A Bola ficou oval

por Giba Assis Brasil
em 16 de agosto de 2008

O começo dessa história é bastante conhecido: nos anos 1950, assustado com o popularidade crescente da televisão, o cinema inventou alguns truques pra trazer o público de volta às salas, e o mais importante deles foi a tela larga. Até então, as telas de cinema e televisão tinham tamanhos bem diferentes, mas a mesma proporção 1.33, ou seja, eram retângulos (no caso da TV, um retângulo com as bordas arredondadas) em que a largura era 33% maior que a altura.

A partir dos anos 1950, a TV continuou com a mesma proporção de 1.33, mas os filmes passaram a ser feitos no padrão europeu de 1.66, ou no padrão norte-americano de 1.85 ou ainda no “padrão Cinemascope” (também norte-americano, mas apenas para as grande produções) de 2.35, uma tela em que a largura é mais do que o dobro da altura.

“Luzes da cidade” (1931) foi rodado em proporção 1.33. “Blade runner” (1982) em 2.35. “Fanny e Alexandre” (1982) em 1.66. E “Sem destino” (1969) em 1.85.

Com isso, Hollywood conseguiu trazer parte do seu público de volta, mas criou um problema que terminou se voltando contra ela própria: como o público da TV continuou aumentando, o cinema veio a se tornar cada vez mais dependente da nova mídia, e a grande questão passou a ser: como exibir um filme rodado numa certa proporção dentro de uma tela que tem outra proporção? Ou, em outras palavras: como encaixar um retângulo dentro do outro, se eles têm proporções diferentes?

Se o filme foi rodado em 1.66 (padrão europeu), a diferença não é tão grande assim: apenas 20% da imagem não cabem na tela da TV (proporção 1.33). No caso do padrão norte-americano (1.85), a diferença já chega a 28%. E, para filmes rodados em Cinemascope (2.35), 43% da imagem, quase a metade, não cabe na TV.

Contra a geometria, não existe mágica. Classicamente, a questão tem três respostas possíveis, nenhuma delas perfeita: (1) cropagem - corta-se 20% ou 43% da imagem e reza-se pra que não tenha nada importante acontecendo nos cantos, o que quase nunca dá certo; (2) distorção - aperta-se a imagem no sentido da largura, de maneira que todos os objetos fiquem espichados verticalmente, e que os personagens fiquem todos com a cara do Marco Maciel; (3) barras: simplesmente coloca-se toda a imagem do filme original dentro da tela, em tamanho um pouco menor, e preenche-se o espaço que sobrar com barras pretas, o que os americanos chamam de “letterbox”.

Qual é a forma menos pior de encaixar “Blade runner” na tela de TV? Cropando, distorcendo ou colocando barras?

Qualquer pessoa com um mínimo de noção de estética da imagem, ou ao menos com as informações corretas, sabe que a terceira opção (as barras pretas) é a menos ruim das três, pois é a única que preserva a imagem original do filme, ainda que em tamanho menor. Mas, como a televisão nunca se preocupou muito com estética ou informação correta, espalhou-se a lenda de que o público não aceita as tais barras: o espectador-médio-padrão-Homer-Simpson faria sempre o raciocínio do “eu paguei a TV inteira, portanto quero a tela inteira” - sem que ninguém se esforçasse em explicar pra ele que, nesse caso, ele nunca vai ter o filme inteiro.

Na prática, a televisão terminou inventando duas outras formas de encaixar o inencaixável: (4) o “pan & scan”, uma tentativa de cropagem seletiva, em que as partes cortadas do filme podem estar ora do lado direito, ora do lado esquerdo, conforme onde está o centro de atenção da imagem em cada momento; e (5) a “mistureba” - um pouquinho de barras, um pouquinho de distorção e o resto de cropagem. Poupem-me de um comentário sobre a eficiência desses métodos.

No início dos anos 1980, quando se começou a discutir o que seria a televisão de alta definição, um engenheiro norte-americano chamado Kerns Powers sugeriu que ela tivesse uma proporção que fosse a média dos padrões já existentes, ou seja, 1.77. Seria uma forma de mostrar a imagem completa de qualquer filme ou programa de TV usando pequenas barras - verticais, para o que foi rodado em 1.33 ou 1.66; ou horizontais, para o que foi feito em 1.85 ou 2.35.

O novo problema é que o 1.77, que foi pensado como uma proporção média, passou a ser um novo padrão.

A programação de TV, ao menos no Brasil, continua sendo transmitida em 1.33 (no caso dos filmes, já cropado da imagem original). Mas os bares e restaurantes, as vitrines de lojas de eletrodomésticos, os dentistas, cabeleireiros e mesmo os lares dos novos consumidores já estão na era do 1.77. E “não pega bem” ter uma TV de tela larga pra mostrar qualquer coisa que seja na velha proporção 1.33, com aquelas barras laterais.

Portanto, é preciso dar um jeito. E o jeito mais fácil que os controles remotos dão é a teclinha “wide screen”, que significa “aperte aqui se o programa que você está assistindo tiver sido rodado em 1.77”, mas que todo mundo interpreta da forma mais fácil: “aperte aqui e o mundo todo vai se encaixar magicamente na sua nova TV pela qual você pagou tão caro”. A imagem 1.33 é espichada 33% pros lados, e ocupa toda a tela 1.77.

Um dos resultados foi que, de repente, o Brasil passou a praticar futebol americano com os pés - as regras continuam as mesmas, mas a bola ficou oval, assim como a lua, o sol, o símbolo da Globo e qualquer outra coisa que um dia tenha sido redonda. O outro resultado foi que todos os atores, apresentadores e demais celebridades televisivas (inclusive os jogadores de futebol) ficaram 33% mais gordos.

