ou SAUDADES DO NÃO
Por Carlos Gerbase
(julho de 1999)
publicado originalmente no Não 64
Fazia tempo que eu não fazia um longa (mais ou menos uns quinze anos), de modo que peço perdão pelas confissões ingênuas e um pouco deslumbradas, típicas de um estreante, que certamente se seguirão. Tenho saudades do NÃO. Tenho saudades de um monte de coisas da minha vida normal. Me sinto afastado de pessoas e de objetos que, em seu conjunto, constituem minha circunstância. Acho que a frase é de Ortega Y Gasset (acho que não é assim que se escreve, peço desculpas de novo, mas estou filmando e minha cabeça não funciona direito): “Eu sou eu e minha circunstância”. Pois fazer um filme como “Tolerância” é manter o segundo “eu”, na medida do possível, e trocar radicalmente de circunstância. Isso balança muito o vivente. O primeiro “eu” fica frágil, desamparado. Ao mesmo tempo, tenho a obrigação de demonstrar para a equipe que possuo total domínio da narrativa, que posso montá-la e desmontá-la ao meu bel-prazer, que tudo isso é uma grande brincadeira, um faz-de-conta de dois meses. (Também tenho saudades de perguntar para o Giba se “bel-prazer” e “faz-de-conta” têm hífen.) E filmar é uma brincadeira. Mas também não é. Por isso é importante gritar “Ação” bem alto, como um lutador de karatê, para que a equipe toda sinta que a luta é de vida ou morte. Vidas de mentira e mortes com sangue de groselha e espoletas escondidas na roupa. Mas vidas e mortes. O vivente que se adapte a esse joguinho de aparências, em que caminham monstros-gruas operados por controle remoto (e que trocam o tamanho do braço de acordo com o inimigo); em que pastam ovelhas-dollys, com línguas de diferentes tipos; em que se movem atores e atrizes que, de repente, se transformam na tua frente em algo que antes era apenas uma mancha no papel. Às vezes penso sinceramente que é um absurdo ter tanta gente à disposição para contar essa história. Esse exército investirá contra quem? Onde está aquela produção que cabia no porta-mala do meu dodginho 1800? Onde estão nossos verdes anos, que graças a deus acabaram, mas que insistem em nos assombrar? O maravilhoso mundo do cinema é um teste de sobrevivência na selva. Queria ficar sozinho uma meia-hora por dia, queria ter direito a entorpecer a mente de vez em quando, queria poder ter privacidade para falar com uma pessoa de cada vez, em vez de tentar fazer piadas idiotas para vinte. A tolerância necessária para fazer um longa é assustadora. Mas, como dizia meu amigo Nelson Nadotti, nada é mais importante que contar uma história de amor. Dói um pouco, às vezes te revira por dentro, às vezes te faz atuar melhor que os atores. Porque a verdade pode ser mentira, e a mentira pode ser a verdade. Dentro da câmara tudo vai bem. O filme roda, registrando isso tudo, que nunca esteve no roteiro, como naquela cena maravilhosa de “Boogie Nigths”, quando a câmara entra dentro da câmara sem qualquer frescura metalingüística, sem qualquer pressuposto semiótico, na simples constatação de que, ao filmar, estamos levando um mundo real, em três dimensões, para um mundo em 2D, sem perspectiva de verdade, plano como o filme, limitado pelo filme, mas um mundo que não existe sem as coisas de verdade que estão na frente de câmara, e essas coisas de verdade não tem nada a ver com cinema, com técnicas ou efeitos, e sim com aquilo que a gente respira, toca, teme, admira, deseja tremendamente ou odeia com toda a força possível. Cinema não pode ser apenas um exercício estético, feito com a cabeça, executado com frieza. Cinema precisa ser uma masturbação permanente, uma lubrificação dos sentidos, precisa tocar o mundo real sem luvas, precisa mentir com total convicção, precisa acreditar muito na mentira, até que ela seja tão ou mais importante que a verdade. Quando a produção cabia no porta-malas do dogdinho isso era muito mais fácil. Hoje temos muito mais facilidade para filmar, temos um bando de profissionais que te ajudam a fazer o filme, mas também corremos o risco de fazer filmes que não signifiquem nada, que não entrem dentro da câmara, que construam outro mundo, totalmente artificial, lá dentro. Cinema não pode ser realidade virtual. Tempo e espaço diegéticos não significam tempo e espaço falsos. Tenho certeza de que alguma coisa do que senti fazendo essa filme, afastado de minha circunstância, será transferida para a película. E também tenho certeza que essa transferência será dolorosa, que irá nos assombrar a cada projeção, que essa brincadeira não será inconseqüente. Tenho saudades do NÃO, tenho saudades da minha circunstância, mas, ao mesmo tempo, gostaria de filmar um pouquinho todos os dias, mentir um pouquinho todos os dias, enganar a todos sobre o que sinto de verdade. Tempos atrás, mandei uma matéria para um NÃO que o Giba estava editando, que era mais ou menos sobre isso, e que acabou não sendo editada (porque eu pedi), em que eu defendia um cinema próximo das nossas vidas, sem medo de ser auto-referente, sem medo de registrar os tempos mortos de nossas vidas pouquíssimo heróicas. Hoje, depois de um mês fazendo o “Tolerância”, descubro que o meu texto estava mesmo errado: somos heróis! Se não somos, pelo menos fingimos que somos com tanta convicção que ninguém percebe. O que está no filme é uma realidade mais real que a esta aqui, e às vezes muito mais verdadeira. Tenho saudades do NÃO, que é parte da minha circunstância. Tenho saudades de um tempo que não existe mais, que cabia inteiro no porta-malas do meu dodginho, que burramente troquei por um fuca (que inundava quando chovia), que depois troquei por um chevete (que sofria para subir a serra), que depois troquei por um passat (que andava muito mal), que depois troquei por um delrei (que simplesmente não andava). Não tenho saudades nem do fuca, nem do chevete, nem do passat nem do delrei, porque hoje tenho uma bleiser, em que minha família cabe inteira. Mas ainda tenho saudades do dodginho, porque o cinema cabia todo dentro do dele. E vou sentir saudades da dor de filmar “Tolerância”, que não caberia nem no porta-malas do dodginho. Espero sobreviver ao maravilhoso mundo do cinema.