SEXO, PÚBLICO E CENSURA EM "TOLERÂNCIA"

por Carlos Gerbase
(dezembro de 2000)
originalmente publicado no Não 73

Introdução

O legal mesmo é ler as “Opiniões do público” e, sem elas, nem valeria a pena publicar o resto. Mas, só pra situar melhor a questão, escrevi o “Breve histórico” e acrescentei um texto (“Quem classifica a classificação?”) que escrevi para a Zero Hora, em meados de novembro, mas que acabou não saindo, porque a matéria inteira sobre censura dançou (por razões que desconheço).

1: Breve histórico

Desde que “Tolerância” recebeu censura de 18 anos por, entre outras razões, na opinião dos “classificadores” de Brasília, apresentar “sexo explícito” e “desvirtuamento de valores éticos e morais”, tenho pensado bastante a respeito da maneira como o sexo foi representado no filme e na maneira como o público brasileiro reage a essa representação, com possíveis reflexos na bilheteria.

Há, basicamente, duas cenas eróticas: na primeira, era importante mostrar que aquele casal (Júlio/Márcia), apesar estar constituído há 18 anos, ainda tinha uma gratificante vida sexual. Do contrário seria outro filme. Na segunda, era fundamental mostrar que o Júlio estava confuso em relação ao desejo que sentia por Anamaria e à repressão (dele mesmo e das “regras” sociais) ao seu desejo. Quando, finalmente, eles conseguem transar, há uma mistura de tesão e culpa, o que leva os amantes a um comportamento bastante agressivo.

Assim, pensamos (uso o plural porque o filme foi decupado por mim, pela Ana Azevedo, pelo Fiapo Barth e pelo Alex Sernambi) em fornecer ao espectador todos os elementos necessários para que essas informações fossem passadas, além de dar as diferentes cargas emocionais que as cenas pediam. Nem sexo a mais, nem sexo de menos: apenas o que julgávamos necessário para que elas fossem boas cenas de sexo. Filmamos sem problema algum, e a opinião de todos era que havíamos obtido o que queríamos.

Depois, na montagem, houve uma segunda avaliação. O Giba fez um corte “largo”, usando quase todos os enquadramentos disponíveis, e me chamou para discutir a melhor maneira de cortar as cenas. A proposta do Giba, em relação ao que vocês viram no filme, era de talvez diminuir o número de planos e também a duração, em ambas as cenas, mas especialmente na primeira. Não topei. Achei que, pelo contrário, elas poderiam até ser maiores. Os demais sócios da Casa de Cinema também opinaram, ficando, com sutis diferenças, ao lado do Giba.

Num determinado momento, cheguei a cortar todo o diálogo que antecede a segunda transa. Entretanto, depois de mais algumas reviravoltas, tudo voltou ao que estava, ou seja, à proposta inicial do Giba (aproveitando quase todos os planos filmados nas duas cenas). Não sei se me entenderam: contra a opinião dos meus amigos e sócios, mantive as cenas como eu achava que deveriam ser, usando minha prerrogativa de “diretor”. Os motivos? Dois:

1/ eu gostava das cenas como elas estavam e não as achava longas demais ou apelativas demais. Estavam quentes e realistas, como eu sempre as imaginara;

2/ eu achava que a grande maioria do público concordaria comigo; ou seja, apostava que as cenas não afastariam o público do filme.

Não me arrependo de minha decisão e a tomaria outra vez. Mas, em relação ao segundo motivo, tenho que admitir que eu estava - pelo menos parcialmente - errado. Apesar dos elogios específicos a estas cenas serem tão freqüentes quanto as restrições, elas chocaram muita gente e dificultaram a carreira do filme. Basta dar uma olhada nesse resumo das mensagens que chegaram ao site de “Tolerância” sobre as trepadas. Eu editei várias delas, cortando as frases que não tinham relação com o assunto. Aí vai:

2: Opiniões do público

Cláudia Regina Freitas - Porto Alegre/RS - Achei o filme muito bom! Só acho que as cenas de sexo poderiam ter mais efeitos especiais, não aparecendo totalmente os corpos para não parecerem tão chocantes. Tinha uma velhinha no cinema, que, depois do filme, foi tomar um sorvete (acho que para se refrescar). Eu tinha o meu namorado (que depois me refrescou!).

Marquinhos - Rio de Janeiro/RJ - Eu não vi nem quero ver essa m, mas sei que deve ser uma baixaria como todo filme brasileiro.