E é por isso, na verdade, que os Ronaldos parecem estar tão fora de forma ultimamente.

Aperte na tecla “wide screen” e a tela fica uma maravilha. Mas e a bola? E o peso, a largura dos ombros, o formato do rosto?


TEM MAIS:

Mais sobre proporção de tela (aspect ratio) na Wikipédia em inglês.

A SMPTE, associação de engenheiros de TV dos EUA, reconhece a importância do trabalho do Dr Kerns Powers.

Na verdade, a imagem de uma esfera distorcida horizontalmente não toma a forma oval, mas de um elipsóide.


COMENTÁRIOS

Enviado por Carlos Gerbase em 16 de agosto de 2008.

O mundo dá mesmo muitas voltas, redondas ou ovais, e o Giba está certo em defender que as proporções sejam mantidas sempre que possível. Mas as barrigas dos Ronaldos são reais (e desproporcionais às medidas ideais de qualquer atleta). Não é culpa da TV. Outra coisa: a tela cinematográfica que dá maior sentido de “imersão” para o espectador é, sem dúvida, a tela do sistema I-Max, que, salvo engano (não pesquisei) é 1:33 ou próximo disso. Telas muito panorâmicas perdem de longe para telas muito grandes e mais quadradas. Aliás, a visão humana é mais quadrada que retangular. Por mim, o cinema poderia continuar no 1:33 original. Alguns filmes seriam prejudicados (“Lawrence da Arábia” e “Apocalypse now”, por exemplo), mas perderíamos menos tempo falando de barras e poderíamos nos concentrar mais nas histórias, que ainda é o assunto mais importante do cinema.

Enviado por giba em 17 de agosto de 2008.

A proporção do iMax é 1.43. Mas é um filme super-70 mm correndo horizontalmente a 48 qps, o que dá quase 20 vezes mais película que o 35mm. A câmara pesa 110 kg e o projetor, quase 2 toneladas. Ou seja, não é uma alternativa. E a frase final sobre os Ronaldos era pra ser uma piada.

Enviado por Paulinho em 18 de agosto de 2008.

Giba, Muito boa a definição de “o espectador-médio-padrão-Homer-Simpson”. As pessoas infelizmente não fazem idéia de todas estas informação, e como todo mundo sabe a tv não está nem um pouco preocupada em informar isto, então desde que você me passou estas informações, o que eu tento fazer quando escuto: Não gosto destas barrinhas, assim não dá pra “mim” ver toda cena, eu faço o seguinte, coloco no pause e mostro o que elas perdem cada vez que diminuem as barras e elas olham incrêdulas e então começam a olhar daí sim o filme todo…rs Acho que não consegui fazer isto com mais de 15 pessoas, mas acho que já vale a pena… Abraços

Enviado por giba em 18 de agosto de 2008.

Grande Paulinho: o jeito é esse mesmo, tentar convencer as pessoas uma por uma. Mas a comparação do espectador médio com o Homer não é minha: foi o William Bonner quem fez, em novembro de 2005, para um grupo de professores da USP que estava visitando a TV Globo.

Enviado por Cristina Cinara em 20 de agosto de 2008.

Muito legal seu texto. Aprendi muito. Abraços e sucesso!

Enviado por giba em 22 de agosto de 2008.

Obrigado, Cristina. Volte sempre.

Enviado por Curioso em 16 de setembro de 2008.

Essa matéria é muito esclarecedora e, também, muito engraçada! Parabéns!

Enviado por Cláudio Azevedo em 11 de março de 2009.

Olá Giba, assistia um filme no cinema, ontem, e refletia sobre essas questões de proporção que já havia estudado em parte. Tua matéria está ótima, bem humorada e esclarecedora. Obrigado e parabéns!

Enviado por giba em 17 de março de 2009.

Obrigado, Cláudio. Volte sempre.

Enviado por Fabiula em 03 de junho de 2009.

Bastante elucidativo, sem deixar de ser crítico. Parabéns, Giba. Preciso de informações a respeito das imagens projetadas em cinemascope, você poderia me indicar alguma fonte de pesquisa? Se possível, gostaria de encontrar uma mesma imagem em cinemascope e em outro formato. além disso, seria possível deformar imagens com o uso dessa lente, pessoas transformar-se-iam em manchas? Desculpe incomodá-lo e agradeço se puder me responder. Abraço Fabiula

Enviado por Giba Assis Brasil em 22 de junho de 2009.

Oi, Fabiula. Na Wikipédia em inglês tem um bom artigo sobre o tema. Se você tem uma imagem que foi filmada em CinemaScope e quer ver como ela foi registrada no fotograma (ou seja, sem o uso da lente cilíndrica) é só reduzir 42% da largura e manter a altura igual. Se tem a imagem do fotograma (distorcida) e quer ver ela em proporção correta, mantém a altura e amplia a largura em 71%. Essas alterações podem ser feitas com facilidade no Photoshop, PaintShop Pro, FireWorks, Gimp ou qualquer programa gráfico similar. Abraço.

Enviado por Gil Monteiro em 25 de agosto de 2009.

Po cara, legal. Muito bom seu texto, coisas q eu vinha procurando ha muito, muito tempo. Nunca se divulga isso. Eu não entendia porque o Mágico de Oz só existia em 4x3. Mas vale lembrar que acontecem absurdos em DVDs também. Achei o DVD do musical “Chicago” por R$12,99, um ótimo preço, mas não atentei para o formato atrás (que, aliás, vem sempre escondido e em letras minúsculas, nunca no mesmo lugar). Qual minha surpresa quando descubro que um filme desse século, já na era digital, é sumariamente cortado! Não por acaso o baixo preço não? Bom, o mesmo acontece com outros filmes novos. Bom, gostei bastante do seu texto, parabéns!