Amávamos tanto o trema

por Jorge Furtado
em 15 de junho de 2008

No ano que vem, exatamente quando farei cinqüenta anos atingindo a glória de uma idade com trema, vão acabar com o trema. Entrei no qüinquagésimo ano de vida com trema, tranqüilamente, mas vou fazer cinquenta anos, sem trema. Cinkenta! Quem foi que teve esta ideia? Sim, uma ideia assim mesmo, sem acento, pois as ideias perderão o acento, assim como o enjoo de voo e as heroicas assembleias. A unificação até pode ser por uma boa causa, mas eu preferia que tivessem deixado a língua em paz.

Uma mudança da língua altera tudo, não apenas daqui para frente, mas daqui para trás, tudo que já foi escrito se tornará imediatamente antigo. A partir do ano que vem, com a nova revisão ortográfica, “Pára Pedro”, um clássico do cancioneiro gaúcho (José Mendes e José Portella Delavy), cujo brilhante refrão e título - uma admoestação, ainda que irônica, a um rapaz de nome Pedro, no sentido de que cesse de tomar liberdades com as moças durante um baile - anuncia ao leitor o fato inequívoco de Pedro ser macho, passa a se chamar “Para Pedro”, uma canção que, tendo sido escrita por dois homens, já apresenta, desde o seu título, algum potencial de boiolice.

Adeus trema!

E tem mais: hoje, quando ficamos sabendo que “foi uma peleia danada, pára Pedro, fazia “cosca” nas véia”, imaginamos que Pedro, um pândego incorrigível, fazia cócegas em senhoras de idade avançada, as véia. No ano que vem leremos que “Pedro, fazia “cosca” nas veia”, e pensaremos o que diabos fazia Pedro com suas próprias veias e artérias, talvez “cosca” seja uma espécie de droga injetável e Pedro, fragilizado pela “peleia danada” que trava consigo mesmo, entregou-se ao uso de drogas.

Felizmente o “amámos” lusitano será opcional. Imagine “Eu te amo”, letra do Chico para a música do Tom: “Como, se nos amámos feito dois pagãos, teus seios inda estão nas minhas mãos…” A dúvida - eles ainda se amam ou não? - é muito melhor que aquele horrível acento cravado no crânio do á. Amámos é um estrupício!

Foi difícil achar na internet o texto integral do acordo ortográfico da língua portuguesa, assinado em 4 de junho de 1991, só encontrei em pdf. Queria saber o que realmente vai acontecer, quando acontecer, se acontecer. Quem assinou o acordo pelo Brasil foi Carlos Chiarelli, nosso ministro da educação da época, governo Collor. Não sei, mas por via das dúvidas, continuarei tendo idéias com acento por mais algum tempo.


Para Pedro, de José Mendes e José Portella Delavy, na nova ortografia.

Era um baile lá na serra
Na fazenda da Ramada
Foi por lá que um tal de Pedro
Se chegou de madrugada
Só escutei um zumzum
Mas não sabia de nada
Só ouvi mulher gritando
Esse Pedro é uma parada

Para Pedro, Pedro para
Para Pedro, Pedro para
Pedro para, para Pedro
Esse Pedro é uma parada

Era o Pedro lá num canto
Beliscando as namorada

Quando foi lá pelas tantas
Que a farra tava animada
Apagaram o lampião
E a bagunça foi formada
As veia se revoltaram
“Pedroca não é de nada”
E o Pedro brigou com as veia
E foi uma peleia danada

Para Pedro, Pedro para
Para Pedro, Pedro para
Pedro para, para Pedro
Esse Pedro é uma parada

Fazia “cosca” nas veia
E as veia davam risada

Pedro foi dançar um chote
Com uma veia apaixonada
Surgiu o veio da veia
E a coisa foi complicada
Pedro correu pelos fundos
Entrou numa porta errada
As moça levaram um susto
E gritaram desesperadas

Para Pedro…

Veia grudada no Pedro
E o veio no Pedro agarrado

Para Pedro…

E assim foi a noite inteira
até o fim da madrugada

Para Pedro…


Sobre José Mendes:
http://dicionariompb.com.br/verbete.asp?tabela=T_FORM_A&nome=Jos%E9%20Mendes

Sobre José Portela Delavy:
http://dicionariompb.com.br/verbete.asp?tabela=T_FORM_A&nome=Portela%20Delavy

Texto integral do acordo ortográfico:
http://www.ait.pt/pdf/artigos/acordo_ortografico.pdf


COMENTÁRIOS

Enviado por lizi em 16 de junho de 2008.

Esse acordo ainda por cima é anti-ecológico, uma preocupação que praticamente não existia em 1991. Quantos livros, dicionários, manuais de redação, CD-ROMs e programas de auto-correção terão que ser reeditados? Será que, pelo menos, vai gerar emprego para revisores? E, desde 1991, nossa língua mudou muito mais do que sonha nossa vã ortografia. Quantas palavras surgiram ou mudaram de sentido? O Houaiss já registra teclar e deletar com seus significados informáticos, embora não recomende o uso da última. E ainda temos: adicionar, torpedo, bombar, demorou (conjugado somente nesta forma e tempo verbais), sinistro, apagão (ainda apenas um sinônimo de blecaute no Houaiss), balada, pilhar e pilhado(a). Todas palavras que ganharam novos significados além dos que já tinham. Sempre começando na língua falada e migrando pra escrita, como sói (soi?) acontecer. E o que dizer da popularização de impeachment e dos obscuros novos significados de socialista (como em Partido Popular Socialista)? Mas vamos ver se pega. Porque quem manda na língua é nois.