por Carlos Gerbase
(julho de 1995)
A verdade sobre a nostalgia é que o ser humano normal não escapa dela. O eleitores do PFL, é claro, estão fora desta classificação. Porque, afinal de contas, o muro caiu. Então que caiam junto os cinemas, essas salas escuras onde homens e mulheres se escondiam da vida. Eles tem paredes antigas, fachadas estranhas, escadas suspeitas. Vamos aos shoppings! Aos vídeo-clubes! Vamos nos ligar na NET! A verdade sobre a nostalgia é que ela é perigosa. Corre-se o risco de passar por reacionário, ou pior ainda, por romântico.
Tudo isso porque pediram que eu lembrasse de um cinema de Porto Alegre. Poderiam ser vários. Poderia até ser o Riograndense, de Capão da Canoa, porque cinemas não pertencem às cidades, e sim aos filmes e às pessoas que os assistem. Mas a verdade é que nada se compara ao Bristol na minha memória afetiva. Uma sala pequena, quase sem decoração. Uma sala-de-espera pouco confortável. Dois banheiros sempre quebrados. Uma escada em dois lances. Uma senhora mal-humorada na bilheteria. Aliás, a sala, a escada, os banheiros e a senhora mal-humorada continuam lá, mas em vez de um nome, uma identidade, uma humanidade, o cinema tem um número. E números, meus amigos, são números. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez. É o futuro: dez salas de shopping, idênticas, em que o cheiro de perfume da classe-média garante a todos um feliz consumo de imagens e sons. A verdade sobre a nostalgia é que faz a gente falar bem do cheiro que vinha dos banheiros do Bristol.
Assisti a muitos filmes no Bristol. O Bristol tinha um programador chamado Romeu Grimaldi, homem de baixa estatura física, altíssima estatura cinematográfica e diálogos de filme brasileiro visto em cinema de Porto Alegre: acho que entendi, mas não tenho certeza. Pois o Grimaldi inventou esse negócio de “ciclo”. Eu via três ou quatro filmes de determinado diretor, ou de determinado estilo, ou de determinado país, em uma semana. O Grimaldi é um grande engenheiro. Ele construiu, naquela sala sem atrativos, uma ponte entre um adolescente ignorante (eu) e o melhor cinema do mundo. Talvez o filme mais significativo dessa ponte seja “O sétimo selo”, porque vi duas vezes pra entender, continuei sem entender e mesmo sem entender gostei muito. Tem filme que é pra entender na hora. Tem filme que é pra entender depois. E tem filme que é pra nunca esquecer. A nostalgia é um enigma.
Mas não pensem que o Bristol era um cinema “cabeça”. Não acusem o Bristol de ser intelectual. O Grimaldi fazia uns ciclos estranhíssimos, em que a afinidade entre os filmes era tão escorregadia quanto a sua fala. Pois num desses ciclos levei uma namorada recente. O filme era “Quadrilha de sádicos”. Que sacanagem, Grimaldi! Eu dando uma de cinéfilo, levando a menina no Bristol, e de repente estávamos assistindo a um bando de canibais tentando comer (no sentido antropofágico) um bebê de alguns meses de idade. Carne tenra! Eu gostei do filme e ela detestou. Criou-se um abismo entre nós. Tive que recorrer aos raciocínios mais tortuosos para convencê-la de que o filme era legal. Não consegui. Pra não perder a namorada, tive que levá-la pra jantar num bom restaurante. Um dia desses te cobro a conta, Grimaldi.
A verdade sobre a nostalgia é que faz a gente não falar a verdade. O que o Grimaldi fazia no Bristol continua fazendo nos cinemas da Casa de Cultura Mário Quintana. “O sétimo selo” está ali nas prateleiras do Espaço Vídeo, esperando para ser entendido. Lembrei de “Nashville” (que vi no Bristol) quando vi “Prét-a-porter” numa das salas do Shopping Praia de Belas. Já vi muitos documentários legais na NET. Mas alguma coisa mudou. Ou eu mudei. Ou talvez o mundo inteiro tenha mudado. Não sei. A verdade sobre a nostalgia é que ela está dentro, e não fora. O muro caiu, o Bristol fechou e eu não perdi a namorada.
(c) Carlos Gerbase 1995