PRAZER, CINEMA GAÚCHO

Giba Assis Brasil
agosto de 1987

(documento enviado pela APTC/RS ao 2º Encine - Encontro Nacional de Cineastas, São Paulo, 10 a 13/ago/1987)

O cinema feito no Rio Grande do Sul, assim como todo o cinema brasileiro realizado fora dos tradicionais centros produtores (leia-se Rio de Janeiro e São Paulo) sempre foi um fenômeno episódico, amparado no trabalho e na insistência de uns poucos eternos pioneiros, e constituído na forma de ciclos de curta duração, que invariavelmente se fecharam ou com a migração e incorporação de seus talentos ao “centro” (nos casos mais positivos), ou com a dispersão, endividamento e melancólica desistência de todos (na grande maioria dos casos). Foi assim, com diferentes resultados e guardadas as proporções dos respectivos momentos históricos, em Cataguases, Campinas, João Pessoa, Curitiba, Recife, Belo Horizonte, Salvador e Porto Alegre.

O atual cinema gaúcho, nesse sentido, não está muito longe do pioneirismo de Eduardo Abelim (anos 20) ou do mestre Salomão Scliar (anos 50), nem da safra pré-industrial e regionalista conhecida como “ciclo Teixeirinha”, que rendeu mais de 20 longas-metragens entre 1966 e 1981. Sem dúvida herdou muito dos curtas-metragens realizados nos anos 70, em especial as pesquisas históricas de Antônio Jesus Pfeil e as experiências estéticas de Antônio Carlos Textor. Mas surge, fundamentalmente, no início dos anos 80, através do super-8, do cineclubismo, da televisão, da Faculdade de Comunicação da PUC e do Festival de Cinema de Gramado, com a proposta de um cinema urbano, centrado no autor, mas estruturado no trabalho de equipe e voltado para o público.

Este cinema gaúcho, ainda em sua fase amadora, inventou no Brasil o filme super-8 com carreira comercial, através da criação de uma sala de exibição específica da bitola (o “Ponto de Cinema” de Carlos Schmidt, 1979) e de títulos como “Deu pra ti anos 70” (1981), “Coisa na roda” (1982), “Inverno” (1983) e “Tempo sem glória” (1984), todos de longa metragem, vencedores de quatro edições seguidas do Festival de Super-8 de Gramado, e com um público total de mais de 85 mil espectadores no estado, além de eventuais exibições em outras capitais.

Numa fase seguinte, de produção independente, são realizados três longas em 35 mm: “Verdes anos” (1984), “Me beija” (1984) e “Aqueles dois” (1985), além de dois em 16 mm: “Adyos General” (1986) e “O gato” (ainda inacabado). Essa produção se inicia num momento particularmente significativo: dos 90 filmes realizados no país em 1984, 64 são pornográficos, 22 são produções da Embrafilme e apenas 4 escapam a essas duas categorias (dados do relatório final da Comissão Sarney-Pimenta, 1986). Desses 4 filmes, 2 foram realizados em Porto Alegre. Ou seja: a produção independente gaúcha chega ao cinema comercial exatamente quando produções independentes se tornam comercialmente inviáveis em todo o país.

Os resultados são óbvios: embora “Verdes anos” tenha sido assistido por 140 mil pessoas em Porto Alegre, as dificuldades de distribuição e comercialização atingem os filmes em bloco, o retorno comercial inexiste, os realizadores e suas empresas não se capitalizam, o modo de produção “cooperativado” se inviabiliza. A mão de obra deixa de ser remunerada por dividendos (o que já havia sido conquistado, mesmo precariamente, no Super-8) e se dispersa. O novo cinema gaúcho, para não deixar de existir, é obrigado a começar tudo de novo.

A fase profissional é iniciada com a fundação (em 1985) da APTC/RS (Associação Profissional dos Técnicos Cinematográficos do RS), hoje presente em todas as instâncias decisórias do cinema brasileiro e reconhecida como a legítima representante dos cineastas e técnicos de cinema do estado.

