Millôr Fernandes (1924 - 2012)

por Jorge Furtado
em 28 de março de 2012

Morreu ontem, 27 de março de 2012, um dos maiores gênios da história do Brasil, o jornalista, escritor, dramaturgo, poeta, humorista, tradutor e artista plástico Millôr Fernandes.

Millôr fazia muitas coisas, todas com brilhantismo.

Como jornalista, começou a assombrar o país com sua inteligência em 1938, nas páginas de O Cruzeiro, um sucesso editorial sem precedentes e, desde então, nunca igualado. Foi um dos criadores do Pasquim, que enfrentou a ditadura militar com humor e renovou a língua brasileira. Trabalhou em muitos jornais e revistas, sempre com grande talento.

Como escritor, é autor de dezenas de livros, todos muito bons, muitos são obras primas. Li todos eles, alguns várias vezes, eles ocupam uma estante inteira de minha biblioteca.

Como dramaturgo, é autor de algumas das melhores peças brasileiras, muitas delas foram extraordinários sucessos. Algumas, escritas na forma de colagem de textos, como “Liberdade, liberdade”, “A história é uma istória” e “o Homem do princípio ao fim”, são verdadeiros cursos de literatura e teatro. De tanto ler e reler suas peças, acabei decorando longos trechos.

Como poeta, foi um dos maiores da língua portuguesa, misturando uma profunda erudição com a mais sofisticada simplicidade.

Do Millôr, do livro “Poemas”, pág. 71 (editora L&PM,) “Poeminha sem objetivo”:

Me elogia, vai!
Escreve um troço, aí!
Não dói nada; faz de conta
Que eu morri.

Como humorista, foi o maior de todos, um demolidor de mitos, um crítico feroz da prepotência, da pose sem conteúdo, dos hipócritas, dos moralistas, dos cínicos.

Como tradutor, foi o melhor que eu conheço. Suas traduções de Hamlet e Rei Lear, de William Shakespeare, são, de longe, as melhores em língua portuguesa. Um dos meus primeiros trabalhos foi a revisão de sua espetacular tradução de “O Jardim das Cerejeiras”, de Tchecov.

Como artista plástico, era um gênio, um dos maiores do mundo. Basta dizer que num concurso internacional de desenhos dividiu o primeiro lugar com Saul Steinberg.

Tive o prazer e a honra de encontrá-lo algumas vezes. Adaptei para a televisão sua peça “Vidigal: memórias de um sargento de milícias”, um especial, dirigido por Mauro Mendonça, que venceu o New York Film Festival. No longínquo anos de 1984, fiz aquela que foi talvez a sua primeira entrevista para a televisão, no programa Quizumba, na TV Educativa do Rio Grande do Sul.

O Brasil perde um de seus maiores artistas. Sou profundamente grato ao talento incomparável de Millôr Fernandes. Nenhum escritor, filósofo ou pensador me ensinou tanto sobre o mundo. Sua obra é eterna e sua ausência, irreparável.

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Texto de Millôr Fernandes em “Todo homem é minha caça”. (Editora Nórdica)

Zwingliano, Zuzara: últimas palavras.

“Todo homem é minha caça”, nome inspirado num poema do inglês Pope, mostra a minha profunda descrença no ser humano - que eu sou. E olhem que jamais procurei um homem perfeito. Nunca tive admiração pelo”If”, de Kipling - poema fascistóide em que o propagandista do Império Britânico esculpe um homem de pedra, ou mármore, com “qualidades” que fariam desse ser, se existente, um monstro de “perfeição”. E não me espanta que Alekos Panagulis, o Homem de Oriana Fallaci, o super-herói dessa mulher em geral tão exigente e dura, fosse um admirador exatamente do “If”. Tinha esse poema enquadrado, como qualquer executivo (vi, através dos anos, dezenas de cópias desse poema emolduradas em escritórios de luxo) mediocremente argentário, safadamente mercantil. Heróis nunca me iludiram.

