Da impossibilidade teológica da transferência de renda

por Giba Assis Brasil
em 19 de março de 2010

As correntes de e-mails, com toda a perda de tempo que acarretam, e com toda a quantidade de bobagens que terminam nos obrigando a ler, não deixam de ser um termômetro do que uma parcela da população está pensando, ou sentindo, ou querendo. Por exemplo: que Luis Fernando Verissimo, Chico Buarque e Gabriel Garcia Marquez deveriam parar de fazer o que fazem e começar a escrever textos de auto-ajuda. Ou que repassar um e-mail qualquer para 200 pessoas evita o desmatamento da Amazônia, ou ajuda um pai a encontrar um filho desaparecido, ou faz com que a Microsoft te pague um salário pelo serviço.

A última que eu recebi é do tipo “filosófico-social, com implicações históricas”. Um texto supostamente escrito em 1931 e que teria, veja só, surpreendentes revelações sobre a situação brasileira atual:

“É impossível levar o pobre à prosperidade através de legislações que punem os ricos pela prosperidade. Por cada pessoa que recebe sem trabalhar, outra pessoa deve trabalhar sem receber. O governo não pode dar para alguém aquilo que tira de outro alguém. Quando metade da população entende a ideia de que não precisa trabalhar, pois a outra metade da população irá sustentá-la, e quando esta outra metade entende que não vale mais a pena trabalhar para sustentar a primeira metade, então chegamos ao começo do fim de uma nação. É impossível multiplicar riqueza dividindo-a.” (Adrian Rogers, 1931)

A mensagem não informa, mas é fácil descobrir no Google (e daria pra desconfiar) que Adrian Rogers foi um pastor do sul dos EUA (Memphis, Tennessee), conservador e fundamentalista. Segundo a Wikipédia, foi também um dos grandes responsáveis pela guinada à direita da Igreja Batista nos anos 1970. Ao longo de sua carreira, Rogers ficou conhecido por suas pregações contra o direito ao aborto, a favor da pena de morte, contra a paz na Palestina e a favor da escravidão, em conformidade com o texto bíblico.

Não, não é brincadeira, pelo menos não da minha parte. O Senador Demóstenes Torres (DEM/GO) acabou de nos ensinar que a culpa da escravidão é dos próprios escravos. Mas Adrian Rogers teria ido além: não há culpa nenhuma, a não ser dos que condenam a escravidão. Na autobiografia do também pastor batista Cecil Sherman, “By my own reckoning” (Smyth & Helwys Publishing, 2008, p. 189), é relatada uma conversa entre os dois ministros da Igreja sobre a aparente contradição entre a infalibilidade da Bíblia e as várias referências do livro sagrado aos deveres dos escravos. A resposta atribuída a Rogers (da qual eu não encontrei nenhum desmentido) é uma pérola: “Acredito que a escravidão é uma instituição muito caluniada. Se tivéssemos escravidão hoje, não haveria toda essa confusão da previdência social”.

(“I believe slavery is a much maligned institution; if we had slavery today, we would not have this welfare mess.”)

Em 1996, Rogers liderou um boicote nacional dos batistas contra a Walt Disney Productions, acusada de “promover o homossexualismo”. Em seus sermões, defendia a participação dos fiéis nas eleições e acusava de pecadores os que se abstinham. Chegou a escrever que “é dever do pastor influenciar as decisões políticas dos membros de sua congregação”, mas nunca assumiu explicitamente o apoio a qualquer candidato - até porque, pela legislação dos Estados Unidos, as igrejas que fazem isso perdem o direito à isenção de impostos. Não que o apoio explícito fosse totalmente necessário: o próprio Rogers também escreveu que “se um pastor cumprir o seu papel, seus fiéis saberão piedosa e corretamente interpretar a palavra de Deus para escolher the right candidate” - mantive as três últimas palavras no original para chamar atenção que elas podem igualmente ser traduzidas por “o candidato certo” ou “o candidato da direita”.

O texto do e-mail, contendo a “grande sacada” de que “não é possível distribuir renda”, na verdade é um trecho de um sermão de 1984 chamado “God’s Way to Health, Wealth and Wisdom”. 1931, indicado como data de redação, foi o ano em que o Pastor Rogers nasceu (ele morreu em 2005). Ou seja: embora as ideias sejam medievais, trata-se de um discurso recente, da era Reagan.

Não muito diferente do que Delfim Netto dizia no tempo da “nossa” ditadura: “Antes de dividir o bolo, é preciso fazê-lo crescer”. Ou o que, na mesma época, dizia dom Geraldo de Proença Sigaud, bispo de Diamantina entre 1947 e 1980 e um dos fundadores da TFP:

“Educai os fiéis no amor à ordem desigual que Deus quer. Em lugar de alimentar antipatia à desigualdade, ensinai-os a ter amor à desigualdade. Mostrai que está segundo a ordem da Providência que, dentro de certos limites, haja alguns miseráveis, para os quais se exerça a caridade individual e a organizada; muitos que lutem pelo pão quotidiano; muitos remediados que tenham sobras; alguns ricos que possam exercer em maior escala funções de caridade, de zelo, cultura, arte, progresso e apostolado; e até alguns poucos muitíssimo ricos, aos quais, além das funções de zelo e caridade, toque cultivar as virtudes da magnificência e da munificência. No corpo da sociedade, todas estas escalas de riqueza são úteis e necessárias.” (“Carta pastoral sobre a seita comunista”, Editora Vera Cruz, São Paulo, 1963, p. 142)

O que Rogers defende por questões econômicas e pragmáticas (distribuir renda gera vagabundos), dom Sigaud justificava pela teologia (Deus não quer e pronto). Até nisso nossos reacionários vão mais fundo que os americanos. Mas o argumento do pastor batista tem uma aparência científica, e jogá-lo pra década de 1930 torna-o ainda mais neutro, distante e, portanto, provavelmente correto.

