Perec, lipogramas, cinema sem luz

Giba Assis Brasil
(publicado originalmente no Terra Magazine)
27/04/2006

Georges Perec, o escritor francês de “Vida: modo de usar”, morreu em 1982, aos 45 anos, menos conhecido pela qualidade de seu texto que por suas excentricidades literárias. Foi um dos fundadores do grupo Oulipo (acrônimo para “Oficina de Literatura Potencial” em francês), do qual também fizeram parte Italo Calvino, Raymond Queneau e outros. Mas foi provavelmente Perec quem mais levou a sério essa idéia de “potencial”: além de um palíndromo de 1249 palavras, escreveu também um romance com mais de 300 páginas sem usar uma única vez a letra E.

Palíndromo, como todo mundo sabe, é um texto que pode ser lido igualmente de trás pra diante, como “a torre da derrota” ou “rola consolos no calor”. O que poucos imaginam é a possibilidade de construir um palíndromo com mais de mil palavras e ainda por cima fazer sentido.

Um texto inteiro escrito sem o uso de uma determinada letra também tem nome: lipograma. No caso de Perec e seu “La Disparition” (1969), o que torna a tarefa particularmente complicada é que a letra proibida é a mais freqüente do idioma francês. E o melhor é que muita gente leu o livro e não sentiu falta de letra nenhuma.

Lipograma deriva do grego “leipo” (abandonar, deixar para trás, ficar privado de) + “grama” (escrito). Apesar da semelhança, a palavra não tem nenhum parentesco com lipídeo ou lipoaspiração, que também vêm do grego, mas através de “lipo” (gordura).

Claro que, se existia uma palavra para isso, é porque Perec não foi o primeiro a explorar o potencial dessa brincadeira. Na verdade, o lipograma era um maneirismo formal bastante apreciado na Espanha do século XVII. Alonso de Alcalá y Herrera (1599-1662), por exemplo, escreveu 5 novelas curtas em forma de lipograma: “Los Dos soles de Toledo” sem A, “La Carroza con las damas” sem E, “La Perla de Portugal” sem I, “La Peregrina hermitaña” sem O e “La Serrana de Sintra” sem U.

Muito antes disso, o poeta grego Laso de Hermíone, no século VI antes de Cristo, escreveu uma “Ode aos centauros” sem usar a letra sigma, no que seria o primeiro lipograma da História. No século II da nossa era, o também grego Nestor de Laranda reescreveu a Ilíada, eliminando o alfa do primeiro canto, o beta do segundo e assim por diante.

Mais recentemente, o norte-americano Ernest Vincent Wright escreveu uma novela em inglês (“Gadsby”) com mais de 50 mil palavras sem usar a letra E - e isso em 1939, 30 anos antes do “La Disparition” do Perec. Assim como no francês, E é a letra mais usada do idioma de Shakespeare.

E é claro que o próprio Shakespeare não podia ficar de fora dessa história. Não se sabe de nenhum lipograma cometido pelo velho bardo, mas Gyles Brandreth, escritor e político conservador inglês (nascido na Alemanha em 1948), reescreveu “Hamlet” sem usar a letra I (“to be or not to be, that’s the query”), “Noite de reis” sem L, “Othelo” sem O e o mais incrível: “Macbeth” sem A nem E.

Se é trabalhoso construir um lipograma, imaginem traduzi-lo. Pois o escocês Gilbert Adair se deu ao trabalho de verter para o inglês o lipograma de Perec em 1994, com o título “A Void” - que significa “um vácuo”, mas é também um trocadilho com “evite”. Adair é também o roteirista de “Os Sonhadores” de Bernardo Bertolucci.

O próprio Perec, em 1972 (três anos depois de “La Disparition”), publicou uma novela curta chamada “Les Revenentes” (algo como “Os Retornantes” ou “Os Reconciliantes”, imagino eu), em que a única vogal usada era o E. Segundo ele, como resposta à revolta das outras vogais, que reclamavam ter trabalhado demais no livro anterior.

Acredito que o mesmo tipo de restrição poderia ser aplicado na linguagem audiovisual: estudantes de cinema deveriam ser estimulados a fazer curtas sem nenhum close, ou apenas usando cortes de 180 graus. Um filme hollywoodiano sem nenhuma perseguição de carros ou um comercial de automóvel que não garanta que seu produto é melhor que sexo são coisas difíceis de imaginar, mas eu garanto que existem, ao menos como potencial. De certa forma, os filmes dinamarqueses do “Dogma 95” são uma tentativa de lipocinema.

Eu estou me preparando para isso: ninguém percebeu, mas eu escrevi os 11 parágrafos acima sem usar a letra J, e sem falar na Ancinav.

* Giba Assis Brasil começou no cinema dirigindo um longa-metragem, mas promete não repetir a experiência. Depois montou curtas, escreveu roteiros para televisão e hoje dá aulas na Universidade. Seu principal plano para o futuro, até a semana passada, era segurar cabos em reality shows, mas recebeu um convite do Terra Magazine e agora está reconsiderando sua carreira.