Sexo e poesia

por Jorge Furtado
em 30 de dezembro de 2008

“A maioria de nossas funções humanas é singular: não precisamos de ninguém para respirar, andar, comer ou dormir. Mas precisamos dos outros para falar, para que nos devolvam o que dissemos. A linguagem é um modo de amar.”

Alfred Döblin, citado por Alberto Manguel em “A Cidade das palavras: as histórias que contamos para saber quem somos”.

Dos amores que tiveram um final infeliz. Dos enganos que, por amor ou para salvar a si mesmas, já praticaram as mulheres contra seus maridos, quer tenham eles notado ou não que foram ludibriados. Da pessoa que, perseguida por toda sorte de adversidades, conseguiu um resultado feliz, superando todas as expectativas. Daquilo que muito se deseja e finalmente é alcançado ou de algo que, depois de perdido, se recupera.

Quantas histórias você conhece que se encaixariam numa destas descrições? Estes são quatro dos temas de Decamerão, conjunto de cem novelas escrito por Giovanni Boccaccio (Florença, 16/06/1313 - Certaldo, 21/12/1375). Durante dez dias - Decameron, dez dias -, dez jovens, reunidos numa vila para escapar da peste que devastava a cidade de Florença, contam histórias para passar o tempo. Considerado por muitos o primeiro livro realista, o Decamerão é uma coletânea de contos de origem popular, histórias maravilhosas que resistem à prova do tempo, a maioria de conteúdo humorístico e erótico.

Uma das histórias que contamos em “Decamerão, A Comédia do Sexo” é baseada na nona novela da terceira jornada: uma mulher, plebéia, cura o rei de uma grave doença. Ele, em pagamento, lhe dá um nobre como marido. O nobre obedece e casa, não tem escolha, mas recusa-se a consumar o casamento. Ela, sem que ele saiba, troca de lugar com sua amante e finalmente torna-se esposa de fato. O “truque da cama” aparece também na sexta novela da terceira jornada e serviu de ponto de partida para duas peças de Shakespeare: “Tudo está bem quando termina bem” e “Medida por medida”.

Quantas histórias você já ouviu - ou viu - onde uma plebéia recorre a testes de DNA para identificar a paternidade de seu filho e garantir uma boa pensão? Uma camisinha ou um diafragma sabotados, um porre fenomenal, aditivos químicos variados ou uma boa conversa e pronto, lá vai o popstar, o super atleta ou super otário, garantir o futuro de mais uma moça esperta. Toma que o filho é teu!

A ascensão social pelo casamento, a dúvida sobre a paternidade, os amores impossíveis, as rixas de marido e mulher, a busca do prazer, a batalha pela sobrevivência, por dinheiro ou comida, são os grandes temas de todas as histórias, desde sempre, e para sempre. São temas que interessam a todos e a cada um de nós, humanos, com nossos instintos básicos de reprodução e morte, em nossa luta diária pela felicidade e o prazer. São histórias que se contam com poucos personagens, também eles habitantes do imaginário de qualquer um, em qualquer cultura, em qualquer época: maridos e esposas, filhos e pais, amantes, ciumentos, avarentos, bobos, pedantes, simplórios, arrogantes, aventureiros, sedutores, ingênuos, apaixonados, cínicos, românticos. Em quantas destas turmas você se inclui?

Histórias organizam emoções, exercitam nossa capacidade de sofrer, amar, sentir medo, trocar idéias. Histórias são a aeróbica da alma, o pilates da inteligência, a yoga da memória. Através delas nos descobrimos, nos entendemos e, se forem boas, nos transformamos. Boas histórias, humor, sexo e poesia. Tem coisa melhor?

Jorge Furtado Porto Alegre, dezembro de 2008.

Para saber mais sobre o Decamerão:

Para saber mais sobre Boccaccio:

(artigo publicado originalmente em O Globo, 28.12.08)


COMENTÁRIOS

Enviado por Tammiris em 03 de janeiro de 2009.

Na minha opinião, o verdadeiro grande tema de todas as histórias, desde sempre, e para sempre, é o amor. Ele mesmo. Simples, puro e inocente. Afinal, as moças espertas que querem garantir o futuro de alguma forma, (quase) sempre o fazem por amor. Não?. Ok, o verdadeiro grande tema de todas as histórias é o amor. Simples, mas nem sempre puro e nem sempre inocente. Ah, o amor…