Um leitor que pediu para não ser identificado, Caxias do Sul/RS - (…) Só um pequeno comentário: apesar de ter adorado as cenas eróticas, principalmente com a da Maitê, acho que para a maioria das pessoas, como eu, será inevitável reportar-se ao velho-recente cinema de produção nacional. Confesso que me lembrou alguns filmes brasileiros. Mas deixo claro que achei muito bom.

Eduardo Camboim Bento - A Maitê tira a roupa?

Magali de Souza - Campinas/SP - Acho realmente que o cinema brasileiro tem todos os ingredientes para conquistar o mercado. Considero apenas a não necessidade das cenas ousadas de sexo, característicos de nossos filmes. Acredito que os mesmos ingredientes da trama não perderiam o efeito sobre os telespectadores sem tantas cenas ousadas. Não que seja moralista, mas acredito que o filme por isso perdeu um pouco o verdadeiro sentido da trama.

John - Rio de Janeiro/RJ - Acabei de chegar do cinema, achei o filme muito bom, bom demais para os padrões brasileiros. As cenas quentes são bem reais, o filme inteiro é ótimo!

Gustavo Melo Ribeiro - Canoas/RS - É uma grande bobagem a censura 18 anos! É a volta da censura!

Ronei Jose de Vargas - Sapucaia do Sul/RS - (…) É uma das poucas vezes que vi cenas de sexo sem serem vulgares ou colocadas sem nexo com a trama.

Larissa Clarindo - Rio de Janeiro/RJ - Assisti ao filme com o meu namorado na última sessão do cinema. Depois do filme discutimos até meia noite e meia, falamos muito sobre traição, praticamente brigamos. No final eu disse: filme bom é assim mesmo, ou a gente sai calado ou discute o filme até essa hora. Tolerância levantou em nós, justamente, a discussão sobre tolerância.

Ana Celina - Canoas/RS - (…) Um filme com pitadas de putarias totalmente gerbaseanas. (…) Parabéns a toda equipe.

Valdir Renato Medeiros - São Paulo/SP - (..) Poxa, que direção primorosa e os cuidados com cenas de sexo tão bem feitas.

Rafael Montoito - Pelotas/RS - (…) Tirando algumas cenas de sexo em excesso (por que os filmes brasileiros sempre são recheados de cenas de sexo?), me surpreendi muito com o roteiro e com o final inesperado; ali percebi o profissionalismo da produção. Realmente, a história se mostra maravilhosa!

John Smith - Patópolis/Disneylândia - Que m. de filme! Honestamente, vocês levaram mais de três anos escrevendo esse roteiro? Que lixo! Tem tanto conflito quanto um filme pornô (gênero no qual o sr. diretor Carlos Gerbase parece ser especialista - aonde posso encontrar o “Aulas Muito Particulares”?). Os diálogos são chulos, é uma chuva de clichês tão grande que depois de 5 minutos de projeção já se sabe tudo que vai acontecer até o final do filme. Um dos piores filmes que já vi - e olha que eu nem falei do elenco, da fotografia, e da direção do terrível Carlos Gerbase, uma pessoa sem talento nenhum, porém, misteriosamente, é absurdamente arrogante e petulante. Sr. Gerbase, seu filme é uma b. Ao invés de só ficar fazendo cena de sexo explícito, achando que isso é alguma revolução da linguagem, tenta aprender a escrever roteiro. Nosso cinema precisa é de criatividade, não de mais um filme cheio de cenas de sexo.

Henrique - Rio de Janeiro/RJ - (…) Muito criativo da parte do diretor e um trabalho muito bom por parte das atrizes (principalmente nas cenas de nudez e sexo). Parabéns ao elenco!!!

Renata Costa - Rio Grande/RS - Achei com muitas cenas de nudez, que não tinha necessidade. Que desvalorizaram o filme.

Cristiane Sommer - Canoas/RS - Não gostei muito do filme, pois fui lá para assistir a um filme não a cine Privé. Achei o filme muito bagaceiro, poderiam ter maneirado nas cenas, sei lá, uma coisa mais reservada ou algo do tipo.

Daniel Paixão - Niterói/RJ - Eu levei minha mãe para ver e acho que ela não gostou. Disse que tinha “muito sexo”. Eu, ao contrário, achei que as cenas de sexo encaixaram-se bem na trama que, afinal, estava sensacional, muito bem “amarrada”.