Quando, neste livro, caço o homem, como Nemrod na Bíblia, e procuro alvejar individualmente o mesquinho, o covarde, o safado, o hipócrita, o corrupto, o incompetente, e, coletivamente, a médico, o político, o economista, com suas pretensões, falhas, fraquezas, egoísmo e sandices (que são as minhas, eu nunca esqueço; só que eu nunca esqueço, a maior parte das pessoas nem se lembra) não estou preocupado com essas falhas e defeitos insanáveis, mas com o inevitável fim a que isso leva - a desumanidade do homem para com o homem.

Mas ai!, não resta alternativa - nada me interessa mais do que o ser humano. A partir de um certo momento de minha vida a maior diversão passou a ser para mim conversar, longa, lenta, interessadamente com alguém. Mas uma pessoa só. Quantas vezes, na calma do meu estúdio, atravesso a tarde e penetro pela noite, falando a alguém que foi me procurar. Interrompo meu trabalho mais premente - a princípio com raiva pela intromissão - e de repente me vejo profundamente ligado a uma pessoa que nunca vi, num psicanalismo bifronte e gratuito (o único válido; o unilateral e com guichê na porta é uma contrafação), sem pretensões terapêuticas, arte pela arte no seu melhor momento. E, vejam bem, essas conversas são, indiferentemente, - honni soit qui mal y pense - com homem ou mulher, jovens ou velhos (nunca muito velhos). Daí vem muito o meu conhecimento do outro lado, que não está neste livro, a certeza de que ninguém quer ser mesmo torturador, todo mundo gostaria de ser generoso, não há quem não tenha uma justificativa absolutamente correta pro seu erro, seu mau-caratismo, seu péssimo humor, sua violência. Mas as justificativas não eliminam o fato de que são todos, somos todos, (acabada a secção parênteses de compreensão, um momento ilhado na luta pela sobrevivência), fratricidas.

Fratricidas. Só queremos a nós mesmos; o irmão que se rompa. Mesmo o mais humilde, o sacerdote mais santo, a sua vanglória o arrasta a, pelo menos, querer ser mais humilde do que todos; não apenas humilde, mas o mais humilde do ano. Humildes, sim, mas que ninguém duvide disso! Mesmo o herói que tirou alguém do incêndio - e quantas vezes me digo: “bem, aí está um entre as chamas, aí está a salvação.” - quando eu vou ver, conhecer melhor, é, na vida diária, o usurário do banco que está ao seu lado, o atravessador da distribuição do leite, o mercador de remédios falsificados.

É só ler uma enciclopédia com olhos abertos para ver que não houve exceção - todos os “libertadores” foram posteriores tiranos, quando não “Salvadores Perpétuos” da pátria a ferro e fogo e muito pau-de-arara; as sociedades filantrópicas se transformaram sempre, quando já não eram assim na origem, em fontes de suborno; as ideologias, feitas em nome do homem, logo serviram à glorificação e/ou gozo material de uns (muito) poucos e à consequente exploração do próprio.

Com 20 milhões de anos de vida sobre a terra, o homem atingiu a civilização apenas nos últimos 10 mil. Uma civilização, uma cultura, uma capacidade de domínio e apropriação das forças e mistérios da natureza de que nenhum animal jamais se aproximou. Com isso - 20 milhões de anos de vida, mas apenas 10 mil de civilização - é o único animal que tornou objetivamente possível uma coisa antes inacreditável - sua própria destruição como espécie. Dando ainda, de lambuja, a distruição de todas as outras. Pois nada indica que o homem consiga escapar de sua própria fúria e estupidez nos próximos 10, 100 ou, no máximo, mil anos.

O leitor mais tíbio poderá ficar assustado com essa visão do mundo e do principal ser que o habita. Mas essa é, paradoxalmente, a única visão saudável, capaz de permitir uma saída.

