A vontade que se inclina ante a imagem que ela própria eleva

por Jorge Furtado
em 16 de agosto de 2009

Meu medo é que a imprensa comece a acreditar no que publica. Quer dizer, que digam que não podem afirmar se a ficha e o grampo são falsos, tudo bem, mas que acreditem, aí já é demais. (E cadê o Picasso do INSS?)

Pensei nisso ao ver o tom indignado de alguns jornalistas ao noticiar que o Conselho de Ética do Senado (assim como já fez o Supremo Tribunal Federal e faria qualquer outro tribunal que preste pelo mundo afora) não aceitou “notícias de jornal” como provas, veja você!

Lembrei de uma frase de uma peça de Shakespeare, acho que era mais ou menos assim: “Tola é a vontade que se curva ante a imagem que ela própria eleva”.


Qual era a peça? Onde li isso? Fui a cata, achei, foi no “Livro das Citações, Shakespeare de A a Z”, uma ótima seleção feita pelo Sérgio Faraco, da L&PM pocket, está lá, na página 142, eu errei quase todas palavras, mas o sentido era o mesmo:

VONTADE
Desvairada é a vontade que se inclina ante uma imagem que ela própria eleva.
Tróilo e Créssida (1601-1602)
Ato II - Cena II: Heitor


“A História de Tróilo e Créssida”, de William Shakespeare, se passa durante a Guerra de Tróia. O grande personagem da peça é Tersites, “a scurrilous Greek” (baixo, grosseiro, inconveniente, indecente, sujo, vil e, é claro, muito engraçado). Tersites sintetiza com perfeição os motivos da guerra: “A causa de todo este barulho é um cornudo e uma prostituta.” (II,3).

Na cena citada por Faraco (II,2) Heitor, príncipe troiano, discute com seu irmão, Tróilo, se devem ou não aceitar a proposta dos gregos para acabar com a guerra: que entreguem Helena e tudo será esquecido. Heitor é a favor, Tróilo contra.

O original é assim:

HECTOR
Brother, she is not worth what she doth cost the keeping.

TROILUS
What is aught, but as ‘tis valued?

HECTOR
But value dwells not in particular will;
It holds his estimate and dignity
As well wherein ‘tis precious of itself
As in the prizer: ‘tis mad idolatry
To make the service greater than the god
And the will dotes that is attributive
To what infectiously itself affects,
Without some image of the affected merit.

Notas da edição da Penguin:

  • particular will - individual inclination
  • dignity - worth
  • prizer - appraiser
  • will dotes that is attributive to what infectiously itself affects - the will is infatuated that subjects itself to what it pathologically desires
  • without some image of the affected merit - without some discernible evidence of value in what is desired

Esta é a tradução de Carlos Alberto Nunes, que serviu de base para a seleção do Faraco.

HEITOR - Ela não vale, mano, o que nos custa conservá-la aqui em Tróia.

TRÓILO - Nada vale mais do que o preço que nós próprios damos.

HEITOR - Mas não depende este valor apenas de uma vontade pessoal. A dignidade de um objeto e seu preço se regulam pelo valor, não só, que lhe fôr próprio, como nos encômios do entendido. É tola idolatria mais solene deixar o culto do que o próprio deus. Desvairada é a vontade que se inclina ante uma imagem que ela própria eleva, mas destituída de qualquer valia.


Faraco botou um ponto depois do “eleva” e deu um novo sentido a frase, um sentido mais profundo, eu acho, que o da tradução de Nunes e, de certa forma, mais interessante e complexo que o do original de Shakespeare. “A História de Tróilo e Créssida”, peça de William Shakespeare, foi escrita entre 1601 e 1602 a partir da “Recuiell of the historyes de Troie”, de Raoul de Le Febvre, traduzido por Caxton, e também do poema “Troilus and Crysseide”, de Chaucer e ainda da “Ilíada”, de Homero - ou, como diz o Borges, “dos gregos a quem chamamos de Homero” - traduzida por Chapman. Já a excelente frase “Desvairada é a vontade que se inclina ante uma imagem que ela própria eleva”, esta é de Sérgio Faraco.


Acho a tradução do Nunes confusa. Não sei de onde veio aquele “mais solene”, que parece estar ali só para dar métrica, e falta a palavra “maior” na frase “É tola idolatria mais solene deixar o culto [maior] do que o próprio deus” (‘tis mad idolatry to make the service greater than the god). Tenho duas edições desta tradução, nas duas está escrito assim mesmo, sem o “maior” a frase não faz sentido.

Outra coisa: aquele “image” do original significa “aparência”, Without some image of the affected merit, sem qualquer aparência, ou sinal, do mérito que lhe é dirigido, não é uma “imagem” - no sentido de “ídolo” que a tradução de Nunes lhe confere - ante a qual algo ou alguém possa se inclinar. E os “encômios do entendido” é estranho, para dizer o mínimo.


A tradução de Cunha Medeiros e Oscar Mendes:

HEITOR - Irmão, ela não vale o que custará para conservá-la.

TRÓILO - O valor de um objeto não é aquele que lhe é dado?

HEITOR - O valor não depende de uma vontade particular; seu mérito e sua importância provêm tanto do seu preço intrínseco quando da avaliação do apreciador. Fazer o culto maior do que o deus, é louca idolatria e a paixão delira quando atribui qualidades de que é fanática a um objeto que não tem nem sombra deste mérito apreciado.


