A bizarrice das leis anti-nepotistas

por Jorge Furtado
em 25 de junho de 2010

Verbete: nepotismo
[De nepote + -ismo.] S. m.

  1. Autoridade que os sobrinhos e outros parentes do papa exerciam na administração eclesiástica.
  2. Favoritismo, patronato: “A tal ponto foi aquela identificação do irlandês com o patriarcalismo, o familismo, o próprio nepotismo brasileiro …. que a adoção, por Daunt, do culto do Padre Diogo, …. surge-nos com alguma coisa de culto doméstico, ao mesmo tempo que aristocrático à moda paulista.” (Gilberto Freire, Problemas Brasileiros de Antropologia, p. 54.)

Tai-Tzung (ou Taizong), inventor dos concursos públicos.

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Em junho de 1999 escrevi este texto, que foi publicado no “Não”:

Qual é mesmo o mal do nepotismo?

Volta e meia aparece na imprensa uma matéria denunciando o nepotismo de algum político, o cara contratou não sei quantos sobrinhos, cunhadas e o escambau. Volta e meia surge também algum deputado com uma proposta de lei proibindo a contratação de parentes, com o total apoio do Alexandre Garcia, da Veja, do Padre Marcelo, da Folha e do PT. Falar mal da contratação de parentes no serviço público, como elogiar o Chico Buarque e a bunda da Tiazinha, é uma rara unanimidade nacional. Pelo que me conste, sou a única pessoa que não entende a indignação moral que a todos une contra a contratação de parentes.

Pra começar, parto do pressuposto de que alguns cargos de confiança, mesmo no serviço público, devem ser preenchidos sem a necessidade de concurso público. São cargos temporários, subordinados ao mandato do chefe. O contratado vai embora quando o contratante perde o cargo. (A indignação da maioria dos telespectadores parte da falsa idéia de que os contratados, como os funcionários de carreira, ganharam uma boquinha vitalícia). Não acredito que ninguém defenda seriamente a idéia de que um prefeito recém eleito, por exemplo, possa manter como seu chefe de gabinete ou secretário particular alguém que já estava no cargo com seu antecessor. Também não tem lógica nenhuma exigir que um cargo destes seja preenchido através de concurso público. E se um inimigo político, um sujeito que odeia o tal prefeito recém eleito, tirar primeiro lugar no concurso? Nem parece ser este o argumento dos anti-nepotistas. Todo mundo aceita que o tal prefeito convide quem ele bem entender para o cargo desde que não seja seu parente.

É evidente que a campanha anti-nepotismo tenta combater o empreguismo desenfreado que assola prefeituras, câmaras, assembléias e tribunais brasileiros. O cara acabou de ganhar um cargo público e já arruma emprego para toda a família. É evidente também que há casos onde o excesso é prova da má fé. Um prefeito acaba de ser denunciado por ter preenchido TODOS os cargos públicos (mais de 20) com parentes. Seria um absurdo igual se todos os escolhidos fossem ruivos ou se chamassem Fernando. É pouco provável que o critério de confiança e competência terminasse por escolher exclusivamente parentes, ruivos ou Fernandos para os cargos. Mas daí a querer proibir a contratação de qualquer parente para qualquer cargo, vai uma longa distância.

Para o erário não faz a menor diferença se o contratado é o amante, vizinho ou colega de creche (não-parentes) ou concunhado, primo-segundo ou tio (parentes). O que faz diferença é se o cara realmente é util, trabalha e cumpre horário ou só aparece no fim do mês para buscar o salário, seja parente ou não. As leis proibindo contratação de parentes não inibem em nada o empreguismo. Basta que um vereador contrate o primo do outro e o outro a sobrinha do um e fica tudo resolvido. E se o cara contrata uma secretária maravilhosa, estenógrafa e poliglota, se apaixona por ela e casa? Ao tornar-se parente ela precisa ser despedida? E se o sujeito contrata alguém e descobre depois que ele é seu sobrinho por parte da ex-mulher? Me desculpem os moralistas de plantão, mas esta lei não pára em pé.

