Clichês

por Giba Assis Brasil
em 25 de agosto de 2008

Clichê, em artes gráficas, é uma placa metálica, quase sempre de zinco, usada para imprimir imagens ou textos em uma prensa tipográfica. A palavra veio do francês “cliché”, já era utilizada por lá desde o início do século XIX e, segundo o Houaiss, chegou aqui na década de 1870. É o particípio do verbo “clicher”, que tenta imitar o ruído de uma tipografia em funcionamento, e que significa exatamente o que aquela máquina faz: imprimir tipograficamente, clicher, clicher, clicher.

Como na França de 1800 os jornais já eram diários e provavelmente não havia assim tanto assunto, ou tantas abordagens diferentes para assuntos muito semelhantes, tornou-se prática comum repetir partes de um clichê, ou mesmo clichês inteiros, de um dia pro outro. E a palavra foi ganhando um novo significado: de coisa banal, fácil de usar para quem escreve e fácil de compreender para quem lê, mas de sentido progressivamente esvaziado pela repetição.

Mas acontece que os clichês são, ou eram, gravados em relevo, utilizando técnicas como a galvanotipia (quando o metal é depositado eletricamente), fotogravura (processo fotoquímico) ou estereotipia (quando uma matriz de gesso ou cartão molda o metal líquido). Acredito que a esterotipia terminou se mostrando mais eficiente ou mais barata que as demais técnicas, porque em poucas décadas ela também passou a ser culpada pela preguiça mental dos escrevinhadores: quando chamar uma frase banal de clichê já tinha virado clichê, a nova xingação passou a ser a de “estereótipo”. E eu nunca li ou ouvi ninguém chamar um personagem de “fotogravado” ou uma situação de “galvanotipada” - querendo dizer com isso que a situação ou o personagem são chavões.

Chavão é palavra mais antiga, incorporada à língua portuguesa desde o final do século XVI. Significava originalmente, é claro, chave grande. Mas depois também, sei lá por quê, um tipo de molde de metal usado em pastelaria para aplicar enfeites sobre bolos ou doces (hoje substituído pelo mais flexível “saco de confeiteiro”). E também, por extensão de sentido, a marca deixada pelo molde. E mais adiante ainda, em sentido figurado, qualquer modelo adotado pela maioria, norma, padrão. Enfim, um lugar-comum.

E aqui chegamos ao mais antigo dos nomes do clichê. Lugar-comum vem do latim “locus communis”, que gerou ainda o francês “lieu commun”, o inglês “commonplace”, etc. Originalmente, “locus communis” era o conjunto de fontes autorizadas pela tradição católica e da qual os teólogos poderiam se valer para que suas argumentações fossem aceitas - ou seja, uma espécie de “index prohibitorum” ao contrário. Daí até o significado atual - banalidade, coisa trivial, clichê - foi um pulo de alguns séculos.

É conhecida a frase, ou ao menos a idéia de que “o primeiro homem a comparar uma mulher a uma rosa era um gênio, e o segundo era um idiota”. Eu tenho minhas dúvidas. Parece que a frase original (1) é do Salvador Dali, mas quem pode garantir que ele não tenha sido o segundo?

Clichês antigos têm a vantagem da experiência. Pelo menos sobre os novos clichês, ou (argh!) os neo-clichês. Itamar Assumpção, aquele crioulo enorme, colocou numa música que “chavão abre porta grande”. Gilberto Gil, aquele negrão não tão grande assim, gravou a música do João Donato que lembra que um lugar-comum pode ser o “começo do caminhar pra beira de outro lugar”. E Alfred Hitchcock, aquele branquelo gordo, disse no livro de entrevistas pro Truffaut, em relação ao seu processo de escrever roteiros, ou de definir projetos de filmes a fazer: “É sempre melhor começar por um clichê do que terminar em um clichê.”

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(1) Citada pelo crítico de arte Pierre Cabanne em “Entretiens avec Marcel Duchamp”, Paris, Éditions Belfond, 1967. Mas eu só encontrei a versão em inglês: “The first man to compare the cheeks of a young woman to a rose was obviously a poet; the first to repeat it was possibly an idiot.”

Chavão abre porta grande?


TEM MAIS

No século XVI, escritores como Bacon e Milton faziam anotações em “commonplace books”.

Mais sobre Salvador Dali.

Mais sobre Itamar Assumpção.


COMENTÁRIOS

Enviado por Jorge em 25 de agosto de 2008.

Alô Giba: Achava que esta frase (“o primeiro homem…”) fosse do Voltaire. Fiz uma pesquisa rápida da internet e me convenci que é de Gérard de Nerval: “Le premier qui a comparé la femme à une rose était un génie, le second était un imbécile.” Gérard de Nerval (Paris, 22/05/1808 - 26/01/1855).

Enviado por Giba em 25 de agosto de 2008.

Bingo! Então o primeiro cara que disse que “o primeiro homem a comparar uma mulher com uma flor era um gênio e o segundo era um imbecil” era um gênio, e o segundo era o Salvador Dali. E se a gente encontrar alguém que tenha escrito algo parecido no século XVIII?

Enviado por joao fantini em 09 de fevereiro de 2011.

Estou aqui numa madrugada insone em londres pensando sobre clichês (que gosto muito pois acho que são os primos pobres dos mitos) e me deparei com seu texto. Muito bom! abraço fantini

Enviado por Giba Assis Brasil em 10 de fevereiro de 2011.

Obrigado, Fantini. Volte sempre (o que, pensando bem, é um clichê bem-educado).