José Ricardo Pinto - Rio de Janeiro/RJ - (…) Gerbase é claramente simpático ao universo feminino. As mulheres são decididas, sensuais, espertas e fortes, enquanto os homens são vacilões, medrosos e arredios. (…) Palmas também para sua direção segura de atores do calibre de Maitê, que surpreende a cada tomada como a decidida advogada. Mas Maria Ribeiro é o grande achado do filme. Com seu jeito doce e venenoso, a garota dá um banho de sedução e fica impossível não cair em sua lábia.

André Lux - São Paulo/SP - (…) São notáveis algumas das cenas entre os protagonistas (interpretados com surpreendente sobriedade por Roberto Bomtempo e Maitê Proença) principalmente pela naturalidade que traduzem para a tela, seja fazendo amor, seja discutindo temas polêmicos - como na hilariante seqüência onde Júlio “confessa” teclar sacanagens pela Internet. Digna de nota também é a excelente atriz que dá vida à garota insinuante, visivelmente inspirada na “Lolita” de Nabokov só que maior de idade talvez por medo de chocar aos mais conservadores, que injeta sangue novo à trama ao tentar seduzir Júlio (Bomtempo), exatamente no momento em que o casal entra em crise, depois que Márcia (Maitê) confessa tê-lo traído com um de seus clientes.

Rodrigo Ramiro - Também vou defender as cenas de sexo, pois a censura proíbe a entrada de crianças, só falta ter que avisar “olha tem cenas de sexo”, daqui a pouco teremos avisos como: contêm brigas familiares, nariz sangrando, meninas de biquíni, homossexuais, drogas e o pior: tem gente fumando cigarro (este demônio) no filme. Isto é inadmissível quando estes ingredientes fazem parte da trama.

Cardoso - Porto Alegre/RS - (…) Gostei também das cenas de sexo. Sem exageros, sem apelações. Só nos momentos que eram necessárias. Equilíbrio, mais uma coisa rara.

Cristiano Batistella Dalcin - Porto Alegre/RS - Fui com amigos ao cinema e saímos dispostos a procurar a tal endereço da Rua Garibaldi, onde morava a Ana Maria. Em homenagem a ela, ainda comemos uma pizza califórnia.

3: Quem classifica a classificação?

Dizem que não há mais censura no Brasil. Há, isto sim, um sistema de classificação, visando a determinar o que pode ser assistido livremente por cidadãos de todas as idades, e o que não deve ser assistido por quem tem menos de 12, 14, 16 ou 18 anos. Eu acho muito positivo que não se cortem mais cenas de filmes (o que senti na pele - ou no celulóide - logo no meu segundo filme, um super-8 chamado “Sexo & Beethoven”, no distante ano de 1980), ou que obras de arte sejam simplesmente proibidas. Mas, ao ser informado de que meu filme “Tolerância” receberia a classificação de “Impróprio para menores de 18 anos”, fiquei pasmo. E indignado. E disposto a dizer alguma coisa sobre o fato. Então, vamos aos fatos.

Menos de dois anos atrás, ao chegar a uma sala de cinema para assistir a um filme da Disney (censura livre), acompanhado de minha filha, então com 8 anos, percebi que a programação que eu consultara estava errada, e a única alternativa seria encarar “O troco”, com Mel Gibson, classificado como “impróprio para menores de 12 anos”. Conversei com minha filha, expliquei para ela que não se tratava de um filme de censura livre, disse que provavelmente haveria cenas violentas, talvez algumas cenas de sexo, e perguntei se ela estava disposta a assisti-lo mesmo assim.

Ela disse que sim, pois estava mais que acostumada a ver violência e sexo na TV. Além disso, “era só 12 anos”. E entramos. Eu, com a consciência absolutamente tranqüila, pois sabia da maturidade da minha filha; ela, aborrecida por não ver o filme que pretendia, mas disposta a curtir o único produto disponível. Pois bem, na primeira cena de “O Troco” uma garota morre de overdose de heroína (sendo que a aplicação da droga é mostrada com grande realismo), e, durante todo o filme, há doses maciças de sexo (com requintes sado-masoquistas) e assassinatos a sangue-frio. Dá pra imaginar o trabalho que eu tive para explicar tudo aquilo para minha filha. E os classificadores anunciaram que uma criança de 12 anos poderia ver “O troco” sem a companhia de um pai ou responsável!

