles muitos estreantes, também não pretendiam fazer os seus filmes? Ou será que o melhor seria criar no concurso uma categoria especial para pessoas que, como você, “sempre botaram o dinheiro seu e da família nos filmes”. Ou, melhor ainda, quem sabe acabamos logo com os concursos e suas regras burocráticas e entregamos o dinheiro para aqueles que “não têm nenhum bem” e moram em casas alugadas?

Em 85 nós criamos a APTC para nos representar politicamente. Protestávamos contra a distribuição de dinheiro público sem concursos públicos; denunciávamos a Embrafilme, que entregava grana aos compadres cariocas e paulistas; exigíamos regras claras na distribuição das verbas. Hoje você vai para um jornal justificar sua “manobra eticamente discutível” achando que foi injustiçado, logo você que esteve “trabalhando com esses caras há anos”. E, se sentindo injustiçado, resolveu falar mal da APTC, da Casa de Cinema e de nossos filmes.

Por falar nisso, achei sua breve incursão ao mundo da crítica cinematográfica um mico. “Os caras adoram Jorge Furtado, adoram aquela coisa do Torero”. Que caras? Que coisa do Torero? “Essa coisa do conteúdo não adianta: por mais que você tenha condições técnicas, isso não resolve a questão da trouxice do conteúdo, da merda que é dita, entendeu?” Não, não entendi nada. “Coisa do conteúdo”?

Meu caro Otto, pare de dizer bobagem e vá trabalhar. Ninguém nunca tratou você “como um ladrão”, até porque você não é um ladrão. Não dê ouvidos a quem, por picaretagem e/ou burrice, acha que são aceitáveis estas “manobras eticamente discutíveis”. Rebeldia e “manobras eticamente discutíveis” com dinheiro público não combinam. Filmes que nascem de “manobras eticamente discutíveis” são quase sempre ruins. E não se leve tão a sério, você é um humorista. Filmes são só pedaços de plástico. Não vale a pena trocar sua paz por - como é mesmo? - essa coisa do cinema. Entendeu?

(Jorge Furtado tem 38 anos e jura de pé junto que nunca adorou aquela coisa do Torero).

OTTO GUERRA ESCREVEU UMA TRÉPLICA NO NÃO 56.