O estado deve investir em cultura? (Carta aberta a Tonico Pereira)

por Jorge Furtado
em 23 de março de 2011

Motivado pelo texto do Tonico Pereira, volto ao assunto do investimento do estado em cultura.

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TERÇA-FEIRA, 22 DE MARÇO DE 2011
SALVE JORGE!

Sou um ator de aluguel. Talvez muitos não saibam disso, mas não importa, eu sei, e isso me basta para reger as minhas relações com a profissão. Isso também me permite ser ignorante em se tratando de leis de incentivo; até agora nunca usei e gostaria de poder dizer não usarei, mas o futuro não me é dado a conhecer antes que ele aconteça. Mas vamos ao que interessa, como já disse sou um ator de ofício, sem essa de artista, estado que podemos alcançar, se alcançarmos, em um segundo, numa pausa, num gesto, depois de três meses de ensaios, de um ano de apresentações, onde só o ofício vigora exercendo a pretensão de estarmos vivos, para nos tornarmos Deus quando este segundo acontece.

Gosto de ter opinião, gosto de emitir minha opinião, mas não consigo caricaturar ninguém com adjetivos advindos de uma visão mesquinha, só para parecer, a mim mesmo, mais forte e inteligente, apesar de estar escudado numa casamata chamada internet/computador, que protege e esconde. Pela prática do meu ofício, entendo um pouco do ser humano.

Não conheço a Maria Bethânia pessoalmente, mas conheço a sua obra, e gosto. Não conheço os custos de uma produção, apenas o que me cabe como salário, que não é muito. Não tenho partido político, apenas votava com prazer maior quando Brizola vivia. Mas pelo pouco que conheço do ser humano e por alguns contatos que tive com Jorge Furtado, aceitando inclusive que ele talvez possa exagerar na defesa de suas idéias, posso garantir que ele não merece, nem por sua obra, que já atingiu vários momentos de arte, nem por sua pessoa, inteligente, culta, talentosa, trabalhadora (e amante do vinho), os adjetivos peçonhentos a ele dirigidos neste embate que deveria ser de idéias, para que todos pudessem melhorar como diretores, atores, autores, produtores e platéia.

Poderia depor contra este meu posicionamento o fato de eu já ter sido contratado algumas vezes pela Casa de Cinema de Porto Alegre e que eu estaria pavimentando outras contratações, mas quem me contrata convive com as minhas opiniões e direitos, por isso, sempre que trabalho longe do meu Rio levo no bolso o dinheiro vivo que poderá me trazer pra casa em caso de uma incompatibilidade maior. Jorge, portanto, sabe quem ele está contratando e os riscos que corre.

Salve Jorge!
Tonico Pereira.
http://tonicopereira.blogspot.com/

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Valeu Tonico! Meu texto provocou uma enxurrada de comentários, acho que a favor e contra em igual quantidade (comentários que acabo recebendo, apesar de não ter twitter, facebook ou coisas do gênero com tu, um cidadão altamente informatizado). Sem dúvida exagerei no tom, escrevi com o fígado, ao ler os comentários racistas sobre Bethânia e os artistas baianos. Já pedi desculpas aos que se sentiram ofendidos, peço outra vez.

Alguns xingamentos que ouvi são divertidos, há quem diga que sempre vivi da lei Rouanet (cinema usa outra lei, a do audiovisual), que nunca trabalhei na “iniciativa privada” (devem pensar que a Tv Globo, onde trabalho há 22 anos, é uma estatal), que eu sou amigo da Bethânia (que não conheço), e outras sandices. Como diz o poeta Manoel de Barros, “Coisa que não acaba no mundo é gente besta e pau seco”.

Também acho que o debate deve ser de idéias, pretendo voltar a ele em breve, mas ando um pouco de saco cheio dessa conversa de política cultural, que corre em círculos como cachorro perseguindo o rabo, desde que me conheço por gente. Já fiz muito debate sobre política cultural, os argumentos são sempre os mesmos, quem está chegando agora faz o mesmo discurso de 20 anos atrás.

Noblat, no Globo de ontem (http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2011/03/21/o-pai-370017.asp), praticamente defendeu o fim da isenções fiscais, sugerindo que seria melhor o governo arrecadar integralmente os impostos e determinar (ele, o governo) o destino das verbas para a cultura. Talvez seja uma boa idéia (governos são eleitos democraticamente, diretores de marketing de grandes empresas não) mas não deixa de ser curioso ver o jornal O Globo defendendo tamanho “Intervencionismo” do estado, o tal “dirigismo” tantas vezes criticado. (As críticas ao filho do Ricardo Noblat, que correm pela internet, são pura cretinice, golpes sujos de quem não vive sem eles. Gente baixa espalhando maledicências pela rede é o que não falta.)