Já é bem melhor, embora “qualidades de que é fanática” ainda pareça confuso.


A tradução de Bárbara Heliodora:

HEITOR - Ela não vale o que nos custa tê-la.

TRÓILO - Sem ser valorizado, nada vale.

HEITOR
Mas valor não depende de vontade
Ele tem o seu grau e dignidade
Tanto no que em si já é precioso
Quanto em quem valoriza. É idolatria
Fazer o culto ser maior que o deus
Está senil a vontade que aprecia
A infecção que a si mesmo afeta
E não vê a imagem do que adora.


A melhor das três, acho, pela métrica, a simplicidade na escolha das palavras e a precisão do sentido, embora falte algo no “não vê a imagem” do verso final, algo com “não vê a verdadeira imagem”, ou “não vê a real imagem”, o que seria um problema para a métrica mas se aproximaria ao sentido original.


Note-se que Will, só para variar, abusa dos jogos de palavras, dos muitos sentidos da mesma palavra (will), das muitas palavras para um sentido semelhante (dignity, value, worth, cost), da métrica, das rimas evidentes ou sutis, enfim, a tradução é uma encrenca.


Apreendi com Ivo Barroso que a única crítica honesta possível a uma tradução é outra tradução. Isto posto, com meu natural destemor, inigualável pretensão e já tradicional falta de senso do ridículo, mando a minha:

HEITOR
Irmão, ela não vale tanto quanto custa.

TRÓILO
Tem, como tudo, o valor que lhe é dado.

HEITOR
O valor não mora num desejo
O preço e a importância vêm
do que o objeto vale por si mesmo
e quanto paga quem quer e não o tem
Doida idolatria quando a razão se entrega
E faz maior que Deus a religião e a crença
Ama o brilho da imagem que lhe cega
E enfeitiçada vê a cura na doença


Bibliografia:

  • William Shakespeare, the complete works. Penguin Book, Londres, 2002. Edição e notas de Stephen Orgel e A. R. Braunmuller.
  • Shakespeare de A a Z, Livro das Citações, L&PM, Porto Alegre, 1998. Seleção de Sérgio Faraco, tendo como base a tradução de Carlos Alberto Nunes.
  • Shakespeare, Teatro Completo. Vol. 1, Tragédias. Ediouro, Rio de Janeiro, sem data. Tradução de Carlos Alberto Nunes.
  • Troilo e Créssida / Timão de Atenas, vol. 10 da Obras Completas de William Shakespeare. Ediouro, Rio de Janeiro, 1966. Tradução de Carlos Alberto Nunes.
  • William Shakespeare, Obra Completa, Vol. 1. Editora Nova Aguilar, 1995, Rio de Janeiro. Tradução de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes.
  • William Shakespeare, Teatro Completo, vol. 1, Tragédias e Comédias Sombrias. Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 2006. Tradução de Bárbara Heliodora.

Sobre Tróilo e Créssida:

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ROUBALHEIRA TAMBÉM É CULTURA.

O dinheiro roubado pela quadrilha do Detran gaúcho (44 milhões) equivale a 352 anos de investimento do governo estadual em Cultura (125 mil reais por ano, orçamento de 2009).

Sugestão: que o dinheiro devolvido pela quadrilha do Detran (eles vão devolver o dinheiro, espera-se) seja aplicado diretamente na aquisição de livros e equipamentos para as bibliotecas escolares, dentro do programa “Seu Ladrão Vale um Milhão! Mais Cultura e Educação!”

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Ficamos sabendo hoje que os 5 milhões de grampos telefônicos no Brasil, país da “grampolândia” (1) viraram 7 mil e quinhentos (2). Nesse ritmo não sobrarão nem os grampos de cabelo.

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(1) “Num país onde se calcula que 5 milhões de pessoas sejam grampeadas a cada ano, até o mais protegido dos cidadãos convive com o receio de que suas conversas sejam gravadas.”
Revista Época, 8 de setembro de 2008.

(2) O Brasil tem 7,5 mil telefones grampeados com autorização da Justiça. (…) Segundo o corregedor nacional de Justiça, ministro Gilson Dipp, o número mostra que não existe “grampolândia” no país. (…) “Os dados revelam que a grampolândia nunca existiu. Em um país de dimensões continentais, esse dado não é nenhum exagero”, avaliou Dipp.
Jornal Zero Hora, 15 de agosto de 2009.


COMENTÁRIOS

Enviado por Jorge Furtado em 20 de agosto de 2009.

Longe de mim querer provocar polêmicas, mas tenho a impressão que a tradução de Cunha Medeiros e Oscar Mendes para “Tróilo e Créssida”, publicada pela primeira vez em 1969 pela Nova Aguilar, se baseia menos no original de Shakespeare e mais na tradução para o espanhol feita por Luis Astrana Marin em 1941.

Original: “‘tis mad idolatry to make the service greater than the god and the will dotes that is attributive to what infectiously itself affects, without some image of the affected merit.”

Luis Astrana Marin: “Hacer el culto mas grande que el dios es loca idolatria, y la pasión delira cuando atribuye cualidades de que es fanática a um objeto que no tiene ni sombra de este mérito apreciado”.

Cunha Medeiros e Oscar Mendes: “Fazer o culto maior do que o deus, é louca idolatria e a paixão delira quando atribui qualidades de que é fanática a um objeto que não tem nem sombra deste mérito apreciado”.

Sobre Luis Astrana Marin: