por Jorge Furtado
outubro de 2002
(Texto para o encontro promovido pelo SESI, em São Paulo, no dia 30 de outubro. Tema: livre.)
ao som de “Bags Groove”, Miles Davis e turma. (1)
Tema livre? De preferência, começar por cima. Deus, por exemplo. Nada de muito novo a dizer sobre Deus. O livro do Jack Miles, “Deus, Uma Biografia” (2) é muito bom, mas o segundo, sobre Cristo, é melhor (3). Ou eu sei mais sobre o assunto e sobre o personagem, aproveito melhor a história.
Sempre gostei do novo testamento, quatro versões da mesma história, uma espécie de Rashomon (4) sobre um dos maiores personagens desde sempre (o maior?). O Cara, com C maiúsculo, antes dele e depois dele. “Toda a humanidade está perdoada mas o senhor tem que morrer”. Este é o sentido do epílogo cristão ao texto sagrado dos judeus. O livro do Miles começa assim, direto ao ponto, como Kafka (5).
O Jean-Claude Bernardet (6) descobriu que eu sempre falo de Deus. Há outro assunto? O Torero (José Carlos), que tem mania de realidade, sempre fala da morte e diz que não há outro assunto. Elias Canetti: “A morte é o fato primeiro e mais antigo. Quase me atreveria a dizer, o único fato” (7). Na verdade, há outro: a vida.
Milton fez a melhor sinopse de todos os textos, o resumo da bíblia em quatro palavras: “Paraíso perdido, paraíso reconquistado”. O velho e o novo testamento. (8)
No Paraíso Perdido o personagem principal é Deus, faz de conta. Ele está presente em todos os episódios mas sempre cede as melhores falas e conflitos pro personagem novo, Adão, Eva, Abraão, Moisés, Jó. Na segunda parte, O Paraíso Reconquistado, o herói é tão extraordinário que resiste e merece quatro versões. Que frases! Que tempo de comédia! E o cara ainda caminha sobre as águas e transforma água em vinho. Nem Hamlet é tão interessante. Pronto. Consegui escrever 1380 caracteres (sem espaço) sem falar em Shakespeare. (9) Deus é ficção, não fato, e eu não viajei tanto para falar sobre ficções.
Tema livre? Vamos falar de Shakespeare, a gente tem que se basear em alguém. Woody Allen, em “Manhattan”, parado ao lado do esqueleto do macaco, fez a versão comédia definitiva de Hamlet, o macaco no papel do bobo Yorick. - “Você pensa que é Deus?” - “Bom, eu tenho que me basear em alguém”.
Fui inteiramente convencido pelo Harold Bloom: somos todos uma invenção de Shakespeare. (10) Quando lemos “Hamlet” realizamos o sonho do deus-autor, que é o de construir um leitor, estamos lendo nossa certidão de nascimento. “Nós somos a soma de nossas decisões”, também do Woody Allen, é tão Shakespeare, tão presente no imaginário de todos que já virou até slogan de publicidade de curso pré-vestibular.
Ele escrevia por encomenda, quase sempre adaptando histórias conhecidas, com prazo de entrega e exigências diretas da trupe. Temque ter nove personagens. Tem que ter uma cena com cachorro e outra com pirata. Tem que ter beijo e duas músicas. E é para sábado. Assim, e ainda atuando (nos papéis que tinham as falas mais complicadas mas não exigiam muita ação) e fazendo negócios (morreu rico, sócio da companhia, do teatro, dono de terras e de uma das melhores casas da cidade), ele produziu a maior obra de um ser humano. E mudou o mundo.
Muitas das suas criações geniais surgiram a partir de detalhes técnicos. O novo teatro tem um lugar para um conjunto de músicos? Que tal um pouco de música na peça? Pouca gente percebe a importância da técnica na criação artística. É sempre mais sedutor falar em inspiração, revolta e originalidade, do que falar em prensas, grifas ou tipos de papel. (11) Mas uma prensa mudou a literatura, uma grifa mudou o cinema e um novo tipo de papel mudou a história do mundo.
Os judeus guardavam seus textos em potes de cerâmica ou caixas, o texto era escrito em peles de animais e ficava enrolado (isso era chamado de livro). O que hoje chamamos de livro, páginas cortadas e costuradas, era chamado de códex. O códex foi inventado provavelmente no século I, provavelmente pelos cristãos, membros da classe baixa e iletrada no império romano, que usaram a nova e desprestigiada mídia para divulgar sua religião (como os evangélicos hoje usam as rádios AM e a televisão aberta). Com a invenção de um papel capaz de ser cortado em folhas e resistente à encadernação, surgiram os livros que, ao contrário dos potes, têm uma ordem certa para os textos: primeiro gênesis, depois êxodo, etc.
A diferença entre o antigo testamento cristão e os livros do Tanach (12) judeu é de montagem. No antigo testamento cristão o livro dos Profetas (que anunciam a chegada do mocinho) foi para o final, imediatamente antes do novo testamento. A montagem cristã é assim: ele virá, alguém chega. Na ordem de leitura dos judeus (com rolos em potes, a montagem dos judeus é não-linear, como num final-cut) os profetas estão no início: ele virá, não chega ninguém e segue o drama.
Toda tecnologia altera a arte e a linguagem. Jamais escreveria um texto como este à máquina. Só aqui, nessas bem traçadas linhas digitais, posso escrever sem qualquer prurido ou crase, certo de que poderei revisar, copiar e colar todas as frases, mandar pro lixo as digressões mais bestas, buscar concordâncias, deletar anglicismos, ampliar os apócopes e ainda consultar o dicionário.
Escrevi numa Olivette Lettera o roteiro do Temporal (13), meu primeiro curta, e isso está na tela. Montamos numa moviola, gravamos num nagra, dublamos em magnético perfurado e tudo isso está na tela e “tudo isso se perdeu, como lágrimas na chuva”, graças a Deus. Outra do Blade Runner, mais uma história que mistura Deus, Cristo e Shakespeare, uma fala do Roy: “Que experiência, viver com medo. Isso é ser um escravo”.
Deus não existe, mas se existisse seria um escroto. “Por que me ensinaste a clareza da vista se não podias me ensinar a ter a alma com que a ver clara? Por que é que me chamaste para o alto dos montes se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar? Por que é que me deste a tua alma se eu não sabia que fazer dela?” (14) Álvaro Campos lembra Godard, que diz que o cinema foi um erro. “Um erro sedutor, mas um erro”. Os filmes dele são tão chatos (quase todos) porque é evidente que ele odeia fazer cinema, no que tem certa razão.
Também não tenho um prazer específico de fazer cinema, ou televisão. Gosto de contar histórias e escrever é muito difícil. (Godard disse que só fazia cinema porque não sabia fazer outra coisa. Se eu soubesse tocar violão e não precisasse inventar um nome para uma banda, provavelmente não faria cinema). Minha distração, “a forma que em mim tomou o misticismo de nossa raça” (15), é desiventar o cinema mas não desiventar o “estado do cinema”. (16) Abaixo a arte e viva o artista.
Começo por seguir os passos da invenção, achar pontos onde a corrente é mais frágil para tentar rompê-la. Cinema não precisa ser literatura, não precisa ser teatro. Os personagens não precisam parar de se mexer quando vão falar, não precisam dizer a verdade, não precisam dizer o que sentem, não precisam falar sobre a história, sobre o passado ou, pior, sobre o futuro. Quando alguém num filme diz que fez alguma coisa ou que vai fazer alguma coisa, o filme morre. Cinema não precisa ser chato. Televisão não pode ser chato. Livro pode ser qualquer coisa, por isso é tão difícil, como um “tema livre”.
Umberto Eco: “Que significa pensar num leitor capaz de superar o obstáculo penitencial das primeiras cem páginas? Significa exatamente escrever cem páginas com objetivo de construir um leitor adequado para as páginas seguintes” (17) . O cinema suporta alguma penitência, o espectador pagou o ingresso, estacionou o carro e vai pagar quatro reais pela garagem saindo no meio do filme ou não. O espectador de televisão é um bárbaro insensível, que não agüenta dez segundos de penitência e muda de canal. Um livro nos espreita eternamente da prateleira, um dia ainda leio Guerra e Paz.
Lembrei de uma piada do Woody Allen, onde ele conta que fez um curso de leitura dinâmica e leu Guerra e Paz em dois dias e conclui: “Tem a ver com a Rússia”. Quando a gente começa a contar piadas é porque o assunto acabou ou as digressões foram tantas que não se sabe mais de onde veio. São 12:22, vou salvar num disquete e almoçar, continuo à tarde, se der tempo.
São 16:51, acabo de reler o texto, comecei falando em Deus e terminei contando piada, sem falar em política. Dirigi e escrevi dez curtas e dois longas, muitos programas de televisão, mas acho que nada do que eu fiz interferiu tanto na vida real (alheia) como as cinco campanhas políticas para o PT (18). Cinema é importante, mas água encanada e esgoto, rua asfaltada e coleta de lixo são mais importantes que cinema.
Entrevistei uma mulher que contou que todo dia saía de casa com um par de sapatos no pé e outro na bolsa, trocava os sapatos assim que chegava no asfalto, não queria chegar no trabalho com o sapatos sujos de pó, o que denunciaria sua condição de moradora de uma rua não-calçada. Outra mulher, mãe de uma criança com asma, tinha medo de precisar chamar uma ambulância para o filho no meio da noite e a ambulância não entrar na rua, sem asfalto. O asfalto mudou a vida delas, provavelmente mais do que o cinema mudou a minha.
Menos de 20% da população brasileira vai ao cinema pelo menos uma vez por ano. O ingresso é muito caro. Quase todo mundo assiste televisão, quase ninguém presta muito atenção no que assiste. Quase ninguém lê livros. Mesmo assim, ainda acredito que um livro, um programa de televisão ou um filme pode mudar a vida de algumas pessoas. E ainda acredito que as pessoas podem mudar o mundo. A luta continua.
Jorge Furtado
Porto Alegre, 28 de Outubro de 2002
(1) http://www.discoweb.com/pt/Music/scripts/info.asp?origen=&ref=00-62773
(2) Miles, Jack. Deus: uma biografia. Tradução: José Rubens Siqueira. Companhia das Letras, São Paulo. 1997. http://www.iupe.org.br/Bbmiles.htm
(3) Miles, Jack. Cristo, uma crise na vida de Deus. Companhia das Letras, São Paulo. 2002. http://www.livrariaalternativa.com.br/livro.asp?ISBN=8535902694
(4) Akira Kurosawa, 1950. http://us.imdb.com/Title?0042876
(5) http://www.geocities.com/Athens/9505/kafka.html
(6) http://www.eca.usp.br/nucleos/nudrama/jean.htm
(7) Escritor búlgaro (1905-1994) naturalizado inglês, prêmio Nobel em 1981. Outra dele: “Não acredite em ninguém que sempre diz a verdade.”
(8) John Milton, poeta inglês (1608-1674). Completamente cego, Milton ditou o poema O Paraíso Perdido, sobre a queda de Lúcifer e o pecado original. Foi publicado em 1667. Quatro anos depois, lançou O Paraíso Reconquistado, uma seqüência do primeiro, onde Cristo vem à terra reconquistar o que Adão perdeu.
(9) http://the-tech.mit.edu/Shakespeare/
(10) http://www.objetiva.com.br/releases/297-3.htm
(11) “O que os românticos chamam de genialidade ou talento ou ainda inspiração não é nada mais do que encontrar a estrada certa seguindo o faro de alguém, só que pegando atalhos.” Italo Calvino.
(12) Tanach é um acróstico de Toráh (Pentateuco), Neviim (Profetas), Ketuvim (Escritos). http://www.hebraico.inf.br/tanach.htm
(13) http://www.casacinepoa.com.br/port/filmes/temporal.htm
(14) http://www.secrel.com.br/jpoesia/facam21.html
(15) http://www.secrel.com.br/jpoesia/fpesso05.html
(16) Estado de cinema: mergulho total e inconsciente na falsa realidade do cinema, expressão criada pelo psicólogo alemão Hugo Mauerhofer. Ele propõe a seguinte analogia: “imagine uma pessoa fora de seu ambiente normal; tudo escurece e imagens começam a aparecer; essas imagens se sucedem sem compromissos lógicos e sem qualquer cronologia real; o espectador se envolve totalmente com as imagens até que elas desaparecem; o ambiente se ilumina. Esta é uma descrição fiel do “assistir cinema”, e do sonho. Mauerhofer chamou este estado intermediário entre a vigília e o sonho de “estado de cinema”. Nele, o espectador é protegido pelo anonimato da escuridão e observa, como um vouyer, a vida alheia em absoluta segurança. O cinema não “sabe” que está sendo visto. Outras características do “estado de cinema”, também decorrentes da escuridão da sala de projeção, são o tédio e a exacerbação da imaginação. A alteração das sensações de tempo e espaço, quando estamos no escuro, são utilizados pelo cinema. “O filme na tela vem de encontro tanto ao tédio incipiente como à imaginação exaltada, servindo de alívio ao espectador que mergulha numa realidade diferente, a do filme”.
(17) ECO, Umberto, Pós-escrito a O nome da Rosa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985.
(18) Campanhas para a prefeitura de Porto Alegre: Tarso Genro, 1992; Raul Pont, 1996; Tarso Genro, 2000. Campanhas para o governo do estado do Rio Grande do Sul: Olívio Dutra, 1994; Olívio Dutra, 1998.