OBSERVAÇÕES PARA A HISTÓRIA DE UM NÃO-GÊNERO LITERÁRIO
Giba Assis Brasil
Em primeiro lugar, é bom lembrar que a teoria a respeito de roteiro pode ser dividida em duas linhas, que poderiam ser chamadas, numa dualidade pouco eufônica, de estrutura e escritura. Ou seja: de um lado aquilo que diz respeito à concepção do roteiro, de outro aquilo que tem a ver com a maneira de escrevê-lo. Ou, de forma ainda mais simplificada, as velhas categorias de forma e conteúdo. Sem querer assumir inteiramente que eu esteja falando mesmo de forma e conteúdo, eu diria que a estrutura precede a escritura, mas que hoje, aqui, eu me proponho a falar de escritura. E começo definindo escritura do roteiro como a forma particular de dispor as palavras no papel para compor aquilo que a gente chama de roteiro cinematográfico.
Dito isso, recuo até uma concepção de cinema que se poderia chamar de marxista, e que entende o cinema como arte, diversão, entretenimento, linguagem, etc, mas antes e acima de tudo como indústria. E cinema é indústria por três motivos: porque precisa da máquina, da acumulação de capital e da divisão especializada de trabalho. No caso, me interessa especular um pouco a respeito dessa divisão de trabalho, como ela surgiu e o que o roteiro tem a ver com isso.
Historicamente, a primeira divisão de trabalho que ocorre no cinema é a divisão equipe / elenco, ou técnicos / atores. Que começa a se esboçar já nos primeiros filmes ficcionais, quando Lumière produz o seu “L’Arroseur arrosée”, ou antes ainda, quando Edison filma o espirro de Fred Ott. Mas que vai ficar mais clara mesmo é com Mèliés, quando a opção pelo cinema espetáculo é assumida com todas as suas conseqüências.
A segunda divisão de trabalho que vemos surgir é a que se dá entre produtor / realizador. E ela ocorre ainda no final do século XIX, quando Edison e Lumière percebem as possibilidades comerciais de explorar a curiosidade do público pelas imagens animadas e contratam cinegrafistas que são ao mesmo tempo realizadores (Edwin Porter, Alexander Promio) para rodar filmes pelo mundo afora.
A terceira divisão de trabalho especializado exigida pela evolução do cinema, entre realizador / cinegrafista, vai se dar um pouco mais adiante. Ou, mais especificamente, nos EUA, a partir de 1904-1905, quando os filmes começam a ficar mais complicados e passa a ser necessário, de um lado, que alguém oriente os atores a fim de obter a melhor interpretação possível para a história concebida; de outro lado, que alguém se preocupe cada vez mais com as possibilidades fotográficas do filme, como a luz, os enquadramentos, a revelação, as trucagens, etc.
A quarta divisão, a que realmente nos interessa, é aquela que se dá entre realizador / roteirista. E ela ocorre também nos EUA, e mais ou menos no mesmo período, quando os filmes começam a ficar mais caros. Ou seja, os produtores começam a ficar preocupados com a quantidade cada vez maior de dinheiro que estão investindo nos filmes, e precisam de alguma previsão do que vai ser o filme antes de aprovar a sua realização. Portanto, historicamente, o roteiro surge não como forma de expressão de um roteirista ou por desejo de um diretor, mas como necessidade de um produtor.
Como toda indústria, antes de investir capital em cada novo produto, o cinema precisa de uma simulação do que poderá vir a ser este produto. Diferentemente do que acontece, por exemplo, na indústria de autopeças, em que uma mesma simulação serve para uma série enorme de produtos iguais entre si, mas também diferentemente da indústria editorial, em que a simulação é quase desnecessária já que a produção consiste apenas em reproduzir, embalar, distribuir e divulgar um produto artístico/intelectual já completamente acabado. Em função de sua situação intermediária, um dos conceitos que a indústria do cinema desenvolveu para a simulação de seus produtos foi o de roteiro.
Apesar disso, mais de cem anos após a invenção do cinema, o conceito de roteiro permanece bastante fluido, mesmo em termos etimológicos. E isso porque cada país adotou, para o que nós conhecemos hoje como roteiro, uma palavra de origem diferente. Em português do Brasil, por exemplo, “roteiro” é “descrição de uma viagem”, o que me parece bastante significativo. Mas os portugueses usam a palavra “guião”, semelhante ao espanhol “guión”, ambas originárias do francês “guidón”, ou seja: a “direção do veículo” no qual viajamos. Só que a palavra francesa para o que chamamos roteiro é “scènario”, como o italiano “sceneggiatura”, significando “coleção de cenas”, ou seja: o roteiro não seria a viagem, nem o veículo, mas talvez a sucessão de imagens vistas através da janela em movimento.
