por Carlos Gerbase
setembro de 1997
O mais importante ciclo de cinema comercial do Rio Grande do Sul foi patrocinado por Vítor Mateus Teixeira, o Teixeirinha, nas décadas de 60 e 70. Eram filmes com histórias simples (quase sempre simplórias), muitas vezes retiradas do universo das canções populares do astro. “Ela tornou-se freira”, “Coração de luto”, “Motorista sem limites”, entre outros títulos, estabeleceram uma certa estética que identificava o cinema gaúcho no resto do País.
A fórmula de Teixeirinha fez sucesso por alguns anos. Ela misturava todos os arquétipos dos pseudo-gaúchos - herói romântico a cavalo, prenda inocente em perigo, churrasco com chimarrão, grossura bondosa, coragem sem limites - e, num processo de diluição típico da indústria cultural, extraía do liqüidificador produtos que mantinham com a cultura rural (o folclore “sério”, digamos assim), uma relação ambígua de afirmação e mistificação. Teixeirinha reforçava os mitos populares do gauchismo, enquanto destruía qualquer possibilidade do verdadeiro gaúcho aparecer na tela.
Claro que não podemos cobrar dos filmes de Teixeirinha coisas como verossimilhança ou compromisso cultural, voltados que eram para um mercado específico, mas isso não os isenta de seu papel falsificador. O “gaúcho” de Teixeirinha, a rigor, não existe, e nunca existiu.
No momento em que o cinema gaúcho dá mostras de retomada de produção na área do longa-metragem (nos curtas, afirmou-se nacionalmente nos últimos dez anos), através de dois longas finalizados (“Lua de Outubro”, de Henrique de Freitas Lima, e “Anahy da Las Misiones”, de Sérgio Silva), é importante discutir que tipo de estética está presente nas telas e que relações ela tem com a que Teixeirinha estabeleceu, vinte anos atrás.
Se somarmos os filmes prontos com uma outra produção anunciada - “Anita”, de Ruy Guerra, co-produção carioca e gaúcha -, é possível constatar que o nosso cinema continua no campo e voltou ao passado. Contudo, um rápido olhar aos dois longas apresentados no Festival de Gramado é suficiente para estabelecer uma nova característica do cinema do Rio Grande do Sul: cada filme é um filme. Não estamos frente a um ciclo homogêneo, como o intelectual Cinema Novo carioca, ou o tosco pastelão de Teixeirinha. Há um abismo maior do que o Itaimbezinho entre “Lua de Outubro” e “Anahy de Las Misiones”.
O primeiro recoloca o cavalo em primeiro plano, enquanto o segundo coloca os gaúchos puxando a carroça. O primeiro volta aos cartões postais “fake” das obras de Teixeirinha, enquanto o segundo queima os cartões postais e das suas cinza retira dramaticidade. O primeiro parte de três contos do uruguaio Mário Arregui e, numa costura mal feita, não chega a lugar algum. O segundo parte de um roteiro original do diretor e de Gustavo Fernandez (com reflexos de “Mãe Coragem”, de Brecht) e chega a um clima épico absolutamente inédito nestas bandas meridionais.
Mas algo une os dois filmes: a ausência de concreto, de edifícios, de fumaça, de sujeira, de buzinas, enfim, de urbanidade. As estéticas são bem diferentes, mas a matriz continua sendo o campo, e não a cidade. E esta opção temática não termina nos filmes prontos. Os produtores de “Anita” já entraram em contato com os realizadores de “Anahy de Las Misiones” para que o barco Seival, que faz uma rápida aparição no filme de Sérgio Silva, possa ser reaproveitado na futura obra de Ruy Guera. Esta parece ser uma situação emblemática do novo cinema comercial gaúcho, que nasce de costas para o século XX e recicla alguns mitos históricos sem a menor cerimônia. O longa-metragem gaúcho renasce relinchando.
Não tenho nada contra cavalos, muito menos contra quem cavalga, mas essa re-interiorização do cinema gaúcho de certa forma nega outro tipo de cinema feito em nosso estado, que está na cidade e neste fim de século. E, de certa forma, a retomada da produção de longas, com a predominância dos temas rurais, é uma releitura do ciclo Teixeirinha. Uma releitura heterogênea e de resultados contrastantes, mas ainda assim uma releitura. O sucesso de “O Quatrilho”, também um filme de época e também do interior, apenas reforça esta tendência.
Nestes tempos de disputas acirradas das produtoras pelo dinheiro, o que menos interessa é discutir estética. A estética certa, o roteiro certo, o projeto certo é o que completar o orçamento primeiro. Ruy Guerra, por exemplo, tem três projetos ao mesmo tempo: um no Rio de Janeiro (“Estorvo”, da obra de Chico Buarque), um no recém lançado Pólo Amazônico de Cinema de Belém (“O Selvagem da Ópera”, do romance de Rubem Fonseca) e um no Rio Grande do Sul (“Anita”, ainda sem roteiro definido, mas certamente baseado nas possibilidades de levantar dinheiro de empresários gaúchos, como fez Luiz Carlos Barreto com “O Quatrilho”).
Esta fome desmedida de filmar de Ruy Guerra e de outros cineastas do centro do País não será saciada tão cedo. E eles continuarão voltando ao Rio Grande para viabilizar seus orçamentos. O problema que vejo (e, pelo visto, só eu vejo) é que o nosso Estado continuará sendo apenas um bonito cenário rural para produções que continuam encarando o gaúcho como um sujeito de bombacha em cima de um cavalo. “Anahy de Las Misiones” não é a regra, e sim a exceção.
Todo esse raciocínio, bastante impreciso e algo futurológico, está, é claro, a serviço de minha própria visão de cinema gaúcho, que sempre foi urbana, esfumaçada, barulhenta, poluída e absolutamente presente. É esse o gaúcho que conheço: desmontado e mal pago, mal resolvido, sem bombacha, sem lenço, sem documento, com a corda no pescoço. O que não é garantia de qualidade, mas é garantia de diversidade. É garantia de que certos valores reacionários cantados em verso e prosa pelos CTGs destes rincões não sejam a única imagem que exportamos para os demais brasileiros.
Que os cavalos relinchem à vontade, mas que os gaúchos se afastem dos mitos mentirosos do passado. A modernidade não é um valor em si (basta ver o que ela tem feito à Educação deste País), mas o velho pampa não é nem mesmo um valor, quando serve apenas ao latifúndio e à especulação imobiliária. Antes de celebrar nossas belezas naturais temos que revelar nossos desarranjos artificiais. Cinema serve para isso. O resto é turismo.
(Dirão que advogo em causa própria, pois a Casa de Cinema de Porto Alegre tem um projeto de um longa-metragem urbano e contemporâneo. É verdade. E continuarei advogando, através de idéias e, principalmente, de filmes. Muitas vezes, a estética não é uma questão cultural. É uma questão de estratégia política e econômica, de Poder. Um Poder que Teixeirinha, em sua ingenuidade, não soube solidificar, mas que alguns de seus releitores já demonstraram conhecer com grande intimidade.)
(c) Carlos Gerbase
setembro de 1997 - publicado originalmente no jornal ABC Domingo