Sonetos para quem precisa

por Jorge Furtado
em 22 de abril de 2008

“Havia o interesse do voyeur em ouvir confissão dos pecados, a fixação na celebridade, a ausência total de toda e qualquer notícia séria – e com isso quero dizer narrativas e explicações que possibilitassem aos espectadores ter uma apreensão racional do mundo. Havia o sentimentalismo falso, o humanismo falsificado. Acima de tudo, havia a crença de que a realidade deve vir sempre em segundo plano, atrás do entretenimento, para não sobrecarregar o público, para que ele retorne sempre para mais um pouco daquela mesma Faísca”.

Robert Hughes, crítico de arte, um dos primeiros apresentadores do 20/20, programa de notícias e entretenimento da rede de televisão americana ABC, antes de ser demitido.

Citado em “Vida, o Filme. Como o entretenimento conquistou a realidade”, de Neal Gabler (Companhia das Letras, 1999)


Meio-soneto sem data.

Quando vejo mundo e mídia em luto recreativo,
linchadores sorridentes destilando ódio ao vivo,
abanando da calçada, políticos, mães, juristas,
homens santos, vagabundas, vizinhos, pais, analistas

muito mais de sete abutres sobrevoando a montanha
fatiando menininhas como quem corta picanha
Então saio pela rede em busca de poesia
páginas limpas de sangue

e que durem mais que um dia.


Primeiras tentativas publicáveis de traduções dos sonetos de William Shakespeare.

Soneto LXVI

Tired with all these, for restful death I cry,
As to behold desert a beggar born,
And needy nothing trimm’d in jollity,
And purest faith unhappily forsworn,

And gilded honour shamefully misplac’d,
And maiden virtue rudely strumpeted,
And right perfection wrongfully disgrac’d,
And strength by limping sway disabled

And art made tongue-tied by authority,
And folly, doctor-like, controlling skill,
And simple truth miscall’d simplicity,
And captive good attending captain ill:

Tir’d with all these, from these would I be gone,
Save that, to die, I leave my love alone.


Farto de tudo, clamo a paz da morte
Ao ver quem de valor penar em vida
E os mais inúteis com riqueza e sorte
E a fé mais pura triste ao ser traída

E altas honras a quem vale nada
E a virtude virginal prostituída
E a plena perfeição caluniada
E a força, vacilante, enfraquecida

E o déspota calar a voz da arte
E o néscio, feito um sábio, decidindo
E o todo, simples, tido como parte
E o bom a mau patrão servindo

Farto de tudo, penso, parto sem dor
Mas, se partir, deixo só o meu amor

Ou
(versão glaucomatosa)

De saco cheio, mando tudo às picas
Ao ver só gente boa se ferrando
E as mais escrotas rindo à toa, ricas
E as crentes, puras, só no cu levando

E prêmios dados a um monte de bostas
E virgens puras pagando boquetes
E a perfeição xingada pelas costas
E os fortões entubando croquetes

E a cultura virar supositório
E a chusma de imbecis cagando regras
O bom e simples tido por simplório
O mal triunfa e o bem toma nas pregas

De saco cheio, vão todos se fuder!
Só o que eu não posso é meu amor perder.


Soneto XLVI

Mine eye and heart are at a mortal war,
How to divide the conquest of thy sight;
Mine eye my heart thy picture’s sight would bar,
My heart mine eye the freedom of that right.

My heart doth plead that thou in him dost lie,
A closet never pierc’d with crystal eyes,
But the defendant doth that plea deny,
And says in him thy fair appearance lies.

To ‘cide this title is impannelled
A quest of thoughts, all tenants to the heart;
And by their verdict is determined
The clear eye’s moiety, and the dear heart’s part:

As thus: mine eye’s due is thine outward part,
And my heart’s right, thine inward love of heart.


