O que realmente aconteceu no dia 22 de dezembro de 642?

“Sou o Deus Dionísio!”, disse o primeiro ator, na sua primeira fala. Seu nome era Téspis de Ática, ator, autor, diretor e produtor, nascido no século V a.C, em Icária, ilha grega onde Ícaro caiu das nuvens.

O teatro grego antes de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes era basicamente um coro, uma turma recitando um texto. Plutarco conta que foi Téspis quem primeiro destacou um dos integrantes do coro e deu a ele uma fala, a primeira fala - pelo menos no ocidente - dita por um ator sobre um palco: “Sou o Deus Dionísio!”.

Téspis não era o Deus Dionísio e o público sabia disso, ele estava só fingindo. A profissão de ator, alguém que afirma ser o que não é a quem sabe que ele mente, era então chamada de hypokrites.

Frínico, autor contemporâneo de Téspis, aproveitou melhor o hypokrites, dando a ele vários papéis, mas a próxima grande idéia quem teve foi ésquilo (525 - 456 a.C.), ao colocar sobre o palco um segundo hypokrites, conversando com o primeiro. Estava inventado o diálogo.

ATOR 1
Sou o Deus Dionísio!

ATOR 2
Você? Imagina… Você é um ator, que eu sei. Eu vi você ontem, na festa do Quérilo, completamente bêbado, dançando em cima da mesa! Por falar nisso, você ouviu o que o Frínico contou do Sófocles na festa? Diz que o Sófocles…

ATOR 1
(irritado) Sou o Deus Dionísio!

ATOR 2
Tudo bem, tudo bem, se você está dizendo… Você é o Deus Dionísio! Certo! Você… é Dionísio, o Deus do vinho. (à parte) Combina bem com ele, Deus do vinho…

Ésquilo, o primeiro dos três grandes trágicos (os outros são Sófocles e Eurípedes) escreveu mais de oitenta peças, só sete sobreviveram: Os Persas, Sete Contra Tebas, As Suplicantes, Prometeu Acorrentado, Agamenon, Coéforas e Eumênides.

As 73 peças perdidas de Ésquilo provavelmente estavam nas suas Obras Completas, depositadas na Biblioteca de Alexandria. Foram levadas para lá, no século 3 antes de Cristo, por Ptolomeu III, que deixou com os atenienses uma fortuna em prata como garantia de devolução dos manuscritos, logo depois que fossem copiados. Ptolomeu III não cumpriu sua promessa, não copiou os manuscritos, preferiu perder o dinheiro e ficar com os originais, depositados na biblioteca. O que aconteceu depois, ninguém sabe.

O Livro dos Livros Perdidos, do crítico inglês Stuart Kelly (editora Record) segue rastros de possíveis obras primas que talvez nunca conheceremos, dos primeiros registros do épico de Gilgamesh (2000 a.C.?), passando pelas peças perdidas de ésquilo e chegando nos romances inacabados ou desaparecidos de George Perec.

Ótima leitura, com grandes histórias e muitas informações, um livro para quem gosta de livros. Mas não acredite em tudo que Kelly conta, ele tende a preferir uma boa trama ao rigor histórico. Sobre as obras de Ésquilo, por exemplo, diz ele que ficaram por nove séculos na Biblioteca de Alexandria, até o dia 22 de dezembro do ano de 642, há exatos 1365 anos.

Segundo Kelly, foi neste dia que o general Amrou Ibn el-Ass, a mando do califa e novo senhor de Alexandria, proferiu sua famosa síntese da incompatibilidade entre a sabedoria e a fé cega, classificando os 200 mil volumes da Biblioteca de Alexandria em duas categorias: “Os que discordam da palavra de Deus são blasfemos; os que concordam, são inúteis”. Inúteis ou blasfemos, el-Ass (“o bundão”), teria mandado queimá-los, todos. No meio desta fogueira alimentada por séculos de conhecimento e arte, as 73 tragédias desconhecidas de Ésquilo.

Vocês acreditaram nesta história? Eu também não. E hoje pouca gente acredita, parece que é apenas mais uma lenda cristã para botar a culpa nos árabes, como a história das armas químicas do Sadan e de sua amizade com Bin Laden. A Biblioteca de Alexandria sofreu vários incêndios, um deles no tempo de Julio Cesar, foi vítima de intolerâncias variadas e terminou demolida, provavelmente no ano de 392, por uma chusma de cristãos fundamentalistas, incitados pelo bispo Teófilo, Patriarca de Alexandria. Ninguém sabe se as obras de ésquilo ainda estavam lá.

Apesar disso, o livro de Stuart Kelly é excelente, lê-se como gibi. E tem preciosidades, como trechos das cartas de Kafka ao seu amigo Max Brod, implorando para que queimasse todos os seus originais não publicados, entre eles a “Carta ao pai”. Brod, para o bem da humanidade, não atendeu ao último pedido de seu grande amigo. Destruir livros não é coisa que se peça a alguém. Muito menos aos amigos.

Jorge Furtado
22 de dezembro de 2007


Sobre Téspis: http://en.wikipedia.org/wiki/Thespis (inglês)

http://pt.wikipedia.org/wiki/Tespis (português)

Sobre Ésquilo:
http://en.wikipedia.org/wiki/Aeschylus
(inglês)

http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%89squilo
(português)

Para ler Ésquilo, em inglês: http://www.bartleby.com/people/Aeschylu.html

Sobre a antiga Biblioteca de Alexandria: http://educaterra.terra.com.br/voltaire/antiga/2002/10/31/002.htm

Sobre a nova Biblioteca de Alexandria: http://www.bibalex.org/English/index.aspx

Google Livros http://books.google.com/books

Para comprar Ésquilo em português: http://compare.buscape.com.br/orestia-agamemnon-coeforas-eumenid-esquilo-8571101809.html

ou

http://www.bondfaro.com.br/livros.html?kw=orestia-agamemnon-coeforas-eumenid-esquilo-8571101809