por Jorge Furtado
(09/06/1999)
originalmente publicado no NÃO AO VIVO
Quem ainda não visitou a seção “Não Recomenda” está perdendo o melhor do Não. Estou vindo de lá agora, fui conhecer o sítio Dragão do Mar, adicionado pelo Giba. Já tinha ouvido falar, mas me perdi do endereço. Através dele fui dar no SPEC, sítio criado “para que roteiristas sérios possam obter feedback de seus colegas”. É uma espécie de clube do roteiro (em inglês) onde os sócios mandam seus trabalhos para que os outros comentem, avaliem e dêem palpites. Muito gente acha, e eu também, que entre todas as peças que constroem um filme é o roteiro a que mais determina se ele funciona ou não. Há bons filmes mal dirigidos, pessimamente interpretados, mal iluminados e precariamente produzidos, mas não lembro de ter gostado de um filme feito a partir de um roteiro ruim. (É bom lembrar que roteiros medíocres são freqüentemente melhorados por diretores, produtores, atores ou montadores experientes e o público não fica sabendo. Mas se o roteiro era ruim, bom o filme não fica). Parte do problema pode ser resolvido com mais trabalho, mais estudo e mais troca de informações e para isso um sítio como este pode ser muito útil. Mas botar na roda um roteiro não-filmado tem lá os seus riscos.
O primeiro e mais simples de resolver é o dos direitos autorais. Aviso a todos a quem não consigo convencer a não me mandar seus roteiros que não leio textos não registrados na Biblioteca Nacional. Vá que eu não leia o roteiro e um dia tenha uma idéia muito parecida, por exemplo, uma história de amor entre dois jovens de famílias rivais. Não quero ser acusado por ninguém de ter copiado sua idéia genial. (Não é muito difícil fazer o registro. Tem que mandar uma cópia impressa ou datilografada, com as páginas numeradas e rubricadas, uma a uma, preencher formulário padrão - eles mandam por fax - e remeter, com um cheque nominal (era de R$ 4) à Fundação Biblioteca Nacional, para: Escritório de Direitos Autorais, Fundação Biblioteca Nacional, Rua da Imprensa, 1– Sala 1205 CEP 20030-120 Rio de Janeiro RJ Tel: (021) 220-0039 Fax: (021) 240-9179).
O segundo e bem difícil de evitar é a mediocrização do roteiro. A democracia tende ao centro, basta ver a votação do PFL e do PSTU em Porto Alegre. Roteiros inspirados em “tendências de mercado” ou exaustivamente debatidos em vários grupos quase sempre geram filmes medíocres, previsíveis, descartáveis. Eugene Vale termina seu livro (“Técnicas de roteiro para cinema e televisão”, o melhor do gênero) falando sobre “a convicção audaz”, aquela certeza não compartilhável que move os criadores, quase sempre em direção ao desastre, mas que, quando dá certo, transforma o mundo. Ela não substitui nem de longe a leitura e o conhecimento daquilo que já foi feito mas é ingrediente fundamental na receita dos grandes filmes.
O mais seguro é, depois de ler bastante, escrever o roteiro, registrá-lo e mostrá-lo a um ou dois amigos. Amigo, s.m.: pessoa que tem com você intimidade suficiente para dizer “não gostei” e continuar seu amigo; pessoa que vai ficar realmente feliz se você se der bem - é fácil achar quem fique triste quando você se dá mal. De preferência, amigos alfabetizados.
Outra boa idéia é ler bons livros, inclusive alguns sobre o assunto:
-- VALE, Eugene. Tecnicas del Guion Para Cine y Television. Editorial Gedisa, Barcelona, Espanha, 1989.
-- CHION, Michel. O Roteiro Cinematográfico. Martins Fontes, São Paulo, 1989.
-- CARRIÈRE, Jean-Claude e BONITZER, Pascal. Práctica del Guión Cinematográfico. Ediciones Paidos, Barcelona, Espanha, 1991.
-- CARRIÈRE, Jean-Claude. A Linguagem Secreta do Cinema. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1995.
-- VOGLER, Christopher. A Jornada do Escritor. Estruturas míticas para contadores de histórias e roteiristas. Ampersand Editora, Rio de Janeiro, 1997.