A produção de curtas-metragens é reencorajada, e em pouco tempo se torna uma das mais significativas do país, com títulos como “No amor” (1982), “Interlúdio” (1983), “Temoral” (1984), “Madame Cartô” (1985, o primeiro curta gaúcho produzido pela Embrafilme), até o superpremiado “O dia em que Dorival encarou a guarda” (1986). Embora a maior parte da nova safra seja de filmes de ficção, há também filmes experimentais como “A divina pelotense” (1984) e “Carrossel” (1985), documentários como “Cone Sul” (1985) e uma contínua produção de desenhos animados: “O natal do burrinho” (1984), “As cobras” (1985), “Em nome da lei” (1986). No último Festival de Gramado (1987), são apresentados nada menos que 5 curtas gaúchos em 35 mm: “Viva a morte”, “Obscenidades”, “Trailer”, “Passageiros” e “O hemisfério de sombra”. Atualmente (agosto de 1987), há 3 curtas em pré-produção (“A voz da felicidade”, “O palhaço o que é?” e “In memoriam”) e 4 em finalização (“Vicious”, “Prazer em conhecê-la”, “O reino azul” e “532”), além de uma dezena de novos projetos.

Mas a APTC/ABD/RS entende que, embora os curtas (por seu conteúdo cultural) sejam essenciais para a renovação da linguagem e o surgimento de novos realizadores, só a produção regular de longas-metragens garante um mercado de trabalho relativamente estável, e portanto a continuidade de nossa existência enquanto núcleo de produção. Dentro dessa ótica, entre 1985 e 86, a entidade intermediou, com a então direção da Embrafilme, um acordo a partir do qual foi selecionado e produzido “O mentiroso”, primeiro longa-metragem gaúcho com participação da Embra, e que se encontra hoje em fase de finalização.

Três outros projetos de longas foram entregues pela APTC à Embrafilme no último dia 23 de janeiro, assim que terminaram as filmagens de “O mentiroso”. A atual direção da Embra prometeu uma resposta até o dia 15 de março, depois transferiu-a para durante o Festival de Gramado, e agora adiou-a até a definição da famosa “reformulação das normas de investimento”. Com as empresas descapitalizadas e a iniciativa privada retraída, o cinema gaúcho de longa metragem encontra-se hoje na mesma situação que o do resto do país: inativo, à espera de resposta oficial.

Nós, que fazemos o cinema gaúcho, continuamos acreditando na sobrevivência dessa idéia, tendo em vista algumas características peculiares, que o diferenciam da maioria dos outros “ciclos regionais” do cinema brasileiro, quais sejam:

1º) embora tenha buscado uma linguagem própria, nunca se fixou numa temática regionalista, rapidamente consumível;

2º) é fato observável que seu potencial criativo e sua capacidade de comunicação com o público não têm demonstrado sinais de saturação; pelo contrário, têm crescido a cada filme;

3º) não é feito por um grupo fechado de pessoas, tendo procurado a cada filme chamar um ou mais técnicos e atores de fora (e sendo que alguns deles terminam mesmo ficando no RS);

4º) tem se renovado a ponto de resistir à pequena mas constante perda de quadros para o eixo Rio-São Paulo;

5º) até hoje, nunca dependeu de verbas oficiais para continuar produzindo.

Assim, entendemos a situação atual como crítica, mas de maneira nenhuma desesperadora. Como todo o cinema brasileiro, estamos lutando para encontrar a nossa saída, e a encontraremos de uma forma ou de outra. No entanto, não abriremos mão de nossos direitos, já que os conquistamos não por apadrinhamentos políticos ou por equívocos federativos, mas simplesmente demonstrando nossa efetiva capacidade de fazer cinema.

Acreditamos na descentralização do cinema brasileiro, mas não a vemos como uma questão simples, resumível a duas ou três frases de efeito. Sem nenhuma modéstia, enxergamos no nosso próprio exemplo uma prova cabal de como descentralizar pode ser saudável para todos. E temos a convicção de que, sem discutir seriamente esse assunto, o 2º ENCINE não será verdadeiramente um Encontro Nacional de Cineastas.