por Carlos Gerbase
(24/02/1998)
publicado originalmente no Não 54
Já fui um magro do cinema gaúcho, no sentido definido por Aníbal Damasceno Ferreira: alguém disposto a contestar a estética e a ideologia dos filmes feitos em determinado período no Rio Grande do Sul. Esta contestação aconteceu a partir do final da década de 70 e foi exercida de três maneiras diferentes:
(1) pela criação de uma nova estrutura de produção (curtas e longas em super-8), em oposição aos curtas e longas em 35mm;
(2) pela utilização de uma temática “urbana” e “jovem”, em oposição aos filmes “rurais” (José Mendes e Teixeirinha) e “adultos” (Jesus Pfeil, Textor);
(3) por um discurso de oposição à estética predominante. Ou seja: dizíamos que os filmes da geração anterior à nossa eram muito ruins.
Por um longo período, em conversas que mantínhamos no bar da FAMECOS, o Aníbal me advertia que, cedo ou tarde, surgiria uma nova geração de cineastas, os magríssimos, para esculhambar a minha geração. Mas, por mais que procurássemos, os magríssimos não davam as caras. Assim, a minha geração, hoje na beirada (ou já ultrapassando) os 40 anos, seguia sendo a juventude do cinema gaúcho. Coisa triste…
Eis, que finalmente, no Ano do Senhor de 1997, os magríssimos apareceram.
Eles têm uma nova forma de produção (outra vez o super-8, só que realizado em condições ainda mais difíceis, em oposição aos nossos curtas em 35mm), têm uma nova temática (“violenta” e “trash”, em oposição aos nossos filmes “dramáticos” e “realistas”), e, principalmente, têm um discurso de oposição à estética predominante, que colocam na roda através de uma publicação chamada Cooperativa Artigo de Cinema, que já está em seu terceiro número. Alguns extratos deste jornal/revista:
(1) “…os 3 super-8 citados acima foram assistidos por um público muitas vezes maior do que qualquer outro curta-metragem gaúcho da safra 96/97” (Gustavo “Konigsberg” Spolidoro, em “A cena superoitista portoalegrense”).
(2) “Se os queridíssimos leitores estão de saco cheio de cinema-comédia-da-vida-privada-estudios- disney e/ou procurando emoções fortes…” (Cristiano Zanella, em “O cinema nacional tem salvação e ainda vou provar isso com meus filmes bagaceiros - Cristiano Zanella entrevista o alucinado videomaker Peter Baiestorf”).
(3) “Os representantes gaúchos foram o curta Sexo & Beethoven - o Reencontro, de Carlos Gerbase (POA) e o vídeo acadêmico (Jornalismo/FAMECOS-PUC) Lâmina do Desejo, de Paulo H. A. Carvalho (POA). Prefiro me abster de comentários.” (Hique Montanari, em “5o MIX Brasil: Sexus Diversus”).
A primeira afirmação (que está inserida numa longa matéria sobre sessões de super-8 em Porto Alegre) tenta provar que os magríssimos criaram um circuito exibidor alternativo poderoso, que teria mais espectadores que as mostras da geração anterior, restritas a cinemas tradicionais. Ou seja, a nova forma de produção gerou uma nova forma de relação com o público. Os números são impressionantes (“180 pessoas por dia”, “cerca de 500 pessoas para o lançamento de Escuro”, “mais de 200 lugares do auditório para assistir aos três super-8 portoalegrenses…”.)
A segunda afirmação relaciona um produto da Rede Globo (“Comédias de vida privada”), criado e roteirizado por Jorge Furtado, com os estúdios Disney e com a chatice em geral. É evidente a tentativa de caracterizar a geração anterior de cineastas como comprometida com a estética da Globo, com a indústria cultural, com o conservadorismo estético, ao passo que Peter Baiestorf, ídolo (parece) da nova geração, seria o representante do novo, do contestador, do esteticamente revolucionário.
A terceira afirmação é, na verdade, uma não-afirmação. Depois de analisar vários filmes e vídeos exibidos no MIX Brasil, quando chega o momento de criticar os dois representantes gaúchos, o crítico Hique Montanari (apresentado como “Publicitário, Videomaker e Prof. da UFRGS”) prefere se “abster de comentários”. A abstenção tem um sentido evidente: os dois representantes gaúchos são tão ruins que não merecem ser criticados. Ao não comentar, o crítico dá ao leitor a impressão de que nada justifica a presença de “Sexo & Beethoven - O Reencontro” (roteirizado e dirigido por um representante da antiga geração - eu mesmo) e “Lâmina do desejo” (orientado na PUC pelo mesmo representante - eu de novo) num festival alternativo e moderno como o MIX Brasil.
Os magríssimos estão chegando e pedem passagem. Isso é ótimo. Chegam atirando, o que é melhor ainda. Será que os velhos pistoleiros vão reagir a bala? De minha parte, faço apenas três considerações:
(1) os filmes da nova geração têm seus méritos, mas são, no todo, muito precários. Com exceção (e com boa vontade) de “Escuro”, são bastante chatos, mal decupados, mal montados, pessimamente interpretados. Mais chatos, pior decupados, pior montados e pior interpretados do que os filmes que a minha geração fazia quando era a nova geração. Só que não tínhamos um décimo da pretensão e nossos temas era muito mais interessantes;
(2) entre o Comédias da Vida Privada e os vídeos trash do Baiestorf, prefiro um milhão de vezes o Comédias da Vida Privada. Por uma razão bastante simples: o Comédias é um milhão de vezes melhor. O Baiestorf, além de ser reacionário política e esteticamente, não acrescenta nada ao gênero a que se dedica. Apesar dos títulos realmente criativos, é tudo muito infantil e quase sempre muito repetitivo. Acho que a nova geração precisa encontrar outro ídolo urgentemente;
(3) pior que faltar cultura pra cuspir na estrutura é faltar coragem pra fazer sacanagem. Achou ruim? Diz por quê. Achou chato? Diz por quê. Eu cansei de falar mal do Jesus Pfeil, do Rubens Bender, do Teixeirinha, do Freitas Lima, da Márcia Lara, etc. Metam o pau, companheiros! Enfiem o dedo na ferida! Se vocês não contestarem, quem contestará? E tem mais: pau no cu da cena superoitista portoalegrense! O tal circuito, por enquanto, não passa de um curto-circuito. Quero ver a bilheria de um filme pagar o outro, como cansamos de fazer no início dos 80.
Mas a verdade é que os magríssimos são a melhor coisa que aconteceu no cinema gaúcho nos últimos tempos. E o “Artigo de Cinema” é ótimo. A minha geração sentia tanta falta de algo assim que resolveu ressuscitar o NÃO. Salve Gustavo Spolidoro, salve Cristiano Zanella, salve Cristiano Trein, salve Hique Montanari, salve Rafael Sirângelo, salve Fabiano de Souza, salve salve todos os que mantêm os projetores super-8 funcionando. E vamos pra briga, que a vida começa aos 40.
Carlos Gerbase