Me parece que uma lei deve ter base moral e não simplesmente tentar coibir excessos. Não contratar parentes para cargos de confiança no serviço público me parece mais um bom conselho do que uma boa lei, do tipo não namore a secretária ou não vá a sala do chefe usando esta saia tão curta. Pode, mas é melhor não. Infelizmente a legislação não substitui o bom senso.

Em vista do exposto, peço que o senhor receba com atenção este rapaz que estou lhe encaminhando. Ele é filho de minha irmã e está precisando muito trabalhar. Se for possível que o senhor o libere na parte da tarde (ele está fazendo o segundo grau) e nas terças e quintas pela manhã (ele é vice-campeão gaúcho de skate e precisa praticar) fico-lhe imensamente grato. E, por favor, agradeça a dona Neusa pelas cocadas.

Cordialmente, Jorge Furtado

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Sete anos depois, em 17 de abril de 2006, escrevi este texto, publicado no Terra Magazine:

Senso incomum

A gesta de Beowulf, poema do século VII, primeira saga da literatura européia, conta a história do “mais bondoso dos homens”, um cavaleiro que, segundo Jorge Luis Borges (1), tinha as virtudes mais apreciadas na Idade Média: lealdade e coragem. Beowulf é um super-herói medieval: com a força de 30 homens, é capaz de nadar sob as águas por mais de um dia. Nu e desarmado, enfrentou e derrotou Grendel, o ogro, arrancando-lhe braço e ombro. Enfrentou e derrotou também a mãe de Grendel, uma bruxa ainda mais forte e poderosa que o filho. No final da saga, Beowulf morre envenenado pelo fogo de um dragão, que ele também venceu. Agonizante, encomenda suas honras fúnebres e pede para ser lembrado por aquela que julga ser a maior de suas glórias: nunca matou um parente.

Parece que o prestígio dos parentes caiu muito do século VII para cá. Todos os jornais, todas as tevês, políticos, juristas, motoristas de táxi, donas de casa, a torcida do Flamengo, Vasco, Botafogo, Fluminense e Madureira, todos homens honrados, parecem concordar que é crime hediondo, irritante e inafiançável um prefeito, juiz ou deputado contratar o sobrinho para cargo de confiança, mas não parecem se importar nem um pouco se o mesmo prefeito, juiz ou deputado contratar, para o mesmo cargo e com o mesmo salário, a amante, o vizinho ou o parceiro de biriba. Por que, não sei.

Eu, ao contrário da imensa maioria das pessoas, não entendo o que há de tão imoral na contratação de parentes para cargos de confiança no serviço público.

Imagino que a leitura da frase anterior possa provocar nos meus 8 leitores, soterrados por containers de matérias jornalísticas contra o nepotismo, a sensação de que eu não estou falando sério, estou querendo discordar só para aparecer, aquilo que Freud chamaria de narcisismo das pequenas diferenças, mecanismo mental que participa, para o bem e para o mal, da formação da nossa auto-imagem: “eu sou alguém que não gosta do Caetano Veloso”, ou “eu sou alguém que usa gravata borboleta”, ou “eu sou alguém que não acha que nepotismo é crime”. Enfim, meus 8 leitores podem achar que eu “estou dando uma”. Não estou dando uma. Estou falando sério.

Não tenho interesse pessoal nenhum neste assunto - não trabalho no serviço público - fora o fato de ser contribuinte e eleitor, como todos. Não acho que contratar parentes seja uma boa idéia, ser o chefe de alguém que pode vir a ser o seu amigo secreto na festa de Natal da família tende a dar problema. Mas idéias ruins não são necessariamente ilegais. Assim como há o narcisismo das pequenas diferenças também há o chauvinismo da semelhança mínima, uma certa identidade nacional buscada pela unanimidade burra, o tal senso comum.

Parece ser senso comum que há funcionários públicos demais no Brasil. Será mesmo? Há médicos e enfermeiras demais nos hospitais públicos? Há policiais demais nas ruas, professores demais nas escolas estaduais, garis demais limpando as praças? Não, acho que não.

O tal senso comum - que, conforme acabamos de ver, está freqüentemente enganado - também acha que há funcionários públicos demais em funções burocráticas, a tal turma do 14º salário e do auxílio-paletó, paletó este pendurado na cadeira enquanto o dono foi ali e já volta. Não sei se isso é verdade, talvez seja, mas lembro que esta turma é quase sempre concursada, efetivada, enraizada, permanente, tão eterna quanto o Morro Dois Irmãos. As leis anti-nepotismo não vão movê-los um milímetro.

