Borges e Quintana e outros tantos

“Em um estábulo situado quase à sombra da nova igreja de pedra, um homem de olhos cinzentos e barba cinzenta, estendido entre o cheiro dos animais, humildemente procura a morte como quem procura o sonho. O dia, fiel a vastas leis secretas, vai deslocando e confundindo as sombras no pobre recinto; lá fora estão as terras aradas e um fosso entulhado de folhas mortas e algum rastro de lobo no barro negro onde começam os bosques. O homem dorme e sonha, esquecido. O toque de oração o desperta. Nos reinos da Inglaterra o som de sinos já é um dos hábitos da tarde, mas o homem, quando criança, viu a cara de Woden, o horror divino e a exultação, o tosco ídolo de madeira carregado de moedas romanas e de vestimentas pesadas, o sacrifício de cavalos, cães e prisioneiros. Antes do alvorecer morrerá e com ele morrerão, sem retornar jamais, as últimas imagens imediatas dos ritos pagãos; o mundo será um pouco mais pobre quando este saxão estiver morto.”

“Fatos que povoam o espaço e que chegam ao fim quando alguém morre podem maravilhar-nos, mas uma coisa, ou um número infinito de coisas, morre em cada agonia, a não ser que exista uma memória do universo, como conjeturaram os teósofos. No tempo houve um dia que apagou os últimos olhos que viram Cristo; a batalha de Junín e o amor de Helena morreram com a morte de um homem. O que morrerá comigo quando eu morrer, que forma patética ou perecível o mundo perderá? A voz de Macedonio Fernández, a imagem de um cavalo colorado no baldio de Serrano e de Charcas, uma barra de enxofre na gaveta de uma escrivaninha de mogno?”

(“A Testemunha”, de Jorge Luis Borges, publicado em “O Fazedor”, 1960; tradução de Josely Vianna Baptista)

Woden é o nome anglo-saxônico de Odin, deus maior da mitologia nórdica, pai de Thor, aquele que nos anos 1960 virou super-herói Marvel. Como ele (Thor) era imortal, nos finais de episódio ele sempre dizia em voz alta que, se não alcançasse a tempo seu martelo (ou se não conseguisse derrotar seu invejoso irmão Loki, ou se o pai Odin não o tirasse logo daquele pântano venenoso), iria “perecer”. E isso me fez pensar, aos 11 ou 12 anos de idade, que perecer devia ser mais que morrer, morrer muitas vezes, morrer definitivamente, morrer como um deus.

Junín é uma planície no Peru, onde Simón Bolívar venceu os realistas em 6 de agosto de 1824, na última verdadeira batalha de cavalaria do mundo ocidental, na qual nenhum tiro foi disparado e todos os quase 500 mortos foram atravessados por sabres, ou quem sabe pisoteados por cavalos. Bolívar morreu 6 anos depois, provavelmente de tuberculose, embora Hugo Chávez tenha declarado recentemente que ele foi assassinado. Helena foi o pivô da primeira de todas as guerras, ou pelo menos da narrativa mais antiga. Morreu, conforme a versão, assassinada por Têtis, ou levada ao suicídio pelas torturas de Polixó, ou ainda enforcada durante o banho pelas servas da rainha de Rodes.

Macedonio Fernández foi um escritor argentino, pouco conhecido até ser redescoberto por Borges, que em 1960 prefaciou uma reedição póstuma de suas obras. Em seu conto “Cirugía psíquica de extirpación”, escrito em 1941, Macedonio conta a história do ferreiro Cósimo Schmitz, a quem extraíram o senso de futuro: “Murió en sonrisa; su mucho presente, su ningún futuro, su doble pasado no le quitaron en la hora desierta la alegría de haber vivido, Cósimo que fue y no fue, que fue más y menos que todos.”

… E “o pior dos problemas da gente é que ninguém tem nada a ver com isso.” Essa é do Mario.


COMENTÁRIOS

Enviado por lizi em 01 de abril de 2008.

E o nosso velho Will: “And my poor fool is hang’d! No, no, no life! Why should a dog, a horse, a rat, have life, And thou no breath at all? Thou’lt come no more, Never, never, never, never, never!” (King Lear, Ato 5, cena 3) Na tradução do Millor: “A minha pobre bobinha foi enforcada: Não, não, não tem mais vida. Por que um cão, um cavalo, um rato têm vida e tu já não respiras? Nunca mais voltarás, nunca, nunca, nunca, nunca, nunca!” Pra contrabalançar, uma linda canção. Lizi

Enviado por Giba Assis Brasil em 01 de abril de 2008.

Lizi, obrigado pela indicação da música. Ajudou. Tem também o Auden, mas, depois do “Três casamentos e um funeral”, o “Funeral blues” ficou pop demais pro meu gosto.