Futebol, religião e política

Giba Assis Brasil
(publicado originalmente no Terra Magazine)
11/05/2006

“Futebol, religião e política não se discute com gremista.”

A partir do ditado popular original, que só não tem as duas últimas palavras, muita gente deve ter produzido variações em torno desse tema, e não só em língua portuguesa. Mas a frase entre aspas acima, com todos os termos no singular, fui eu mesmo que cometi, há mais de 20 anos, desculpem qualquer coisa. Muito tempo depois disso, meu amigo Werner Schünemann me parafraseou numa entrevista de jornal, trocando a última palavra por “colorado”, o que gerou um evidente erro de lógica e acabou com a piada. Típica coisa de gremista.

Porque é claro que se tratava e continua se tratando de uma piada. Quem já anda perto dos 50 anos deve lembrar de um personagem cômico da TV interpretado pelo saudoso Walter d´Ávila, o “Seu Obturado”, aquele que levava tudo a sério e por isso nunca conseguia entender uma piada, mesmo quando ela era representada. Ou de um personagem que esta semana fez 3 vezes 50 anos, o humorista austríaco Sigmund Freud, que levava tão a sério e entendia tanto as piadas que se dispôs a analisá-las. Pois então, em homenagem a Freud e ao Seu Obturado, vamos representar e analisar a minha própria piada.

O Senso Comum, aquele sujeito de gravata torta, diz que alguns assuntos, a respeito dos quais costumamos ter convicções fortes, simplesmente não podem ser discutidos - ou podem, mas a discussão não leva a nada, pois não tem nenhuma possibilidade de modificar opiniões. Neste caso, pra que discutir? Não adianta.

A frase lá de cima permanece no raciocínio do Senso Comum, mas vai mais longe: podemos discutir qualquer coisa, desde que seja com outras pessoas que têm a mesma opinião que nós. “Gremista”, na frase, entra como sinônimo de “eles”, “os que não pensam como nós”. Podemos discutir sempre “entre nós”, nunca “com eles”. Claro que, neste caso, pra que discutir? Não precisa.

Mais ainda: “nós” podemos discutir porque somos civilizados, “eles” não podem entrar na conversa por serem intolerantes. Um resumo do que todos nós pensamos, petistas ou tucanos, cristãos ou muçulmanos, corintianos ou ipatinguenses: intolerantes são sempre os outros. E quem acha que eu estou exagerando é porque não conhece os gremistas, ou não precisa conviver com eles.

Na verdade, o próprio ditado popular brasileiro já é uma piada. Em inglês, o que o Senso Comum ordena é apenas “never discuss religion or politics” (732 ocorrências no Google), sendo que alguns especificam que a proibição só se aplica “in public”, ou “at work” ou ainda “at dinner table”. Muitos também criaram piadas, acrescentando um terceiro assunto que seria igualmente proibido: “sex”, “economics”, “money” - mas nunca futebol, é claro. Já os franceses são mais genéricos, preferem não discutir gostos ou cores: a frase “des goûts et des couleurs on ne discute pas” aparece 436 vezes no Google, eventualmente associada a religião, política ou algum outro assunto. Bobagem: quem já esteve numa fila de metrô em Paris (ou leu um tratado de semiótica) sabe que os franceses adoram discutir qualquer coisa.

Seja como for, parece que cada cultura tem consciência de quais temas não devem ser discutidos - porque não precisa, ou porque não adianta. Se o Senso Comum Brasileiro incluiu o futebol nessa lista, e em primeiro lugar, é porque, para nós (mas não apenas para nós), o futebol é uma política, ou uma religião, ou ambos.

Em “O Futebol levado a riso” (Versus Editora, 2006), o pedagogo Rubem Alves coloca assim a questão: “Ninguém assiste ao futebol para ter experiências estéticas. Quem quer ter experiências estéticas vai ao teatro. A gente assiste ao futebol para a indescritível felicidade de ferrar o adversário, de fazê-lo sofrer.”

Pois futebol também é isso: um remanescente dos nossos instintos tribais, uma representação da guerra entre nações ou da luta pela sobrevivência, um ritual coletivo de prazer e sofrimento. Voltando ao Freud, numa leitura bastante livre, toda civilização se baseia em transformar nossos instintos primitivos em atos socialmente aceitáveis: em vez de degolar os inimigos, ganhamos deles por 5x2; em vez de estuprar suas mulheres, gozamos com um drible, uma janelinha, um olé; em vez de comer a carne dos vencidos, gritamos “ão, ão, ão, segunda divisão!”

Quem assiste a uma partida de futebol, não muito diferente de quem vai a um comício ou a um show de rock, está disposto a, durante 90 minutos, colocar entre parênteses seus pensamentos mais sofisticados e se concentrar apenas na parte réptil do cérebro, aquela que grita, que repete, que pula. O problema é que alguns simplesmente esquecem que tudo aquilo era pra ser uma brincadeira, ou não percebem a metáfora explicada por Freud, e passam a ver inimigos reais onde só há outros torcedores como ele, e um campo de batalha onde sempre houve apenas um jogo de futebol - e aí brigam, invadem o campo ou, por não conseguirem brigar ou invadir o campo, têm um infarto. Mas isso é outra história.

No mês passado, uma estudante de comunicação me perguntou sobre superstições ligadas a futebol: se eu, como torcedor, usava determinadas camisas, repetia algumas ações, tinha lugares preferenciais para ficar na hora do jogo. Respondi que nunca me preocupei com isso, porque a grande superstição do torcedor é o próprio ato de torcer. O torcedor simplesmente acredita que ele pode decidir o jogo - ele próprio, não algum santo ou deus ou entidade. E quem é que vai dizer que não?

Só quem não conhece nada de futebol pode imaginar que se trata de um confronto entre 22 jogadores dentro de um gramado. E ignorar que cada torcedor, gritando na arquibancada, ouvindo no rádio ou mesmo pensando no jogo que ele sabe que está ocorrendo naquele momento em outro país tem uma interferência decisiva sobre o resultado. Pelo menos foi isso que me ocorreu, semana passada, a bordo de um avião entre Rio e Porto Alegre, enquanto o Inter jogava com o Nacional em Montevidéu. Só no dia seguinte é que eu fui ver o golaço que eu o Renteria fizemos.

Mas vai tentar explicar isso pra um gremista.

* Giba Assis Brasil é montador, roteirista e professor de cinema, e conselheiro do Sport Club Internacional de Porto Alegre.