De minha parte, continuarei dando meus palpites publicamente, como tu. Sou contra os 100% de isenção em leis de incentivo, também sou contra aquele monte de cartões de empresas na abertura dos filmes (100% de isenção e ainda levam publicidade?), sou a favor do apoio do estado para a produção de cultura (de alguma forma, resta ver qual), etc. Há quem prefira conversas de corredor, para não “se queimar” com ninguém, assumindo posições muito corajosas, desde que ninguém saiba delas.

A Folha de S. Paulo, em editorial, defendeu a manutenção das leis de incentivo, mas acha que não poderia ser usada “por artistas conhecidos”, veja só. Além da absoluta ingenuidade da proposta (gostaria de ver alguém tentar definir o que é um “artista conhecido”) estaria criada no Brasil a “desmeritocracia”, ou seja: quando mais desconhecido o artista (por ser iniciante, talvez, mas também por ser medíocre ou por insistentes fracassos), mais chance teria de receber apoio. “Viva a mediocridade! Abaixo o talento!”

Os absurdos que surgem no debate revelam que a questão não é nada simples. O país precisa produzir cultura? Sim ou não? Se sim, o estado deve apoiar a produção de cultura? Sim ou não? Se sim, os incentivos fiscais (como os que garantem, por exemplo, a existência dos jornais e igrejas, que gozam de grandes isenções fiscais) são um bom instrumento para isso? Se não, quais são? Os fundos de cultura, administrados diretamente pelos governos? Ou é melhor deixar que o mercado se vire, sem regulação? (Sobre deixar o mercado regular a si mesmo, ver “Serviço Interno”, documentário vencedor do Oscar, sobre a última roubalheira dos bancos, que quebrou o mundo em 2008).

Tenho minhas opiniões e a mania de torná-las públicas, mas aceito jogar nas regras que forem definidas pela maioria e pelos governos democraticamente eleitos. Seria bom (para o país) que essas regras não mudassem a cada dois anos, leva mais tempo que isso para se produzir algo que preste.

Que o congresso e o governo, eleitos para propor, fazer e modificar as leis, resolvam.

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Parece que todo mundo concorda que as leis de incentivo, especialmente a lei Rouanet, precisam mudar. Faz tempo que o governo tenta, com consultas populares pela internet e vários debates públicos.

Quem quiser informações corretas sobre as leis de incentivo ou colaborar para sua aprimoração e mudanças, pode fazê-lo aqui:

http://blogs.cultura.gov.br/blogdarouanet/

Aqui, algumas das dúvidas mais frequentes sobre a proposta do governo para mudar a lei:

-- As empresas não vão poder mais escolher que projeto vão apoiar?

Sim, as empresas vão continuar escolhendo qual projeto querem apoiar por meio do mecanismo da renúncia fiscal. O que não poderão escolher, como já não escolhem hoje, é a faixa de renúncia em que o projeto será enquadrado. Hoje, são apenas duas - 30% e 100%. Com a Nova Rouanet, serão acrescentadas mais quatro - 60%, 70%, 80% e 90%.

-- O projeto do governo extingue a renúncia fiscal?

Não, o anteprojeto de lei que está em consulta pública mantém o mecanismo de renúncia fiscal. A única modificação no mecanismo de renúncia é que ela passa a ter mais faixas - para que haja uma maior contrapartida privada. Nos 17 anos de lei, de cada R$ 10 investidos, apenas R$ 1 é contrapartida privada.

-- Quem vai definir os critérios para que um projeto receba 30% a 100% de apoio via renúncia?

Na antiga lei, os critérios eram apenas as linguagens. Música clássica tem 100%. Música popular tem 30%. Na Nova Rouanet, a Comissão Nacional de Incentivo Cultural (CNIC), que já existe, vai passar a definir os critérios anualmente. Os projetos serão analisados por pareceristas externos ao ministério, com base nos critérios definidos pela CNIC. A CNIC será formada por governo, representantes do setor artístico e dos empresários. Além da CNIC que já existe, serão criadas CNICs setoriais, para cada Fundo Setorial.

-- Como serão escolhidos os membros dessas comissões?

Da mesma forma como são escolhidos hoje. As entidades de cada setor se cadastram e votam, entre elas, quem são os representantes.

-- Por que o governo não pode apenas fortalecer o Fundo Nacional de Cultura, sem mexer na Lei Rouanet?

Porque, ao contrário do que as pessoas pensam em geral, o Fundo Nacional de Cultura (FNC) faz parte da Lei Rouanet. É a Lei 8.313/91 (conhecida como Rouanet) que determina as regras da renúncia, do FNC e do Ficart. Por isso, dar ao FNC instrumentos mais ágeis de fomento, é necessário mudar a Rouanet.