Mas, no caso, nos interessa especificamente como foi chamado o roteiro no cinema feito nos Estados Unidos, onde o roteiro se tornou necessário mais cedo, onde o cinema realmente se estabeleceu como indústria. E aí, a viagem é outra.
Janet Staiger em “Blue prints for feature films” tenta seguir a história destes conceitos de roteiro no cinema norte-americano até 1930. Segundo ela, o termo francês “scénario” é justamente um dos primeiros nomes adotados para a “coleção de cenas” do filme, colocadas em ordem no papel.
Neste mesmo período, já se usava a palavra “script”, mas com um significado mais amplo: “qualquer documento escrito que tenha a ver com a preparação do filme”: uma sinopse, um roteiro detalhado, a lista de personagens ou de cenários. Em seguida, “script” passa a ser entendido como “uma coleção destes documentos”. Em 1909, a revista Nickelodeon lista os documentos que comporiam um script: “título, designação genérica, personagens, cenários, sinopse e depois o scénario, o filme descrito cena a cena, incluindo entretítulos e inserts”.
Segundo a literatura técnica da época (primeira década do século XX), recolhida pela autora, os objetivos de um “filme de qualidade” seriam basicamente três: “clareza da fotografia, ação contínua e verossimilhança” - e este tipo de exigência, seja do público, dos produtores ou da relação que se estabeleceu entre eles, vai ter reflexos não apenas na forma de construção dos roteiros, mas também no tipo de interpretação, na luz, na montagem, etc.
Já no final da primeira década, como conseqüência direta desse conceito de “filme de qualidade”, surge a necessidade de histórias maiores, a Film d’Art francesa, a passagem do filme de um rolo (10 a 15 minutos de projeção) para as produções de dois ou três rolos (20 a 40 minutos), e finalmente, pouco mais adiante, para o “feature” (longa-metragem), cuja duração, estabelecida entre 90 e 120 minutos, permanece até hoje, um pouco porque equivale mais ou menos ao tempo médio que a gente agüenta sentado numa sala escura sem ter que sair pra fazer xixi.
É neste período que surge o “continuity script”, um roteiro detalhado do filme a ser rodado, plano a plano e não mais cena a cena - o que hoje chamamos de “decupagem escrita” ou “shooting script” ou ainda “roteiro técnico”.
E quem escreve estes roteiros? Se, nos primeiros anos da indústria, era comum os produtores comprarem “scripts” de escritores avulsos, isso muda rapidamente assim que uma série de decisões judiciais determina que, quando um roteirista comete plágio, a responsabilidade é da empresa produtora. Para evitar novos problemas jurídicos, cita Janet Staiger, em 1911 todas as grandes companhias americanas tinham um “story department”, responsável por escrever os “continuity scripts” a partir dos quais eram realizados os filmes.
Mas, exatamente porque estes “continuity scrpits” estavam se tornando cada vez mais complicados e pouco atrativos, como formato, para a maioria dos escritores com um mínimo de talento criativo, em 1913, registra-se uma nova divisão: roteiristas (cada vez mais identificados simplesmente como “writers”) voltam a escrever os “scénarios” (agora chamados de “treatments”), enquanto que técnicos especializados são encarregados do “continuity script”.
Isso só vai mudar quando caras como Hitchcock trouxerem de volta para Hollywood o conceito (Eiseinsteiniano e, mais remotamente, Griffithiano) de que é o diretor quem tem que decidir os ângulos de câmara, a decupagem - tese que viria a ser confirmada pela “teoria do autor”, que surge nos anos 50 na França. E também, antes ainda, quando o surgimento do som sincronizado vai dar mais importância para os roteiristas “vindos de fora”, os escritores que são chamados da literatura e do teatro para Hollywood, a fim de escreverem diálogos de qualidade.
Exatamente neste período de surgimento do cinema sonoro, final dos anos 20, torna-se popular uma nova palavra para definir roteiro: “screenplay”, ou “peça escrita para a tela”, provavelmente uma palavra inventada por um dramaturgo, ou por um amante do teatro, ou no mínimo por alguém que acredita que o melhor do cinema vem de suas remotas origens teatrais.
