Corpus Christi

Pergunte a dez católicos praticantes o que se comemora no dia de Corpus Christi, ou seja, hoje. Provavelmente sete dirão que não têm a menor idéia.

É possível que dois lembrem do “Creio em Deus Pai” (“Nasceu da Virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado, desceu à mansão dos mortos, ressuscitou no terceiro dia, subiu aos Céus e está sentado à direita, etc.”) e façam o raciocínio mais ou menos óbvio: se o Natal marca o nascimento de Cristo e a Páscoa toda aquela seqüência de padecimento, cruz, morte e ressurreição, só o que falta é o tal momento do “subiu ao céu”; logo, Corpus Christi só pode ser o dia em que o corpo do Cara se foi de vez.

Mas, se o décimo consultado for também um praticante do Google e da Santa Paciência, pode ser que a resposta seja mais precisa. Por exemplo, a “Filho de Deus homepage” (bom nome para um grupo de rock) tem uma ótima explicação para a origem do Corpus Christi:

“Entre os séculos IX e XIII surgiram grandes controvérsias sobre a presença real de Cristo na Eucaristia; alguns afirmavam que a ceia se tratava apenas de um memorial que simbolizava a presença de Cristo.”

Ou seja, típica discussão da Idade Média, quando o futebol ainda não tinha sido inventado e as pessoas não tinham muito assunto nas festas. A grande questão, portanto, era: durante a Eucaristia (o momento da missa em que o padre levanta a hóstia, consagrando-a), Cristo se faz realmente presente na Igreja ou se trata apenas de uma metáfora, de um ritual como qualquer outro? A resposta pode parecer óbvia, mas a Igreja Católica nunca se deu muito bem com o óbvio.

Depois de pouco mais de 300 anos de acirrados debates entre os teólogos (esse pessoal nunca gostou muito de decisões precipitadas), o Catolicismo passou a aceitar como dogma que sim, que Cristo estava presente na Eucaristia, e quem dissesse o contrário deveria ser expulso da Igreja - eventualmente sem as unhas, ou na forma de fumaça. E a tal da Eucaristia (a presença do corpo de Cristo, real, na missa) precisava de uma festa específica para ser celebrada.

Segundo a “Catholic Encyclopedia”, coube a Santa Juliana de Mont Cornillon (1193-1258) dar à Igreja a justificativa para tal festa. Consta que Juliana, uma órfã belga que entrou para o convento das agostinianas de Liège aos 14 anos, aos 17 passou a ter visões de uma majestosa igreja iluminada pela lua cheia, porém com a presença de uma estranha mancha negra no disco lunar, prejudicando o conjunto. Depois de muito conversar com o diácono de Liége, um certo Jacques Pantaléon, a futura santa finalmente entendeu o que Deus estava querendo dizer, que era mais ou menos o seguinte: “no calendário de festas da igreja, tá faltando uma data especial para comemorar a Eucaristia”, mas que anos depois passou a ser interpretado como “não dá pra conseguir mais um feriadão em junho?” A voz do Senhor é como os filmes do Glauber, muito aberta a interpretações.

As conversas entre a freirinha e o diácono e suas espantosas conclusões teriam entrado no máximo para o “index fofocorum”, se o citado Jacques Pantaleón não tivesse, alguns anos mais tarde, virado Papa, com o nome de Urbano IV. A partir de 1264, ficou instituído que o 60º dia depois da Páscoa, uma quinta-feira, seria consagrado ao “Corpo de Cristo”. Só que o Papa Urbano IV durou pouco, e o decreto do Corpus Christi não colou muito na maior parte da cristandade, a não ser na Bélgica, onde se tornou a “Fête Dieu”, uma grande procissão proclamando aos descrentes que a hóstia não é apenas um pãozinho sem sal.

Passaram-se mais três séculos e apareceu Lutero, com seu bom senso e seu mau humor, protestando na porta da igreja de Wittenberg que não dava pra levar tão a sério o que o pessoal do Vaticano dizia. Antes que fosse tarde, a Igreja contra-atacou, e o Concílio de Trento (1545-1563) então obrigou todo padre de toda paróquia, no mundo inteiro, a realizar festas e procissões de Corpus Christi 60 dias passados da Páscoa. Mas aí voltamos à questão: por que raios justamente o 60º dia?

O Padre José Cândido da Silva, de Belo Horizonte, tenta esclarecer:

“Alguém poderia perguntar sobre a necessidade de acrescentar mais uma festa da eucaristia, uma vez que a eucaristia é celebrada propriamente na Missa Vespertina da Ceia do Senhor na quinta-feira do tríduo em preparação à Páscoa. Mas a resposta a esta indagação me parece óbvia. De fato o Dia da Eucaristia é a quinta-feira santa. No entanto, a noite de quinta-feira é coroada pela tristeza da agonia do Senhor, o que retira da festa da eucaristia o júbilo que só explode plenamente na páscoa. Por isto, esta Solenidade do Corpo e do Sangue de Cristo acontece quase imediatamente ao tempo pascal e pode ser celebrada com todo júbilo e brilho.”

Perceberam? A festa tinha que ser numa quinta-feira, mas não poderia ser no dia da última ceia, da traição e prisão de Cristo, véspera da crucificação. Então, marca-se a comemoração para dali a 9 semanas, e está tudo resolvido.

Já o dia da Ascensão, em que o Cristo ressuscitado cansou de caminhar entre os vivos e partiu para uma carreira muito acima do solo, este é comemorado 42 dias depois da Páscoa, 18 antes do Corpus Christi. Mas, sendo um domingo, não rende muito assunto, e nunca vai dar feriadão.

Presença real ou metáfora?


COMENTÁRIOS

Enviado por werner schünemann em 27 de maio de 2008.

giba: Essa coisa de feriado religioso é a prova de que se pode combater a exploração capitalista com o poder da oração. Mas quero falar de um feriado religioso em particular, um que falta definir. Certamente o mais importante de todos: o da Sagrada Concepção (assim, com maiúsculas). Pensa comigo: está mais do que clara a posição da Igreja quanto ao momento em que a vida humana inicia. Tanto para discutir aborto quanto para aprovar pesquisas com células-tronco, dos altares, das cúrias e dos programas de TV, padres, bispos, arcebispos e o papa não deixam dúvidas: a vida humana inicia no momento em que o espermatozóide entra no óvulo. A concepção. Sabemos que Jesus foi concebido pelo espermatozóide do espírito santo e o óvulo de Maria. Então, algum dia do nono mês antes de dezembro (se não tiver nascido antes do tempo, com essa turma dos milagres nunca se sabe) houve um dia ou uma noite em que agiu esse espermatozóide masculino. Redundância? não. Trata-se do gênero do espírito santo. É homem. Com h. Cromossomas xy. Epa. De onde viria esse “x”? Deve ter sido, milagrosamente, um espermatozóide yy. E agora responda: existe para a Igreja algo mais sagrado que a fè na concepção divina de Jesus? E como é que essa data não é festejada? Não seria pelo menos uma semana de feriadão? Dez dias, quem sabe? Acho que sim. Só tem um problema: também vai cair no primeiro semestre. Aí, fora o 20 de setembro, continua não havendo feriado sério e bom no segundo semestre.