Em resumo: não acredite em políticas de transferência de renda. Se os indicadores econômicos estão apontando que o governo Lula triplicou o salário mínimo real sem gerar inflação, que 20 milhões de pessoas saíram da linha da pobreza em 5 anos, que está surgindo no país uma nova classe média capaz de consumir, etc. - tudo isso é bobagem. Não é que não tenha acontecido, ou que os números sejam falsos: é que no fim não muda nada, simplesmente porque Deus não quer.

Claro que esse texto de 1931, que na verdade é de 1984 mas que poderia ser de 1963, virou corrente de e-mails em 2010, ano eleitoral. E, no Brasil, ninguém perde a sua isenção de impostos por ter candidato.

Pastor Adrian Rogers e Bispo Geraldo Sigaud: viva a desigualdade!


TEM MAIS

Artigo da Wikipédia em inglês sobre Adrian Rogers.

Brasil cresce com um novo mercado de massa”: artigo de Alberto Tamer no Estado de São Paulo (13/02/2010).

Resolução da Southern Baptist Convention (presidida por Adrian Rogers) de boicotar a Disney, em junho de 1996.


COMENTÁRIOS

Enviado por Carlos Gerbase em 20 de março de 2010.

Giba, grande texto! Estou lendo o último livro de Richard Dawkins, em que ele conta o seguinte: 40% dos norte-americanos acreditam que o universo foi criado por Deus há 10 mil anos, e que todos os seres vivos, inclusive o homem, foram colocados no planeta do jeito que são, sem qualquer trajetória evolucionista. Os fósseis são resultado de uma grande mortandade provocada pelo Dilúvio. Ou seja, quase metade dos norte-americanos acreditam na arca de Noé e não acreditam em Darwin. Quem alimenta - diariamente, e com investimentos pesados - essa bela fantasia? É claro: pregadores religiosos de direita. Deus, além de ter criado os homens desiguais, criou-os para viver num universo estático, em que a História não passa de uma mentira. Ou, nas palavras de Joyce, de um pesadelo de que não se consegue despertar. E, pra não botar na conta só da cristandade, Dawkins lembra o “Atlas of Creation”, do muçulmano Harun Yahya, “um livro enorme, luxuoso, lindamente ilustrado e estultamente ignorante”, que “foi distribuído gratuitamente a dezenas de milhares de professores de ciência.” Isso sem falar da Conservapedia, que é uma Wikipedia destinada a, entre outras coisas, transformar a Evolução em uma teoria furada. Que saudade da velha e boa Teologia de Libertação, que pregava a mudança e a inconformidade. Fica cada vez mais óbvio que a bancada dos evangélicos e a bancada dos donos de concessões de rádio e TV, quando juntam suas forças, são imbatíveis. E que a tendência é que esse poder aumente no Brasil, independente de quem seja o próximo presidente.

Enviado por Daniela Feitoza em 04 de junho de 2012.

Hj vi via Facebook a “pérola” que motivou este texto. E daí quis saber quem foi o “sábio” que escreveria algo assim. Vi no Wikipedia as informações que vc menciona e achei seu texto na sequência. Excelente texto de análise irrefutável.

Enviado por Pedro Borba em 25 de setembro de 2012.

Li o texto com algum atraso, mas ironicamente em outro ano eleitoral - em que o candidato republicano nos EUA deixou escapar que quase metade da população do país não trabalha, mama no governo e que por isso vota em obama. dava um bom slogan: quem mama vota em obama. Acho que ele só não disse muito mais da metade porque, afinal, está tentando ganhar a presidência. baita texto giba, como sempre.

Enviado por Renato Sobral em 18 de junho de 2013.

Muito interessante encontrar hoje, 18 de Junho de 2013, este texto de 2010. Não foi por acaso que o encontrei. Na verdade, recorri ao Google para saber quem é esse Adrian Rogers. Interessante foi a descoberta de como as pessoas simplesmente passam pra frente qualquer coisa que recebem por e-mail. Confesso que no momento atual, onde uma pequena revolução explode no país todo, quase cometi um ato impensado de dar um “forward” para um monte de gente de um e-mail que recebi citando “Adrian Rogers, 1931”. Como não repasso citações de terceiros sem antes conferir a fonte, procurei por Adrian Rogers no Google e encontrei esse texto. Resolvi comentá-lo pois o momento é de “revolta” por todo o país, gerado por um movimento em SP contra 20 centavos de aumento na tarifa de transporte público. Coincidentemente (ou não) estamos às vésperas das eleições presidenciais de 2014, véspera de Copa do Mundo, de Olimpíadas. Para não me alongar muito, deixo a pergunta: Por que o brasileiro sempre se revolta na véspera, no DIA não faz nada para mudar, e volta a reclamar no dia seguinte ?