Há duas semanas, fui assistir a “Todo mundo em pânico”. É interessante como um filme classificado como “impróprio para menores de 14 anos” é capaz de apresentar uma lista tão completa de assuntos e imagens antes interditos: cocaína, maconha, tráfico de drogas, homossexualismo, foto do órgão reprodutor masculino, o próprio órgão reprodutor masculino, o ato sexual, banhos de sangue, cabeças cortadas, assassinatos e atropelamentos variados.

Numa das primeiras cenas, um pai, traficante de cocaína em dificuldades, diz para a filha, provavelmente menor de idade, que ela deve misturar a droga com bicarbonato de sódio para o lucro ser maior, caso ela tente vender o produto em sua ausência. Claro que todos estes assuntos e imagens estão num contexto tão débil mental (e não “infantil”, é bom frisar) que eles perdem seus significados, viram mero discurso, fala vazia de conteúdo, conversa pra boi sorrir. Mas estão lá, prontos a serem consumidos e interpretados por adolescentes de 14 anos.

Me disseram que no desenho-animado “South park”, a que ainda não assisti, há um desfile interminável de palavrões, situações politicamente incorretas e uma interessante relação homossexual entre o diabo e Sadam Hussein, com uma representação bastante realista de um pênis. “South Park” é impróprio para menores de 14 anos. Deve ser um bom filme (a série de TV é ótima), mas sem dúvida é para adultos. Ou jovens com mais de 16 anos.

E, agora, estes mesmos classificadores querem que “Tolerância” seja “impróprio para menores de 18 anos”, justificando tal classificação por, supostamente, propor um “desvirtuamento dos valores morais” e apresentar cenas de consumo de drogas, sexo e violência. Não dá pra entender. Que critérios são estes? Por quê “O troco”, “Todo mundo em pânico” e “South park” podem ser vistos por menores de 14 anos, e “Tolerância” não pode? Quem explica?

E o caso de “Beleza americana”, também com a classificação de 14 anos? Por acaso não é um filme cheio de cenas de sexo, drogas e violência? Por acaso não há, neste filme, cenas de adultério e outros supostos “desvirtuamentos de valores morais”?

“Tolerância” é um filme de idéias. Todos os elementos dramáticos do filme - sexo e violência, principalmente - têm uma função específica. Nada é gratuito. Há duas cenas de sexo: na primeira, era importantíssimo mostrar que o casal que protagoniza o filme era feliz e tinha uma excelente vida sexual; na segundo, era fundamental mostrar que o personagem estava dilacerado entre o desejo que sentia e a repressão moral (dele mesmo e da sociedade), o que transforma a transa numa experiência ao mesmo tempo muito sensual e terrivelmente trágica.

Há uma cena da maconha, que só acontece para mostrar como as duas gerações (pai e filha) têm dificuldade para dialogar sobre o cotidiano, o que inclui as drogas. Não há qualquer apologia das drogas. Perto de “Todo mundo em pânico”, “Tolerância” é mais careta que “Ela tornou-se freira”.

O certificado fala em “desvirtuamento dos valores morais”, o que é uma visão absolutamente oposta à realidade do filme. “Tolerância” é, antes de mais nada, uma discussão sobre a moral da sociedade contemporânea: a advogada mente no tribunal, o editor mente na sua revista, mas todos fingem que a verdade está acima de tudo. Existe temática mais importante do que essa para a juventude brasileira?

Sexo e violência são temas absolutamente banalizados pela televisão brasileira. Os adolescentes simplesmente não pensam mais sobre eles, tal a carga audiovisual despejada diariamente. “Tolerância” é um filme para fazer pensar sobre sexo e violência na vida real. Este é o seu grande pecado.

Acho que jovens de 16 anos são plenamente capazes de ver a diferença entre a exploração comercial dos temas e a sua discussão. Por isso, gostaria muito que eles vissem o filme, que foi classificado de uma maneira absolutamente injusta, considerando os critérios que vêm norteando as classificações nos últimos tempos.

Dessa maneira, é possível classificar os classificadores em uma três alternativas abaixo:

a) débeis mentais pagos por nós (contribuintes), pois não têm qualquer critério para fazer a classificação;

b) pessoas de má fé, que livram a cara de filmes estrangeiros e prejudicam um filme brasileiro;

c) incompetentes crônicos, que não sabem o que estão fazendo.

Escolha, caro leitor. Pra mim, tanto faz. Eu só queria, para o nosso filme, o mesmo tratamento dado para os outros.