O livro do Vogler - bíblia de Lucas e Spielberg - é baseado no “Herói de Mil Faces”, do mitólogo Joseph Campbell (de quem foi aluno) que por sua vez apóia suas teorias na mitologia grega e no estudo dos contos populares. Aliás, quase todas as inovações nas estruturas da narrativa surgem na linguagem popular, o mesmo berço da língua. Os escritores só tem o trabalho de botar no papel, citando a fonte ou não. Guimarães Rosa aprendeu quase tudo com os sertanejos. Simões Lopes Neto, segundo o Aurélio, recebia “gente simples para longas conversas”. Shakespeare, que eu saiba, nunca inventou uma história. E olha o que o Mário de Andrade escreveu quando foi acusado de “se inspirar” num livro do naturalista Koch-Grünberg para escrever Macunaíma: “Copiei sim. O que me espanta, e acho sublime de bondade, é dos maldizentes se esquecerem de tudo quanto sabem, restringindo a minha cópia a Koch-Grünberg, quando copiei todos. Confesso que copiei, copiei as vezes textualmente. Quer saber mesmo? Não só copiei os etnógrafos e os textos ameríndicos, mas ainda, na Carta pras Icamiabas, pus frases inteiras de Rui Barbosa, de Mário Barreto, dos cronistas portugueses coloniais…” O genial de Mário (assim como de Rosa, Shakespeare e Lopes Neto) não está na “originalidade”, adjetivo muito usado por quem desconhece o passado, mas sim no talento com que mescla conhecimento e “convicções audazes”– Quem antes dele poderia terminar um romance com a frase “Tem mais não”?
Duas piadas. A primeira é atribuída ao Einstein, respondendo a quem lhe recomendou que usasse um caderno para anotar as idéias que tivesse: “Idéias, meu amigo, eu tenho bem poucas”. A segunda é piada mesmo. Homem encontra um velho amigo, gago de nascença. Homem: “E então, como vai? Que tal o curso que fez para curar sua gagueira?” Gago: (prontamente) “O rato roeu a roupa do rei de Roma”. Homem: (espantado) “Que maravilha! Perfeito!” Gago: “O-o di-fi-fi-fi-cil é arru-ru-ma-ma-mar uma conv-v-v-v-versa para encaix-x-x-xar esta fr-fr-fr-frase.” Antes de falar mal do Mario de Andrade, tente arrumar uma conversa para encaixar uma frase do Rui Barbosa.
E os 500 anos? Bem, resolvi escrever sobre roteiros e contos populares ao ler um estudo de Câmara Cascudo sobre os contos tradicionais brasileiros. Ele faz referência a um elemento narrativo presente em muitos contos, o que ele chama de “andou-andou-andou”. É aquele momento de transição, quando o herói (pode ser o Príncipe, o Gato de Botas ou Branca de Neve) parte para sua aventura, deixando o “mundo comum em direção ao mundo especial” (Campbell). “O herói deixou sua aldeia. Andou, andou, andou e foi dar numa praia paradisíaca.” No cinema este momento “andou-andou-andou” é quase sempre representado por uma seqüência sem falas, uma sucessão de planos geralmente ligados por fusões – cobertos por uma trilha, que leva Indiana Jones da América ao Oriente ou transforma o Capitão Blood de renegado da corte em terror das Caraíbas. Para montar a seqüência são necessários pelo menos três planos. Por que três?, pergunto eu. Três, eu mesmo me respondo, para que o plano intermediário separe o primeiro do último, criando a sensação de distância percorrida: o plano 3 não faz fronteira com o plano 1, a volta vai ser difícil. Pois a cena “andou-andou-andou”, nos informa Câmara Cascudo, está presente em várias narrativas do índio amazônico: “uatá-uatá-uatá”.
A partir de hoje, quando vir num filme uma daquelas seqüências de passagem com três planos (entra no carro/sai de carro/chega de carro) lembre-se do “uatá-uatá-uatá” e desconfie da tal “originalidade” cantada em prosa, verso e contra-capas de fitas de vídeo.
Jorge Furtado
Visite o SPEC em http://www.yorku.ca/faculty/arts/spec/spec.html. Mais sobre Câmara Cascudo em http://www.camaracascudo.org.br/