Meu coração e olhos em mortal combate
Pretendem posse sobre a tua imagem
Ao coração, os olhos negam parte
Aos olhos, o coração veta passagem

Meu coração acusa que tu nele vives
Câmara por olhos nunca penetrada
A defesa contesta. Os olhos dizem
Que neles tua beleza tem morada

A decidir, um júri é convocado
Só de pensamentos, do coração amigos
E pelo seu veredicto é destinado
O joio aos olhos, ao coração o trigo

Herdam pois meus olhos o que te é externo
Meu coração recebe o teu amor eterno


CXXI

‘Tis better to be vile than vile esteemed,
When not to be receives reproach of being;
And the just pleasure lost, which is so deemed
Not by our feeling, but by others’ seeing:

For why should others’ false adulterate eyes
Give salutation to my sportive blood?
Or on my frailties why are frailer spies,
Which in their wills count bad what I think good?

No, I am that I am, and they that level
At my abuses reckon up their own:
I may be straight though they themselves be bevel;
By their rank thoughts, my deeds must not be shown;

Unless this general evil they maintain,
All men are bad and in their badness reign.


É melhor ser mau do que por mau ser tido
Quando, não sendo, paga-se por ser
Perde o vil prazer de mau ter sido
Quem mal não sente e mau é dado a ver

Por acaso os normais, de olhos opacos,
Notariam brilho em meus excessos?
A fraqueza apontada pelos fracos
Que mal terminam onde eu bem começo?

Não. Sou o que sou. Se me condenam,
É pelos crimes dos quais são suspeitos
O que eu construo reto eles empenam
Em mentes tortas não cabem meus feitos

A menos que o demônio imponha a crença
De que todos são maus e que a maldade vença.


Primeira tentativa impublicável de traduzir um soneto de John Keats (1795-1821).

On Fame

Fame, like a wayward girl, will still be coy
To those who woo her with too slavish knees
But makes surrender to some thoughtless boy
And dotes the more upon a heart at ease.

She is a Gipsey, will not speak to those
Who have not learnt to be content without her
A Jilt, whose ear was never whisper’d close,
Who thinks they scandal her who talk about her

A very Gipsey is she, Nilus-born,
Sister-in-law to jealous Potiphar,
Ye love-sick Bards! repay her scorn for scorn;
Ye Artists lovelorn! madmen that ye are!

Make your best bow to her and bid adieu,
Then, if she likes it, she will follow you.


Sobre a Fama

Fama, moça mimada, sempre diz não
A quem por seu amor rasteja
E se arreganha para o mais moscão
Que não ligou, não a quer, nem a corteja

É uma cigana, nunca vista junto
A quem não fica em pé sem seu suporte
Traíra, é incapaz de dar assunto
A quem supõe que por alguém se importe

Das meretrizes, a mais vagaba
Prima irmã da cobra peçonhenta
Poetas: o desdém é a melhor paga!
Doido é o esteta que só Fama intenta.

Diga a Fama: “Adeus, tenho que ir”.
Se ela gostar de você, vai lhe seguir.


Para saber mais sobre John Keats
https://pt.wikipedia.org/wiki/John_Keats


COMENTÁRIOS

Enviado por Armando em 04 de agosto de 2008.

“Então saio pela rede em busca de poesia / páginas limpas de sangue / e que durem mais que um dia.” Menos mal que essa busca não é em vão, do que este próprio blog é uma expressão cabal. Muito bom o post. Aproveito para registrar o recebimento do primeiro newsletter da Casa, depois de alguns meses de cadastro. Espero continuar recebendo, até porque facilita o acesso.

Enviado por Max Marques em 25 de abril de 2008.

Jorge, tem um projeto do sr. Paulo Bornhausen que desobriga os canais a cabo de veicularem produções nacionais. Isso é um atentado à cultura nacional, que precisa ser propagada. Acho que esse assunto deve ser debatido para que seja iniciada uma campanha contra esse projeto. Um abraço

Enviado por Jorge em 25 de abril de 2008.

E por falar nisso, gostei muito da nova camiseta do Grêmio.