Tu e você e todo mundo que nós conhecemos

Esses dias o Gerbase me mostrou um excelente artigo que ele escreveu (e vai publicar em breve) sobre o uso do “tu” e do “você” no cinema feito no Rio Grande do Sul. Pois hoje, pesquisando mensagens antigas que pudessem ser reaproveitadas nesse blogue, encontrei um velho palpite meu, não sobre cinema, mas sobre os pronomes.

Pouco mais de dez anos atrás, em fevereiro de 1998, minha amiga e sobrinha Laura Mansur (que na época se considerava paulista) me mandou uma mensagem com essa frase: “Gaúcho é foda. Pra que usar o tu se não usa direito?”. Segue abaixo a minha resposta, mantidas as circunstâncias e os cacoetes da época. Espero que o professor Cláudio Moreno (que deve ter mais o que fazer) não leia isso, ou ao menos que me perdoe pela palpitagem.


Concordo com a primeira parte. Mas, quanto à segunda, acho que te falta perspectiva histórica. Como é que se conjuga o verbo lembrar, por exemplo, no presente do indicativo? Você lembra? Eu lembro, tu lembras, ele lembra, nós lembramos, vós lembrais, eles lembram. Cadê você? Não tem. Por quê? Porque “você” não é pronome pessoal, é pronome de tratamento (Vossa mercê, vosmecê) reduzido à sua forma atual através de um dos muitos atalhos que a população encontra pra se expressar.

Em resumo: fora os portugueses, todo mundo que fala a nossa língua um dia percebe o ridículo dessa conjugação do “tu” com todos os seus sibilantes sss: tu vais, tu foste, tu lembraste, tu esqueces. Em alguns pontos do país, trocaram o “tu” pelo “vosmecê”, pra não ter que trocar a dentadura. Em outros pontos, a população, mais prática, simplesmente passou a usar o “tu” como se fosse o “vosmecê”: com o verbo na terceira pessoa.

Atenção: eu NÃO estou dizendo que “tudo o que o povo fala é certo”. Pelo contrário. Toda língua tem que seguir uma norma, ou muitas normas. O que eu estou tentando mostrar aqui é um processo histórico, uma coisa que acontece no decorrer de séculos e nenhum gramático consegue corrigir. Ou melhor: dois processos históricos - um acontecido na capital, Rio de Janeiro, e suas províncias mais próximas; e outro acontecido no interior e no sul. Depois de um certo tempo, a norma vai pra cucuia, e o que era errado vira norma. (E a Norma Bengell vai filmar “O Guarani”, mas isso é outra história.)

Só que teve um detalhe: nos últimos 30 anos, as muitas línguas portuguesas faladas no Brasil passaram a se transformar, cada vez mais, numa só - processo que começou a acontecer com o rádio e se transformou numa obsessão nacional com o surgimento da televisão, e numa tragédia com a ascensão do Cid Moreira. Todo o país passou a falar pela norma carioca, inclusive o interior de São Paulo. E isso também é um processo histórico, mas, ao contrário do outro, descrito acima, sem nenhuma participação popular: trata-se de um fenômeno da era da globalização. Os gaúchos (que são foda, como você lembraste) ainda resistiram por algum tempo, mas também terminaram virando gremistas e elegendo o Britto.

O que eu quero dizer é que tenho muito orgulho de ter escrito alguns roteiros de filmes em que os personagens portoalegrenses falavam como portoalegrenses: tu olha, tu vê e tu ouve as pessoas falando daquele jeito; se tu não gosta, o problema é teu. Acho que isso contribuiu, minimamente que fosse, pra que os portoalegrenses tivessem menos vergonha de não serem cariocas ou paulistas. Claro que não adiantou nada: caiu o muro de Berlim, o Fernando Henrique se elegeu e hoje somos todos baianos e dançamos a dança da cordinha. Mas ainda faz sentido dizer que gaúcho é foda.

(escrito em 04/02/1998)

TEM MAIS:

O que diz a respeito o professor Moreno.

Em Santos fala-se tu ou você?

No Youtube tem um vídeo intitulado justamente Gaúcho é foda.