Nós que amávamos tanto o cinema

por Jorge Furtado
em 29 de abril de 2010

Vocês eu não sei, mas o cinema mudou minha vida muitas vezes. Nada mais poderoso que uma fábula embalada em forma de diversão, concentrada em duas horas de luz e movimento - a música da luz - povoada pelas infindáveis paisagens do rosto humano e, para completar a receita desta delícia, literatura à vontade. Ninguém é a mesma pessoa antes e depois de assistir “Ladrões de Bicicleta”, “Nós que nos amávamos tanto”, “Crepúsculo dos deuses”, “Annie Hall” ou “Meu tio na América”.

Divertir, como lembra Umberto Eco, “não significa ‘diverter’, desviar dos problemas. (…) O leitor ideal de Finnegans Wake deve afinal divertir-se tanto quanto o leitor de Carolina Invernizzio. Tanto quanto. Mas de maneira diversa”. (Em italiano, divertir/divertere, desviar/diverter.)

Os cinco filmes que citei, exemplos do poder máximo do cinema, são comoventes, profundos. E são também engraçados, empolgantes e, não contentes com isso, desobedecem e reinventam regras de linguagem e narrativa. Ao contrário de desviar dos problemas, batem de frente com as mais antigas paixões humanas, o medo da fome e da morte, o modo como um filho vê seu pai, o amor, a amizade e o passar do tempo, a loucura, o poder da arte e da palavra, o emaranhado da paixão romântica, o prazer do sexo, os labirintos do mundo do trabalho, a memória, a família, personagens que decidem seus destinos fazendo escolhas, como nós.

Há quem classifique filmes (lembre-se que você não precisa classificar nada, não é pago para isso!) segundo o público ao qual eles se destinam, filmes adultos, filmes adolescentes, filmes para crianças. No mundo dos 3-d e dos baldes de pipoca, onde Alice abre seu caminho para o mercado chinês a golpes de espada enquanto vigia seu cunhado para que não volte a trair sua irmã, o cinema que pode ser encontrado na maioria das salas brasileiras é para crianças, fábulas simples, tipo bem contra o mal e mocinho com mocinha no fim, veja o filme, compre o disco, beba seu refrigerante e volte sempre. Os melhores do gênero são os que não escondem o fato de que são mesmo para crianças, como os da Pixar.

Filmes adolescentes, dizem, são os filmes onde os personagens são adolescentes e o público, é o que esperam, também. Acho que filmes bons com personagens bons de qualquer idade podem divertir pessoas inteligentes de qualquer idade. A classificação etária deve proteger crianças de cenas de violência e sexo, e é só.

“Antes que o mundo acabe”, longa metragem de estréia de Ana Luiza Azevedo é daqueles filmes que dão sentido ao cinema. Diverte, mas não desvia. Impossível não grudar os olhos nos olhos daquelas crianças que viram adultos na sua frente, ótimos atores dirigidos com grande sensibilidade e conhecimento pela Ana, que faz isso melhor do que ninguém. Enquanto diverte, “Antes que o mundo acabe”, que já era um belo livro do Marcelo Carneiro da Cunha (um best-seller nas escolas, cansei de ouvir de garotos e garotas que este era o seu livro preferido), o filme da Ana faz pensar, emociona, transforma.

Vale ficar calado? Vale mentir? Não dizer a verdade é o mesmo que mentir? Vale mentir ao amigo? E se o amigo é um ladrão, segue sendo amigo? Se o amor termina, a vida segue? Pai só tem um? O que você vai ser quando crescer? Dá pra mudar o mundo, antes que o mundo acabe? A Ana acha que sim.

Não perca, breve num cinema perto de você.