Imagens, sons, tempo

Giba Assis Brasil
(publicado originalmente no Terra Magazine)
17/08/2006

Na década de 1930, aconteceram as primeiras experiências razoavelmente bem sucedidas de transmissão de imagens à distância através da radiodifusão. Uma nova forma de comunicação estava surgindo. Como reagiram nesse momento os profissionais do rádio?

  1. “A televisão? Podem dizer que a detesto! Ela vai acabar com a arte mais antiga do mundo, a arte de contar histórias. Vai aniquilar com a grande beleza da palavra.”
  2. “Importa acima de tudo buscar ações inteiramente compreensíveis pela palavra e pelos sons. A imagem, se for acrescentada, deve ter apenas um valor emotivo, permanecendo o rádio um meio de comunicação estruturado na palavra, na música, nos ruídos e acima de tudo no silêncio.”
  3. “O rádio com imagens é uma faca de dois gumes, e é provável que ele seja utilizado conforme a lei do menor esforço, isto é, simplesmente para satisfazer a curiosidade do público. Utilizada deste modo, a imagem substituirá a imaginação, sem a qual não se pode contar histórias, ou não há por que contar histórias.”

Essas três citações, é claro, são falsas. Ou melhor: são paráfrases que eu mesmo compus a partir de três textos, bastante conhecidos, respectivamente de Charles Chaplin, René Clair e dos soviéticos Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov, todos eles sobre um outro momento de transformação, poucos anos antes. Não do final dos anos 30, quando o rádio se transformou em televisão, mas do final dos anos 20, quando o cinema até então conhecido se tornou o cinema como nós o conhecemos - ou, para usar os termos de hoje: quando o cinema mudo se transformou em cinema sonoro.

Nos textos verdadeiros, Chaplin confessava detestar os filmes falados, e previa que eles acabariam com a arte da pantomima e com a beleza do silêncio; René Clair buscava ações que fossem compreendidas exclusivamente pela imagem, e nas quais a palavra tivesse “apenas valor emotivo”; e o trio soviético alertava para o perigo de o som se tornar redundante no cinema que estava surgindo, caso fosse usado como mero complemento lógico do que é visível na tela, e não (como eles propunham) sempre e necessariamente em contraponto à imagem.

Os textos originais, concordemos com eles ou não (e é fácil discordar depois de quase 80 anos), fazem sentido. Tanto quanto as minhas provocações, que estão aqui só para lembrar que, assim como o cinema começou sem som, a televisão começou sem imagem. Ou: se o cinema começou mudo, a televisão começou cega. E que, talvez por isso, a gente tenha levado tanto tempo para perceber que cinema e televisão são muito mais parecidos do que a princípio se imaginava.

Eu acredito no conceito de linguagem audiovisual. E isso não quer dizer que eu despreze os conceitos de linguagens específicas, a linguagem do cinema e a linguagem da televisão, a linguagem da ficção e a linguagem do documentário, a linguagem do longa e a do curta-metragem, a linguagem do western e a do filme policial, a linguagem de Antonioni e a linguagem de Glauber.

Eu acredito no conceito de linguagem audiovisual porque ele me parece mais proveitoso no diálogo com os meus alunos na universidade - alunos que se matriculam num “curso de realização audiovisual” quase sempre porque querem “fazer cinema”, que pretendem começar a trabalhar com imagens e sons hoje em dia e precisam perceber a multiplicidade de elementos que têm à disposição para construir os seus discursos. E também mais proveitoso para que o espectador (ou seja, todos nós) perceba que todo produto audiovisual é um discurso, uma construção - e que portanto sempre tem alguém por trás construindo esse discurso - e que portanto nenhum produto audiovisual pode se confundir com a realidade.

Eu acredito no conceito de linguagem audiovisual porque ele me parece um conceito bastante útil.

É claro que a sala de cinema e o aparelho de televisão são veículos totalmente diferentes, gerando espectadores diferentes, com níveis de atenção diferentes, e que portanto necessitam de produtos com diferentes formatos, diferentes graus de redundância, diferentes formas de relação com o tempo. Mas tudo isso a partir da mesma linguagem, do mesmo repertório estruturado de signos.

Se a televisão adotou a linguagem do cinema, não foi por “preguiça” ou por falta de capacidade de criar uma nova linguagem, mas porque, tendo os mesmos elementos constitutivos (imagens, limitadas por um enquadramento e uma duração, com impressão de movimento e acompanhadas ou não de som), só poderia trabalhar com a mesma linguagem, ainda que muitas vezes com objetivos diferentes. De lá para cá, muitas das inovações dessa linguagem surgiram justamente na televisão e, em diferentes graus, acabaram incorporadas pelo cinema, viraram publicidade, clipe, DVD, jogo eletrônico, internet, celular.

Mas continuamos pensando muito em termos da oposição entre televisão e cinema. O que nos leva muitas vezes a pensar a televisão como um veículo que não dá margem a qualquer dúvida, um veículo construtor de uma única verdade, e portanto fechado à pluralidade do mundo. Pierre Bourdieu colocou isso em outros termos, na relação entre os diferentes veículos e o tempo do espectador, algo como “no cinema tudo é passado e na televisão mesmo as reprises são ‘ao vivo’.”

Mas será que isso tudo não tem a ver menos com a natureza do veículo e mais com a forma como as emissoras, públicas e privadas, têm sido administradas no mundo todo? Basta pensar numa dessas tevês segmentadas, tão específicas que é extremamente difícil, não sendo público-alvo, se imaginar nesta posição.

Mas é exatamente desse estranhamento que pode surgir uma experiência interessante: se, ao assistir uma emissora dessas por um período razoavelmente longo, conseguirmos abstrair o desinteresse (do nosso ponto de vista, claro) da quase totalidade de sua programação, é possível encará-las como protótipos de uma possível forma alternativa de administração de imagens e sons, em que os programas não dialogam entre si, o conteúdo não pode ser entendido como apenas uma forma de manter o espectador preso àquele canal, e mesmo o tempo parece fluir de forma mais equilibrada - dentro e fora da tela, existe um passado, um presente e um futuro.

Não sei se isso serve para alguma coisa, mas pelo menos nos permite imaginar uma tevê diferente. E, quem sabe, um cinema diferente.