Cobras, lagartos e outras coisinhas mimosas

por Giba Assis Brasil
em 22 de junho de 2008

Revendo, depois de muitos anos, “O Bebê de Rosemary”, um diálogo de pouca importância no filme me chamou atenção. É o momento em que a futura mamãe do título (Mia Farrow), ainda no início da gravidez, pergunta para sua vizinha Minnie Castevet (Ruth Gordon) o que tem naquele suco de ervas preparado por recomendação do obstetra, ainda sem saber que ambos - velhinha simpática e médico famoso - são na verdade adoradores do diabo cujo filho ela já carrega no ventre.

A resposta da intrometida Minnie é “snips and snails, and puppy dogs’ tails”, que a legenda em português simplificou para “cobras e lagartos”. E Rosemary, no mesmo tom de brincadeira, retruca: “That’s fine, but what if we want a girl?” (“Tudo bem, mas e só nós quisermos uma menina?”).

Certamente aqui há uma dificuldade de tradução. Não que a nossa língua e a nossa cultura não tenham introjetado a idéia de que meninos e meninas são diferentes desde o berço, e que por isso devem ser criados separadamente e com objetivos diversos.

Mas é claro que a velha Minnie está citando um texto conhecido, e não apenas uma idéia. Um texto que faz parte do vocabulário comum das duas mulheres, tanto que a resposta da jovem se baseia na mesma referência. E é claro também que o sentido fica bastante prejudicado em português: “Sim”, estaria dizendo Rosemary, “cobras e lagartos eu tomaria se quisesse ter um menino; mas, se a minha intenção fosse ter uma filha, eu deveria tomar…” O quê mesmo?

Puxando pela memória, lembrei vagamente de um livrinho infantil que li para meus filhos quando eles eram pequenos (o que não faz tanto tempo assim). Puxando pelo Google, descobri que se tratava de “Mamãe botou um ovo” (“Mummy laid an egg”), de Babette Cole, escrito em 1993 e publicado no Brasil pela Ática em 1995: quando surge a inevitável pergunta da origem, papai e mamãe do livro respondem que os meninos são compostos a partir de “lesma, caramujo e pedaço de rabo de cachorro sujo”, e que as meninas, ao contrário, são feitas de “açúcar, temperos, cheiro de rosas e outras coisinhas mimosas”.

No livro, os próprios filhos explicam aos pais que essa é uma concepção ultrapassada da própria concepção - eles já sabem há tempo que a mamãe não botou ovo coisa nenhuma! O que eu não tinha percebido na época é que a frase era uma citação - não ao “Bebê de Rosemary”, é claro, mas necessariamente a alguma coisa bem mais antiga. Como eu imaginava, trata-se de uma rima infantil, pouco conhecida em português antes de 1995, mas com quase duzentos anos em inglês.

O “Dicionário de provérbios” de Burton Stevenson (“The Home book of proverbs, maxims, and familiar phrases”) atribui os 6 versos originais ao poeta romântico inlgês Robert Southey (1774-1843), que os teria composto por volta de 1820. Mas, durante um século e meio, foi apenas uma “nursery rhyme” anônima que fazia parte das muitas e variadas coleções da “Mother Goose” (“Mamãe Ganso”).

E o texto, na sua forma mais conhecida, é assim:

What are little boys made of?
Snips and snails, and puppy dogs’ tails
That’s what little boys are made of.
What are little girls made of?
Sugar and spice and all things nice
That’s what little girls are made of.

(“De que são feitos os meninos? De lascas e lesmas, e rabos de filhotes de cachorro; é disso que os meninos são feitos. De que são feitas as meninas? De açúcar e tempero, e de todas as coisas delicadas; é disso que as meninas são feitas.”)

Ponto para o tradutor da Ática, que exagerou um pouco na métrica, mas manteve o sentido e a rima. Quanto ao autor das legendas do filme, acho que ele não podia fazer muita coisa mesmo. Talvez daqui a duzentos anos.

Mia Farrow e Ruth Gordon em “O Bebê de Rosemary” (1968)


TEM MAIS:

O blog “Manual da boneca” tem uma versão em português mais antiga (e mais sem graça) da rima infantil.

O sítio dos escritores Gloria e William Delamar transcreve uma versão bem mais longa de “What Folks Are Made Of”.

Sítio oficial da escritora e ilustradora Babette Cole.


COMENTÁRIOS

Enviado por Beatriz Viégas-Faria em 16 de outubro de 2008.

Giba, vc tem alma de tradutor! Gosta de pesquisa e de pesquisa. Sim, com certeza, um diálogo traduzido que não faz sentido traz em seu nascedouro um problema de tradução - em geral isso pode receber tratamento teórico via Pragmática Lingüística ou via Estudos da Tradução ou via Literatura Comparada (no caso que vc cita, o problema está em achar o intertexto; no caso, a “nursery rhyme”). Que maravilha, os tempos de hoje, quando os bons tradutores podem ver seu trabalho comentado por cineastas atentos, e os cineastas já dispôem de tradutores que podem fazer cursos de boa qualidade em vez de se formarem auto-didatas, na base da tentativa-e-erro - como com certeza aconteceu com o legendador de “O bebê de Rosemary”, filme de 1968, quando a legendagem no Brasil, hoje respeitada senhora, ainda era menina.