O que as leis anti-nepotismo pretendem, dizem, é coibir abusos: o cara se elege prefeito de Cacimbinhas do Oeste e imediatamente contrata os oito filhos, a sogra e mais 17 sobrinhos e primos para trabalhar na prefeitura. O que está errado, na minha humilde e desinteressada opinião, não é o prefeito de Cacimbinhas do Oeste contratar 26 parentes mas sim o fato dele poder contratar 26 pessoas sem concurso público, sejam parentes ou não. O clamor anti-nepotista tem um volume tão acima do razoável que parece ser uma ação diversionista para esconder o verdadeiro problema: há cargos de confiança demais.

Não sei se o pessoal do senso comum já percebeu que as leis anti-nepotismo não vão economizar um centavo de dinheiro público. A nós, contribuintes, tanto faz se o assessor do juiz é seu cunhado ou colega de vôlei de praia. Interessa, isso sim, se o cargo dele precisa existir. E, se precisa, se não pode ser preenchido por um funcionário de carreira, concursado.

É evidente que algumas tarefas do serviço público devem ser exercidas por profissionais especialmente convidados, não acredito que alguém defenda seriamente a idéia de que um prefeito recém eleito possa manter como seu chefe de gabinete quem já estava no cargo com seu antecessor. Também não tem lógica nenhuma exigir que um cargo desses seja preenchido através de concurso público. Mas a pergunta cuja resposta pode economizar algum troco é “quantos cargos são estes?” e não “ele é seu primo?”.

(1) ver BORGES, Jorge Luís. Curso de literatura inglesa. São Paulo, Martins Fontes, 2002.

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Hoje, quatro anos depois, em 25 de junho de 2010, acho graça da sinuca de bico na qual o moralismo udenista meteu o país, ao criar leis anti-nepotistas que não economizaram um centavo de dinheiro público mas criaram aberrações jurídicas que, um dia, terão que ser revistas.

Resumindo, mais uma vez.

Existem - devem existir, isso todos concordam - dois tipos de funcionários públicos: os concursados e os comissionados.

Os concursados são efetivos, prestaram concurso público, são cargos técnicos e seguem trabalhando, não importa que troque o governante, o juiz ou o parlamentar.

Os comissionados são temporários, ocupam o cargo a convite do governante (ou juiz, ou parlamentar), e vão embora com ele.

O que interessa é: quantos e quais funcionários devem ser concursados e quantos e quais devem ser comissionados.

Se o governante (juiz, parlamentar) pode (por lei ou regulamento) contratar 10 assessores comissionados, que diferença faz (para a moral e os bons costumes e também para o erário) se estes comissionados são primos, irmãos ou colegas de vôlei?

Ao meu ver, nenhuma. Faz diferença se eles trabalham (ou são pagos pelo Senado para estudar cinema na Espanha ou fazer entregas no China in Box), se são honestos, se são competentes para suas funções. A boa intenção dos que defendem as leis anti-nepotistas é “coibir excessos”, péssima função para uma lei.

Parece que no Brasil tudo precisa ser proibido ou obrigatório. Que tal usar o bom senso?

A melhor maneira de coibir excessos é a transparência. Quantos assessores comissionados têm um senador, um juiz, um deputado estadual, um prefeito? Quem são? Quanto ganham? Onde trabalham? O que fazem? Como o cidadão pode saber disso? Os sites dos Senado, dos Ministérios, dos Tribunais, não deveriam disponibilizar todos estes dados?

Hoje o Ministro Cesar Peluso, do Supremo Tribunal Federal, está dizendo o que eu escrevi há 11 anos (Na Folha, “Supremo diz que súmula do nepotismo não pode punir “honestos”): “Não se trata de afrouxar a regra, mas interpretá-la corretamente de modo a não prejudicar pessoas que estão fazendo o seu trabalho honestamente, cumprindo carga horária e o exercício de suas funções”.

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A constatação do óbvio, feita hoje pelo Ministro Peluso, terá que enfrentar o cinismo moralista em curso.

