A família, 20 anos depois

Giba Assis Brasil
(publicado originalmente no Terra Magazine)
06/07/2006

Os dois irmãos estão chegando aos 80 anos e se encontram na casa onde passaram a infância. Giulio, o que não deu certo na vida, diz que tem uma coisa para confessar. Carlo, o professor aposentado, aproveita e diz que também tem, e por ser o mais velho acaba confessando primeiro. Trinta anos atrás, Giulio tentou escrever um romance autobiográfico, e mostrou-o a Carlo, que disse que o texto era vazio e inconsistente. Carlo agora confessa que não havia lido o livro, mas que poucos dias atrás reencontrou o manuscrito. E confessa mais: descobriu que é um romance belíssimo. Giulio, o ex-soldado derrotado na guerra, o ex-comerciante falido, começa a fazer as contas de quanto dinheiro poderia ter ganho se tivesse publicado o livro. Carlo agora quer saber o que Giulio tinha para confessar. Nada, diz Giulio. Desde criança ele fazia isso: inventava que tinha uma confissão a fazer, porque sabia que assim Carlo terminava confessando alguma coisa. O confronto dos dois velhos irmãos, o misto de ternura e crueldade com que se olham, é de uma humanidade quase insuportável. Quase.

A cena é de “A Família”, que Ettore Scola dirigiu aos 56 anos, em 1987. Talvez não seja o seu melhor filme (escolha difícil, em se tratando do autor de “Nós que nos amávamos tanto”, “A Viagem do Capitão Tornado”, “Um Dia muito especial” e tantos outros), mas é possivelmente o que melhor resume suas preocupações com um cinema de personagem, de reflexão sobre o tempo que passa e sobre o que cada um faz com a própria vida. Revisto quase 20 anos depois, “A Família” mantém suas qualidades originais e ainda ganha outras, de obra madura, um marco de um certo cinema que foge ao mesmo tempo do grande espetáculo, da experimentação formal e do melodrama.

O roteiro tem uma estrutura rigorosa, quase matemática: são nove grandes seqüências, retratando diferentes momentos do século 20, entre 1906 e 1986, com saltos de dez anos redondos a cada vez. Mas toda a história se passa dentro de um único apartamento em Roma. No início de cada bloco, a câmara avança pelo corredor principal deste santuário familiar, onde se desenham marcas que serão redescobertas anos mais tarde, e por onde surgem os personagens, ou aquilo em que eles se transformaram desde a última década.

Na primeira seqüência, o protagonista Carlo é um recém-nascido, e seu avô (interpretado por Vittorio Gassman) o segura no colo para uma grande foto familiar, perguntando retoricamente à criança: “Será um gênio ou um imbecil?” Na seqüência final, na mesma sala, o mesmo Gassman agora é Carlo, comemorando 80 anos cercado pelos parentes, e mais uma vez posando com a família.

Nesse meio tempo, passa-se uma vida: Carlo se apaixona por Adriana (Fany Ardant), mas acaba casando com a irmã dela, Beatrice (Stefania Sandrelli). Adriana vai para Paris, construir uma carreira como pianista. Carlo fica, Carlo sempre fica, em Roma e na casa da família, combatendo o fascismo, perdendo amigos e postos na Universidade.

Aos 30 anos, Carlo e Beatrice têm dois filhos. Aos 50, Carlo e Adriana chegam a se encontrar, durante as férias, no apartamento vazio. A paixão talvez ainda seja a mesma, mas eles já não são - ou vice-versa, eles não chegam a descobrir. Só depois da morte da esposa, Carlo vai perceber que, afinal, casou com a mulher certa - ao menos é isso que ele diz à cunhada, com quem continua brigando até a velhice.

Aos 60, o primeiro neto, Carletto, está lendo um poema e pergunta se é verdade que o avô do seu avô (o Gassman da primeira seqüência) discutia com o poeta Carducci, e quem tinha razão. Sim, eles discutiam. E quem tinha razão não importa, mas os poemas de Carducci ficaram, não os do velho. É uma reflexão amarga, que talvez o menino leve alguns anos para entender.

Os filhos vão embora, Beatrice morre, Carlo fica. Na comemoração dos 80 anos, quem abre a porta para os convidados é Carletto, já um jovem adulto, muito parecido com o avô, mas que, ao contrário dele, está sempre partindo. Talvez nessa festa ele encontre sua Adriana, ou sua Beatrice, ou ambas.

Mas é em outra festa, ainda no final da primeira seqüência, que podemos ver a essência de Scola: em pleno batizado de Carlo, a câmara passeia pela sala, de rosto em rosto, num único plano composto de várias panorâmicas, sem pressa, detendo-se em cada personagem, como que procurando desvendar seus desejos e suas fraquezas. Não consegue, é claro: muitos já estarão mortos ou esquecidos na seqüência seguinte ou na outra. Mas, para Scola, cada rosto vale tanto quanto um poema de Carducci, merece ser observado e, se possível, entendido.

Vai haver um plano de construção idêntica numa cena-chave de “O Jantar” (1997) e já tinha havido mais dois no início e no final de “Feios, sujos e malvados” (1976). Scola parece fazer seus filmes cheios de palavras para poder, num determinado momento, fixar seus personagens nesse momento mágico, mudo e que parece durar para sempre.

Em agosto do ano que vem, “A Família” completa 20 anos desde a sua estréia. Como Carlo está vivo ao final do filme, podemos supor que ele estaria comemorando seu centenário por esses dias. Gassman, infelizmente, morreu em junho de 2000, aos 77 anos e mais de 120 filmes. E Ettore Scola, aos 75, continua sendo o grande nome do cinema humanista, que eu nem preciso dizer que é o meu favorito.

* Giba Assis Brasil é montador e roteirista de cinema e televisão.