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Atualizado em 05.04.11:

Excelente texto de Fernanda Torres, na Folha de S. Paulo.

FERNANDA TORRES - Os demônios

Não se deve crucificar artistas nem empresários; ninguém deseja a pecha de onerar o povo para existir

NO CLÁSSICO romance de Fiodor Dostoiévski “Os Demônios”, revolucionários radicais atuam clandestinamente, incitando a população a vaiar o poeta Stiepan Trofímovitch durante o sarau de uma pequena cidade do interior da Rússia. O objetivo do grupo é exterminar uma arte considerada burguesa.

Trofímovitch responde com veemência à agressão:

“Eu proclamo (…), proclamo que Shakespeare e Rafael estão acima da libertação dos camponeses, acima da nacionalidade, acima do socialismo, acima da nova geração, acima da química, acima de quase toda a humanidade, porque são o fruto, o verdadeiro fruto de toda a humanidade e, talvez, o fruto supremo, o único que pode existir! É a forma da beleza já atingida, e sem atingi-la eu talvez já não concordasse em viver…”

O caso de amor e ódio da arte com a sociedade provoca reações passionais. No Brasil, já fui testemunha de pelo menos um momento de ojeriza explícita que culminou com o fechamento sumário da Embrafilme.

Os mesmos ataques de agora, calcados na dependência do dinheiro público e na formação de panelas culturais, culminaram com a decisão do ex-presidente Fernando Collor de decretar o fim da estatal sem temer represálias.

O cinema demorou mais de dez anos para se reestruturar.

Antes da criação da Lei Sarney, em 1986, os subsídios culturais aconteciam por meio de patrocínio, dinheiro dito bom, de propaganda das empresas. Mas chegou-se à conclusão de que esse sistema era elitista e favorecia os artistas mais conhecidos.

O modelo foi enterrado e as leis de incentivo surgiram para democratizar a relação do empresariado com a cultura.

Durante os oito anos de FHC, a política do Planalto ampliou os subsídios e deixou que o mercado se autorregulasse. Quando Lula assumiu, o MinC decidiu exercer um controle mais incisivo.

As dúvidas em relação à necessidade dos artistas consagrados utilizarem tais benefícios vem ganhando força desde então.

O ex-ministro da Cultura Juca Ferreira já chamava a atenção para os dividendos que a associação de um artista de renome com marcas e produtos trazia para as empresas e defendia, em tais casos, a entrada de dinheiro bom na negociação.

Carmen Mello, produtora associada a mim e a minha mãe, tenta desde 2008 convencer as firmas envolvidas a empregarem, como antigamente, sua verba de propaganda nos espetáculos que produz. Mas, sem as leis de isenção, não há interesse.

Não se deve crucificar artistas e empresários. Ninguém deseja para si a pecha de onerar o povo para poder existir. Há mais de 20 anos, todo o mercado foi direcionado para agir segundo as normas vigentes. A volta do patrocínio precisaria ser motivada.

Maria Bethânia estreou seu espetáculo de poesia sem apoio de nenhum benefício fiscal. A bilheteria do teatro do Fashion Mall, no Rio de Janeiro, cobriu os custos e o público fiel foi suficiente para lotar a curta temporada sem maiores gastos com publicidade.

Bethânia produziu uma obra de delicadeza tão notável que incitou Hermano Vianna a levá-la para a internet, de graça e por toda a vida. Todas as empresas contatadas desejaram se aliar ao projeto, mas insistiram nas leis de incentivo.

Bethânia cobrou pela elaboração, feitura e doação “ad eternum” de seus direitos de imagem para veiculação gratuita, R$ 1.643 por vídeo. O Minc, que aprovou outros sites por valores até superiores, entendeu que era justo.

A manchete na primeira página afirmando que Bethânia receberia R$ 1,3 milhão para fazer um blog, apesar de verdadeira, sugere falcatrua e má-fé.

O site “O Brasil Precisa de Poesia” se transformou no bode expiatório da encruzilhada da política cultural brasileira. Aberrações graves poderiam ter servido de exemplo, mas queimar uma feiticeira da dimensão de Bethânia tem um valor insubstituível do ponto de vista do escândalo.

O Brasil subsidia infindáveis setores de sua produção, o papel que imprime este jornal inclusive. Do total desse investimento, um por cento é destinado à cultura.

A economia criativa, propulsora de grandes negócios no mundo civilizado, está engessada no nosso país. A arte foi estatizada e se transformou, à vista do público, em um pária dependente do tesouro.

Talentos como o de Bethânia teriam um valor inestimável e seriam remunerados à altura se encontrássemos uma maneira de fazer a poesia e a educação participarem da economia da sétima potência mundial.

Algum carro, xampu ou refrigerante se interessaria em associar sua imagem a Guimarães Rosa e a Fernando Pessoa?