Mihlapinatapei

por Jorge Furtado
em 03 de março de 2008

Lá pelo início do último quartel do século vinte eu li “Eu e Tu”, do Martin Buber, pela primeira vez. Não entendi praticamente nada, nem terminei de ler, mas o livro ativou em mim aquele atributo humano que o Umberto Eco chama de “extraordinário esforço de decifração”, também conhecido como “aí tem coisa”. E por isso volto a ele seguidamente, desde então.

Pelas tantas, Buber fala sobre as “palavras-frase”, núcleos da linguagem primitiva de onde derivam todas as categorias verbais, que em geral exprimem uma relação. E cita dois lindos exemplos de palavra-frase, um deles da língua dos habitantes da Terra do Fogo, que em apenas sete sílabas consegue dizer o seguinte: “Observa-se um ao outro, cada um esperando que o outro se ofereça a realizar aquilo que ambos desejam que seja feito mas não fazem”. É uma palavra bastante útil.

Só que Martin Buber, infelizmente não diz que palavra é essa. Isso eu só fui descobrir agora, no livro “Tingo”, de Adam Jacot de Boinod (editora Conrad), uma coletânea de palavras que infelizmente só existem em algumas línguas. Adam é inglês, formado em letras clássicas em Cambridge, trabalhou como produtor de um programa de televisão e colecionou centenas de palavras ou expressões muito específicas de cada língua. O português comparece apenas com o já clássico “saudade”, nossa palavra exclusiva que expressa… sei lá… mil coisas… (ver, do japonês, yugen.)

Antes de entrar no dicionário, uma palavra deve cumprir uma série de requisitos, inclusive pagar taxa que inscrição na ABL, levando duas fotos. Muitas se recusam a cumprir a burocracia e viram palavras de turma, pouca gente entende. Por exemplo, lembrei agora do verbo “silviar”, que significa “chegar à mesa de um restaurante, sentar, dizer que não vai comer nada porque já comeu em casa mas, apesar disso, comer um pouquinho da comida de cada um e, é claro, na hora de pagar, dizer que não vai pagar, uma vez que não comeu”. Não sei de onde veio - acho que a coisa é lá pros lados dos Assis Brasil - nem se foi Sílvio ou Sílvia quem deu origem ao verbo, que é transitivo direto: eu silvio, tu silvias.

Adam encontrou “zechpreller”, do alemão, que é “quem vai embora do restaurante sem pagar”. Ou seja, todo silviador é um zechpreller, embora nem todo zechpreller silvie. Deu para entender ou eu estou “dui niu tanqin”? (Do chinês: falar sobre assunto do qual o interlocutor não se interessa ou para o público errado. Literalmente: tocar alaúde para uma vaca.) Em caso afirmativo, por favor, muja.

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A outra palavra-frase mencionada pelo Martin Buber é uma expressão do Zulu que significa “bem longe” e que literalmente é: “Lá onde alguém grita: Mãe! Eu estou perdido!”. Essa eu ainda não sei qual é.

O Elomar (“Na quadrada das águas perdidas”) tem uma boa expressão para o mesmo significado, bem longe: “Pra lá dos Moura.”

E, antes que eu me esqueça, a palavra que eu levei 25 anos para encontrar é “mihlapinatapei”.

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Alguns dos melhores momentos de “Tingo” (para saber o que é, só lendo):

Neko-neko. Do indonésio. Alguém que tem uma idéia criativa que só piora tudo.

Iktsuarpok. Do inuíte. Ir muitas vezes à porta de casa para ver se a pessoa esperada vem vindo.

Shitta. Do persa. Comida da noite anterior que se come na manhã seguinte.

Hakamaroo. Do indonésio. Ficar com um objeto emprestado até o dono o pedir de volta.

Megillah. Do iídiche. História desnecessariamente longa e chata.

Olfrygt. Do dinamarquês. Medo que acabe a cerveja.

Uttori aware. Do japonês, ficar maravilhado diante de uma beleza efêmera.

Yugen. Do japonês, a consciência do universo que desperta sentimentos profundos e misteriosos demais para serem expressos em palavras.

Expressões e frases:

Avoir la moule qui baille. Do francês. Uma mulher excitada, louca para fazer sexo. Literalmente, “estar com o mexilhão bocejando”.

Zolst farliren aleh tseyner achitz eynm, un dos zol dir vey ton! Do iídiche. Tradução: Tomara que você perca todos os dentes menos um, e que este único doa!

War nam nihadan. Do persa. Matar uma pessoa, enterrá-la e plantar flores sobre sua cova para a esconder.

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Para saber mais sobre “Tingo”:
http://www.lojaconrad.com.br/trecho/tingo_p1.asp

Para saber mais sobre Martin Buber:
http://en.wikipedia.org/wiki/Martin_Buber
http://pt.wikipedia.org/wiki/Martin_Buber
http://buber.de/en/


COMENTÁRIOS

Enviado por ina em 07 de março de 2008.

meu irmão volta e meia vem com umas “traduções da bíblia para o bom fim”. exemplo: em verdade vos digo = vou te dar a barbada.

Enviado por Henrique em 07 de março de 2008.

Essas palavras-frase são algo como um plano sequência da lingua. rs

Enviado por jorge em 12 de março de 2008.

“Não penseis que vim revogar a lei ou os profetas: não vim para revogar, vim para cumprir. Porque em verdade vos digo: Até que o céu e a terra passem, nem um jota ou um til jamais passará da lei, até que tudo se cumpra. Aquele, pois, que violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar aos homens, será considerado menor no reino dos céus, aquele porém, que os observar e ensinar, esse será considerado grande no reino dos céus. Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus” (Mateus 5:17-20).

No Bom Fim.

“Não é esse lado aí. Tô de acordo. E vou te dar a barbada: vale o que está escrito. Quem mosquear, no detalhe, e der bobeira, dançou. Tô dando a letra: te puxa.”

Enviado por Giba Assis Brasil em 11 de abril de 2008.

Esclarecendo. A Sílvia que silviava (e espero que siga silviando ainda hoje) era uma amiga do Naum Alves de Souza. A expressão chegou a Porto Alegre (ou pelo menos a mim) através do Zeca Kiechaloski.

Enviado por Thaiane em 23 de novembro de 2008.

Existem coisas que são intrigantes na língua falada! Sou fascinda por isso! Essa coisas de existir palavras/expressões/frases que, comumente, você usa, mas não possui um signifcado claro, figurativo, ilustrativo, verbete de dicionário. Adoro! Adoro! Eu, como uma profissional da comunicação, deveria enlouquecer, mas, ao contrário, fico fascinada! Parabéns pelo texto!