É a visão humorística, no seu mais profundo sentido. Aquela que nos permite sempre, honestamente, variar sobre a imagem cansada e dizer: “O homem está nu!”

É a única que vê o herói César depilando seu corpo para - cito Suetônio - continuar a ser “O homem de todas as mulheres e a mulher de todos os homens”, e não como um herói “shakesperiano”.

Que vê Napoleão (e tanto generais mais medíocres do que ele) sabendo se proteger muito bem nos campos de batalha - dizimando centenas ou milhares dos seus homens para isso - porque, naturalmente, isso importava muito mais para a glória da França do que qualquer preocupação com (outras) vidas humanas.

Que vê todos os grandes experts em pintura da Europa depondo num tribunal holandês contra o pintor falsário Van Meegerem - durante anos, impuseram aos europeus as falsificações dele como peças autênticas - até que ele desmascarasse todos, falsificando um quadro diante de seus próprios juízes.

Que sabe que os grandes negócios escusos (há outros?) internacionais são feitos em camas milionárias (não necessessariamente heterossexuais), resolvidos em iates de luxo, decididos em banquetes filantrópicos, planejados em todos os lugares dourados do mundo. É aí que, impunemente, se resolve - sem pensar nisso, isso é um mero fator residual - a morte de milhões de miseráveis que jamais saberão que sua fome e sua degradação foram negociadas a milhares de quilômetros de distância, num Mediterranée ensolarado.

Só a descrença total pode trazer alguma solução. Só o ceticismo integral pode começar a produzir um mínimo de verdade, criar um sentimento de maior aproximação com o outro ser humano assim mesmo como ele é. Quer dizer, a partir do conhecimento de sua crapulice, de sua mentira, de sua quase-absoluta incapacidade de corresponder. Só a aceitação desse ser centralizado definitivamente em seu próprio umbigo - religiões e ideologias são uma tentativa comercial de apresentá-lo de maneiras diversa, mas só têm feito criar monstros sagrados, cada vez maiores, à medida que as populações aumentam e, com elas, os recursos da tecnologia da comunicação - pode nos conduzir a um melhor convívio.

Por mim, acho que já aprendi a conhecer o ser humano que sou eu mesmo, meu irmão homem. Já sei até seu nome - Caim. E, apesar de tudo, gosto mais de estar com ele do que com um cachorro, um gato ou até mesmo um colibri. Não adianta toda minha racionalização, não adianta eu olhar no olho de todo e qualquer interlocutor e saber que cada palavra dele - um imenso código sempre mais complicado - não corresponde a nada do que ele é. O sentido de humor, que me faz vê-lo sempre falho - porque a mim não me vejo de outro modo - me mostra toda a comédia das relações humanas com uma coisa extraordinariamente engraçada, mesmo quando dramática, mesmo quando odiosa, mesmo quando mesquinha.

Pois fora do ser humano não há salvação. Fora do ser humano a vida não tem enredo.’

Não resisto a um ser humano.

Millôr Fernandes (1924 - 2012)

