Com a alma nos ombros

por Giba Assis Brasil
em 15 de setembro de 2010

Uma canção da resistência italiana, recriada por Armando Trovaioli, atravessa de ponta a ponta “Nós que nos amávamos tanto”, obra-prima de Ettore Scola realizada em 1974. Ela é cantada pela primeira vez quando os três jovens amigos Antonio, Nicola e Gianni festejam, abraçados, o final da segunda guerra mundial. Depois se insinua, sem letra, em vários momentos do filme, com diferentes andamentos, marcando momentos de alegria, tensão, frustrações políticas e amorosas, esperança. Por fim, já nos anos 1970 da “guerra suja”, das brigadas vermelhas e da crise educacional, quando os personagens estão chegando perto dos cinquenta, o mesmo hino ressurge na voz e no violão de dois novos jovens. Uma lembrança aparentemente agradável para Nicola, amarga demais para Gianni. Mas em Antonio, que só então percebemos como o verdadeiro protagonista da história, a canção dos partigianos desperta mais que saudade: serve pra lembrar que a luta continua, sempre, pelo amor de Luciana, pela vaga na escola para o filho, pela solidariedade com todos à sua volta.

“Marchávamos com a alma nos ombros
na escuridão das montanhas,
mas a luta pela nossa liberdade
nos iluminava o caminho.”

“Eu não sabia o teu nome,
nem podia te dizer o meu.
O teu nome de batalha é Rapidin
e eu era Sandokan”.

Opa! Aqui tem alguma coisa errada. Que codinomes são estes? Sandokan faz sentido, é o bom pirata malaio dos livros de aventura de Emilio Salgari, onze títulos lançados entre 1895 e 1913, um herói popular entre os italianos nas primeiras décadas do século vinte. Mas quem é Rapidin pra que um jovem guerrilheiro antifascista quisesse adotar seu nome? Algum bolchevique apressado? E por que o único verbo no presente?

Uma rápida pesquisa no Google desvenda o mistério, ou pelo menos parte dele: o tradutor das legendas do filme se enganou, entendeu errado, caiu num mondegreen: onde se ouve “è Rapidin”, ouça-se “era Pinin”. A frase original completa: “Il tuo nome di battaglia era Pinin ed io ero Sandokan”.

“Eu não sabia o teu nome,
nem podia te dizer o meu.
O teu nome de batalha era Pinin
e eu era Sandokan”.

Pinin, parece, era um carro italiano muito valorizado nos anos 1930, e cuja fabricação foi interrompida durante a guerra. Será? Se for isso, que decepção! “Tu é Pinin, eu sou Sandokan”, equivalendo a “tu fica com o fusquinha, eu com o navio pirata”. Flashback: minha filha, então com 4 anos, entra chorando em casa porque as duas primas mais velhas estavam brincando de “É o Tchan”, mas já haviam ocupado os papéis de Carla Perez e Sheila Carvalho, e portanto só restava pra ela ser o Jacaré. Mas divago.

“Estávamos preparados para morrer,
mas de morte não se falava;
preferíamos falar do futuro.
Se o destino nos afastar,
a memória daqueles dias
nos manterá sempre juntos.”

A partir da década de 1950, e até hoje, a fábrica Pininfarina constrói carrocerias para várias outras montadoras: Ferrari, Maserati, Jaguar, Volvo, etc. Sandokan, nos anos 1960, protagonizou uma série de filmes italianos com atores norte-americanos, inclusive o primeiro Super-homem Steve Reeves; nos 70 foi série de TV, depois desenho animado e recentemente virou notícia, com a prisão do mafioso Francesco Schaivone, que por sua barba negra e cerrada ficou conhecido como “Sandokan”, condenado à prisão perpétua em junho de 2008.

“Lembro que depois amanheceu e então,
de repente, alguma coisa mudou.
O amanhã tinha chegado,
a noite já se fora.
O sol brilhava no céu,
nascido em plena liberdade.”

Stefano Satta Flores, que no filme é Nicola, morreu de leucemia em 1985, com apenas 48 anos. Vittorio Gassman, o Gianni, teve um ataque de coração fatal em 2000, aos 78. Nino Manfredi, que vive Antonio, também não resistiu às consequências de um colapso cardíaco em 2004, já com 83 anos. Stefania Sandrelli, a Luciana, segue linda e ativa aos 64 anos de idade e quase 50 de carreira. O músico Armando Trovaioli tem 93, e ano passado ainda participou de um disco e de um concerto no Estádio Olímpico de Roma.

Ettore Scola em maio próximo fará 80 anos, “a mais bela das idades”, como ele sugeriu no final de “A Família” (1987). Scola não filma desde 2003, mas segue “com a alma nos ombros”. Ele sabe.


Marciavamo con l’anima in spalla
nelle tenebre lassù
ma la lotta per la nostra libertà
in cammino ci illuminerà

Non sapevo qual’era il tuo nome
neanche il mio potevo dir
il tuo nome di battaglia era Pinin
ed io ero Sandokan.

Eravam tutti pronti a morire
ma della morte noi mai parlavam
parlavamo del futuro
se il destino ci allontana
il ricordo di quei giorni
sempre uniti ci terrà

Mi ricordo che poi venne l’alba e poi
qualche cosa di colpo cambiò
il domani era venuto
e la notte era passata
c’era il sole su nel cielo
sorto nella libertà.


COMENTÁRIOS

Enviado por Liziane Kugland em 16 de setembro de 2010.

Oi, Giba Pinin era o apelido do partigiano Giovanni Balbo. Aqui: http://it.wikipedia.org/wiki/Giovanni_Balbo Bj Lizi

Enviado por Giba Assis Brasil em 16 de setembro de 2010.

Grande, Lizi! Esta me passou. E será que Sandokan também era apelido de alguém da resistência?

Enviado por Fabio Dalcastagne em 16 de setembro de 2010.

O inspetor otávio foi pra guerra? rsrsrsrs Abraços.

Enviado por Giba Assis Brasil em 16 de setembro de 2010.

Pouco provável. A não ser que fosse usado como arma de guerra bacteriológica. Mas pergunta pro Gerbase. Abraço.

Enviado por Paulo em 20 de fevereiro de 2014.

Armando Trovajoli, o eterno autor de El negro Zumbon, foi-se ano passado: http://en.wikipedia.org/wiki/Armando_Trovajoli

Enviado por Giba Assis Brasil em 26 de fevereiro de 2014.

Obrigado pela informação, Paulo.