Nos anos 50, surge ainda o conceito do “transcript”, ou “roteiro transposto”: são aquelas versões romanceadas de roteiros, escritas depois do filme pronto e a partir do filme (e não do roteiro), vendidas em livrarias, até hoje, aqui no Brasil com o nome de “roteiros”.
E há, por fim, o que poderíamos chamar de conceito contemporâneo de roteiro, dominante desde os anos 50, e que é assim definido por pelo menos dois autores atuais de livros sobre roteiro, um norte-americano e um francês: “roteiro é uma história contada em imagens, mas através de palavras”. Um discurso verbal, escrito de forma a permitir a pré-visualização do filme por parte do diretor, dos atores, dos técnicos e dos possíveis financiadores. Um instrumento de trabalho e de convencimento que, conforme as necessidades da indústria a cada momento e em cada local, já foi mais técnico ou mais literário, mais detalhado ou mais aberto. Roteiro enfim é o elemento inicial fundamental para a elaboração do projeto de um filme.
Roteiro não é literatura. Ou seja: não é uma forma acabada de linguagem, não deve ser pensado como algo a ser apresentado ao público, mas como um momento intermediário de criação, e que portanto deve servir ao seu objetivo final: o filme. Sempre que tiver que optar entre uma frase agradável, esperta, “literária”, e uma frase clara, o roteirista deve ser claro.
Indo para o campo estrito da escritura, pode-se dizer que um bom critério para o reconhecimento do que hoje entendemos como um roteiro poderia ser a presença dos seguintes ELEMENTOS TEXTUAIS: (1) a DIVISÃO DE CENAS claramente indicada; (2) a NARRAÇÃO de toda a ação do filme, na ordem cinematográfica; (3) breve DESCRIÇÃO física dos personagens e dos cenários quando eles aparecem pela primeira vez; (4) as FALAS (diálogos e textos de narração) completos e destacados do restante do texto; e (5) RUBRICAS indicando eventuais motivações dos personagens em determinadas falas.
Mas, além disso, o texto de um roteiro deve ser escrito respeitando determinadas regras (sujeitas, é claro, às exceções de sempre), que poderíamos resumir assim: (a) ser narrado em terceira pessoa; (b) ter os verbos sempre no presente; (c) usar frases construídas na ordem fílmica, ou seja, com as palavras compondo a frase na mesma ordem em que vão aparecer no filme; (d) evitar qualquer frase ou expressão que se refira a algo não filmável; (e) utilizar o mínimo possível de especificações técnicas, ou expressões como “corta para”, “a câmara mostra”, “vemos agora”; (f) ter um tempo de leitura o mais possível aproximado do tempo do filme.
Mas um bom roteiro deve ainda se preocupar em (g) sugerir uma decupagem. Até porque, de qualquer maneira, o leitor do roteiro vai visualizar o filme pela primeira vez orientado por uma espécie de “decupagem implícita” que está presente em qualquer texto narrativo. Essa decupagem implícita se manifesta no tamanho das frases, no uso do parágrafo, na pontuação e principalmente no conteúdo do texto.
Exemplos: “Paulo abre a porta e entra na sala” sugere que a câmara entra junto com ele. Ao contrário, “A porta se abre e Paulo entra, apressado” indica que a câmara já estava dentro da sala, mostrando primeiro a porta, e só depois o personagem que entra. “Na sala há vinte estudantes desatentos” é um plano aberto, geral. “Marcos percebe a entrada de Paulo e faz um sinal para Marisa, a seu lado” já é um plano mais próximo, talvez com uma panorâmica curta. “Marisa disfarça e fica ajeitando os óculos sobre o nariz” exige um close. E assim por diante.
Todos estes elementos e estas regras estão subordinados a um único princípio básico. O objetivo fundamental de um roteiro seria, dentro deste conceito contemporâneo, “estabelecer, com o leitor, uma relação o mais semelhante possível à relação de um espectador vendo o filme”. Um objetivo impossível de se atingir, é claro, uma vez que um filme são imagens em movimento numa tela acompanhadas de som, e um roteiro vai ser sempre palavras sobre papel.
Uma utopia criativa a serviço de um objetivo fundamentalmente econômico: uma boa definição não só de roteiro, mas da própria essência do cinema.
Giba Assis Brasil 01/12/1999
Usina do Gasômetro
Diálogos Cinema - Literatura: Cinema para escritores
(promoção APTC e AGE)