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Obras
 
Prosa
Eva sem costela – Um livro em defesa do homem (sob o pseudônimo de Adão Júnior) - 1946 - Editora O Cruzeiro.
Tempo e contratempo (sob o pseudônimo de Emmanuel Vão Gogô) - 1949 - Editora O Cruzeiro.
Lições de um ignorante - 1963 - J. Álvaro Editor
Fábulas Fabulosas - 1964 - J. Álvaro Editor. Edição revista e ilustrada – 1973 - Nórdica
Esta é a verdadeira história do Paraíso - 1972 - Livraria Francisco Alves
Trinta anos de mim mesmo - 1972 - Nórdica
Livro vermelho dos pensamentos de Millôr - 1973 – Nórdica.
Edição revista e ampliada: Senac – 2000.
Compozissõis imfãtis - 1975 - Nórdica
Livro branco do humor - 1975 – Nórdica
Devora-me ou te decifro – 1976 – L&PM
Millôr no Pasquim - 1977 – Nórdica
Reflexões sem dor - 1977 - Edibolso.
Novas fábulas fabulosas - 1978 – Nórdica
Que país é este? - 1978 – Nórdica
Millôr Fernandes – Literatura comentada. Organização de Maria Célia Paulillo – 1980 Abril Educação
Todo homem é minha caça - 1981 - Nórdica
Diário da Nova República - 1985 – L&PM
Eros uma vez – 1987 – Nórdica – Ilustrações de Nani Diário da Nova República, v. 2 - 1988 – L&PM
Diário da Nova República, v. 3 – 1988 – L&PM
The cow went to the swamp ou A vaca foi pro brejo – 1988 - Record
Humor nos tempos do Collor (com L. F. Veríssimo e Jô Soares) – 1992 – L&PM
Millôr definitivo - A bíblia do caos - 1994 – L&PM
Amostra bem-humorada – 1997 – Ediouro – Seleção de textos de Maura Sardinha Tempo e contratempo (2ª edição) –
Millôr revisita Vão Gogô -1998 - Beca.
Crítica da razão impura ou O primado da ignorância – Sobre Brejal dos Guajas, de José Sarney, e Dependência e Desenvolvimento na América Latina, de Fernando Henrique Cardoso – 2002 – L&PM
100 Fábulas Fabulosas – 2003 – Record
Apresentações – 2004 – Record.
Novas Fábulas E Contos Fabulosos (ilustrações de Angelisa) -2007 - Desidratada.
 
Poesia
Papaverum Millôr – 1967 – Prelo. Edição revista e ilustrada: 1974 – Nórdica
Hai-kais – 1968 – Senzala
Poemas – 1984 – L&PM
 
Artes visuais
Desenhos – 1981 – Raízes Artes Gráficas. Prefácio de Pietro Maria Bardi e apresentação de Antônio Houaiss.
 
Teatro (em livro)
Teatro de Millôr Fernandes (inclui Uma mulher em três atos 1953, Do tamanho de um defunto 1955, Bonito como um deus
1955 e A gaivota 1959) – 1957 – Civilização Brasileira
Um elefante no caos ou Jornal do Brasil ou, sobretudo, Por que me ufano do meu país – 1962 – Editora do Autor
Pigmaleoa – 1965 – Brasiliense
Computa, computador, computa – 1972 – Nórdica
É… – 1977 – L&PM
A história é uma istória – 1978 – L&PM
O homem do princípio ao fim – 1982 – L&PM
Os órfãos de Jânio – 1979 – L&PM
Duas tábuas e uma paixão – 1982 – L&PM 
 
Teatro (não editado em livro)
Diálogo da mais perfeita compreensão conjugal - 1955
Pif, tac, zig, pong – 1962
A viúva imortal – 1967
A eterna luta entre o homem e a mulher – 1982
Kaos – 1995 (leitura pública em 2001 – nunca encenada)
Espetáculos musicais Pif-Paf – Edição extra! – 1952 (com músculos de Ary Bizarro)
Esse mundo é meu – 1965 (em parceria com Sérgio Ricardo)
Liberdade, liberdade – 1965 (em parceria com Flávio Rangel)
Memórias de um sargento de milícias - 1966 (com músicas de Marco Antonio e Nelson Lins e Barros) Momento 68 – 1968
Mulher, esse super-homem – 1969
Bons tempos, hein?! – 1979 (publicada pela L&PM - 1979 - Pouso Alegre)
Vidigal: Memórias de um sargento de milícias – 1982 (com músculos de Carlos Lyraseso)
De repente – 1984
O MP4 e o Dr. Çobral vão em busca do mal – 1984
China! Outros 5000 – Uma Pope Ópera (com músculos de Toquinho e Paulo César Pinto)

Fonte:
http://pt.wikipedia.org/wiki/MillÃ'r_Fernandes