Da dificuldade de traduzir o título do filme "Houve uma vez dois verões"

por Jorge Furtado
em 21 de março de 2009

“Antigamente era antigamente e hoje é um outro tempo. Escutem. Escutem e ouvirão a história daquele que partiu em busca da Primavera. Escutem. Os surdos dos dois tímpanos levarão a notícia aos ausentes, e os cegos dos dois olhos mostrarão aos coxos das duas pernas o lugar onde se passou. Era uma vez, e não era uma vez, e ainda assim era uma vez.”
(Fórmula introdutória de narrativa oral, tribo africana.)

Umberto Eco ensinou que o autor não deve interpretar sua própria obra, já que um texto é uma “máquina de gerar interpretações”. Ele lembra, no entanto, que pelo menos uma interpretação é inevitável, se for atribuição do autor escolher o título da obra. Eco cita (em “Pós escrito ao nome da rosa”) “Os Três Mosquiteiros” como o melhor dos títulos, já que se trata da história de quatro mosqueteiros, e o protagonista é exatamente o quarto. Ou seja, Dumas começa a mentir já no título, o que é ótimo.

Não conheço filme sem título, uma prática comum nas artes plásticas. Eu mesmo escolhi os títulos dos meus filmes. (Vou tomar a licença de chamar de “meus filmes” os filmes que escrevi e dirigi, embora sejam todos eles resultado do talento e do trabalho árduo de dezenas de pessoas. “Os filmes que escrevi e dirigi” é muito comprido.)

Meu primeiro filme de longa metragem se chama “Houve uma vez dois verões”. A tradução literal para inglês seria “Once Upon a Time Two Summers”, mas os distribuidores sabiamente optaram pela versão mais curta, “Two Summers”.

Em português, “Houve uma vez…” é uma abertura clássica de narrativa de fábula, uma forma pouco mais arcaica que o “Era uma vez”…, esta a introdução mais comum.

Era uma vez, e não era uma vez, e ainda assim era uma vez.

Googlei “era uma vez” (dia 10 de janeiro de 2008, 18:05) e encontrei 622 mil entradas, de todo tipo: nomes de sites, coleções de livros infantis. As dez primeiras entradas eram de 10 sites diferentes.

Googlei “Houve uma vez”, apareceram 230 mil entradas. As primeiras 51 entradas eram referências ao meu filme. A entrada 52 era sobre a expressão “houve uma vez um verão”, um convite para uma festa.

“Houve uma vez dois verões” é um trocadilho sobre o título brasileiro de um grande sucesso do cinema, “Summer of 42” , filme de 1971 dirigido por Robert Mulligan, que no Brasil se chamou “Houve uma vez um verão” (“Once upon a time a summer”).

Acontece que, em português, este “um” antes da palavra “verão” pode ser numeral ou artigo indefinido, pode ser “a summer” ou “one summer”, mas a primeira leitura é, claramente, “a summer”.

Já a palavra “dois” só pode ser numeral, “two summers”. O eco distorcido do título do filme de Mulligan (também uma história de iniciação sexual, também com dois amigos numa temporada de verão numa praia semi-deserta, também seduzidos por uma mulher mais velha) sugere claramente que aqui se trata de uma comédia, talvez até uma paródia (não é o caso).

E mais: a expressão “uma vez dois”, contida no título, remete claramente (é mesmo a sua primeira leitura) a uma operação matemática, “uma vez dois, sete vezes dois…” (“one time two, seven times two”).

E mais: é um erro muito freqüente, em português, conjugar o verbo haver no plural, “houveram dois verões”, quando o certo é “houve dois verões”. Ou seja: o título em português tem também uma função didática, na medida em que, como costumam fazer os títulos, cristaliza uma expressão, informação ou grafia em formato rememorável. Os exemplos são muitos. É graças a um título rememorável que podemos lembrar facilmente que são seis as esposas de Henrique Oitavo e não oito as esposas de Henrique Sexto.

Estes são alguns dos problemas em traduzir para o inglês o título do filme. Certamente há problemas que eu desconheço por não dominar o inglês, talvez a expressão “Two Summers” tenha conotações que eu ignore, talvez seja o nome de uma conhecida casa noturna de Cambridge ou talvez a marca de um bronzeador.

Todos estas dificuldades aparecem em cada frase do diálogo e no sentido de cada uma das cenas.

As trilhas em inglês, para o público brasileiro, devem ser consideradas quase como música instrumental, já que a imensa maioria dos espectadores ignora o sentido das letras e, mesmo quem sabe um pouco de inglês, não presta atenção no que a letra da música diz. A questão se inverte no caso das músicas em português, onde a letra da música é explícita e complementa a cena, faz parte do roteiro.

Isso significa que um filme não pode ser entendido em outra cultura? É claro que pode. Talvez o cinema seja - depois da música - a forma de expressão humana que melhor “viaja”. Isto se deve, talvez, ao fato de percebermos o que os personagens desejam - o que é condição para a dramaturgia - não apenas por aquilo que eles dizem, mas também pelo que eles fazem, por seus gestos e expressões.

O cinema, mais que o teatro e muito mais que a literatura, se vale da idéia que Shakespeare muito bem definiu, nas palavras de Volumnia, em Coriolano (III, 2): “Ação é eloqüência, e os olhos do ignorante mais eruditos do que as orelhas…” (“Action is eloquence, and the eyes of th’ ignorant more learned than the ears.”)