Mônica Bérgamo, na Folha de hoje, já antecipa alguns votos do Supremo:

“A decisão de Cezar Peluso, presidente do STF (Supremo Tribunal Federal) de rever a súmula que proíbe o nepotismo sofrerá resistência no tribunal. O vice-presidente Carlos Ayres Britto, por exemplo, encaminhará contra. Ele acredita que não é o momento apropriado para se analisar a questão, já que o próprio Peluso acaba de ser acusado de praticar nepotismo ao empregar um casal em sua equipe. Britto revelou a interlocutores que qualquer modificação na súmula soará como “afrouxamento” e “leniência” da Corte”.

Vamos ver se os Ministros do STF estão preocupados em saber como “soará” (na mídia) o seu trabalho, que é o de defender a Constituição.

O comentário de Lucia Hippolito, na CBN, dá o tom do que há de vir:

(a partir de 01:39):

“Como o ministro Cesar Peluso contratou um casal e isso vazou para a imprensa, ele agora está querendo rever as leis sobre nepotismo exatamente para que não pegue este casal que ele contratou”. (…) “O problema é que o nepotismo no Brasil chegou a tal ponto, a tal exagero que foi preciso fazer uma regra muito rígida sim”. (…) “Sempre foi muito forte o nepotismo, o clientelismo, o favoritismo no Brasil. Então foi preciso criar uma lei muito rígida”. (…) “Ora, se o Ministro Cesar Peluso decide tomar esta atitude, você imagina o que não acontece lá no município mais distante do Brasil. Dirão: ‘Oba! Liberou! Se o Presidente do Supremo diz que pode então vamos começar a contratar a mulher, a cunhada, o genro, a amante, o pipoqueiro e por aí vai”. (…) “Se o Presidente do Supremo quer mexer na lei para atender a uma situação particularíssima que diz respeito apenas a ele e a um funcionário dele, você imagina o que não está pensando o juiz de direito lá de Turucu do Norte”.

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Comentários meus:

  1. “Vazou para a imprensa” não se usa mais, não faz mais sentido. Fora os dados criptografados do HD de Daniel Dantas, não há mais segredos. Tudo é público e quase tudo é fácil de descobrir, quase tudo está no Google.
  2. A acusação da jornalista, de que um Ministro do STF “está querendo rever as leis (…) para que não pegue este casal que ele contratou”, “quer mexer na lei para atender a uma situação particularíssima que diz respeito apenas a ele e a um funcionário dele” é muito grave. Lúcia Hipollito acusa o Ministro Peluso de “prevaricar”, crime praticado por funcionário público contra a administração em geral que consiste em retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal. A pena prevista é de detenção, de 3 meses a 1 ano, e multa. Art. 319 do Código Penal.
  3. Não há lei que proíba a contratação de amantes ou de pipoqueiros. Amante não é parente. Pipoqueiros também não.
  4. Turucu do Norte (assim como Cacimbinhas do Oeste) são cidades hipotéticas, eu acho.

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A excelente idéia de fazer concursos públicos para preencher cargos públicos foi do Imperador Tai-Tsung, que governou a China entre 626 e 649. Tai-Tsung foi o segundo e o mais bem sucedido Imperador do período conhecido com “Plenitude Tang”, quando a China teve um extraordinário desenvolvimento. Quem conta é Larry Gonick: “Para equipar a administração com servidores públicos leais e educados, em vez de intrigantes filhos de senhores de guerra, Tai-Tsung introduziu exames públicos nacionais. Para obter um emprego no governo, era preciso passar por um teste padrão”.

Pra quem acha que o governo Lula foi o melhor da história, lembro que na Dinastia Tang (618-907), a China se tornou um império multicultural, abrigando turcos, coreanos, indianos, persas, árabes e judeus, e prosperando como nunca, em três séculos de paz. Neste período os chineses também fizeram a reforma agrária, inventaram o relógio, a porcelana, a bússola, vários instrumentos de astronomia e os primeiros livros impressos. Isso é que é governo!

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Sobre a Dinastia Tang:

A História do Mundo em Quadrinhos, de Larry Gonick.
http://www.editorajaboticaba.com.br/livro.asp?cod=22

Na Wikipedia:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Dinastia_Tang