A falta de ética do editorial do Estadão

por Jorge Furtado
em 18 de maio de 2013

“Quando vocês não acreditarem em mais ninguém, no Lula, no Haddad, na Dilma, em ninguém, nem no Paulo Maluf… ainda assim, pelo amor de Deus, não desistam da política”, afirmou o ex-presidente à plateia presente no Centro Cultural São Paulo, na capital paulista. “O político ideal que vocês desejam, aquele cara sabido, aquele cara probo, irretocável do ponto de vista do comportamento ético e moral, aquele político que a imprensa vende que existe, mas que não existe, quem sabe esteja dentro de vocês”.

Luis Inácio (Lula) da Silva, São Paulo, 13 de maio de 2013.

Editorial do jornal O Estado de São Paulo, 18 de maio de 2013.

“No lançamento de um livro hagiográfico dos 10 anos de governo petista, Lula garantiu que não existe político “irretocável do ponto de vista do comportamento moral e ético”. “Não existe”, reiterou. Vale como confissão. Lula está errado. O que ele afirma serve mesmo é para comprovar os seus próprios defeitos.”

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Meu comentário:

Lula está certo, a fala é muito boa, um convite a valorização da política, uma sábia convocação cívica, que inclui uma autocrítica realista e bem-humorada e um alerta contra os falsos moralistas, os mesmos que apoiaram ditaduras e acobertaram ou se omitiram sobre os conhecidos malfeitos de seus amigos e sócios no poder.

(Alguém aí já esqueceu de Demóstenes Torres, o despachante de bicheiro que a imprensa vendia como um dos mosqueteiros da ética no Congresso? E o grampo sem áudio usado para demitir Lacerda e salvar a turma do Dantas, já encontraram a fita? E a ficha da Dilma, cadê? E a faxineira que roubou a foto do dinheiro dos aloprados, por onde anda?)

A falta de ética e a precariedade dos argumentos do editorialista do Estadão é tamanha que esmiuçá-la inteiramente demanda tempo e disposição que não tenho. A falta de ética do Estadão, que torce a ótima frase de Lula e a transforma num clichê mastigável aos leitores do jornal, é o padrão da antiga imprensa brasileira desde que a elite que representa foi apartada do poder em Brasília, em 2002.

A partir da falcatrua inicial que justifica manchetes, o editorialista - e é compreensível que o autor prefira manter-se anônimo - enfileira as palavras de ordem do partido da imprensa (aquele quase sempre a serviço da direita rentista, o pessoal que gosta, por que vive, de juros) e termina seu arrazoado com o que imaginou ser uma grande sacada:

“Essa obsessão no ataque à imprensa (…) só não explica como, tendo a conspirar contra si todo o aparato de comunicação do País, o lulopetismo logrou vencer três eleições presidenciais consecutivas.”

O que o texto do Estadão tenta dizer é que se fosse verdade que Lula e o PT tem mesmo “a conspirar contra si todo o aparato de comunicação do País” (coisa que só ele, o próprio editorialista, afirma), seria impossível que tivessem vencido “três eleições presidenciais consecutivas”.

A barbeiragem do raciocínio - obsessões pessoais ou partidárias só explicariam resultados eleitorais a quem acredita que o eleitor é idiota e a democracia, portanto, inviável - explicita a visão generosa que o editorialista tem de si mesmo e a crença no grande poder dos seus patrões, mas a dúvida latente é esclarecida pelo próprio texto, pela outra boa fala de Lula (que o editorialista imagina contestar simplesmente ao classificar de “pérola” e “antológica”) :

Lula: “Acho que determinados setores da comunicação estão exilados dentro do Brasil. Eles não estão compreendendo o que está acontecendo”.

A frase não tem nada de pérola ou antológica, é uma constatação pura e simples do óbvio, o editorialista apenas vestiu o capuz .

O PT “logrou vencer três eleições presidenciais consecutivas” e, tudo indica, deverá vencer a quarta, entre outros motivos (distribuição de renda, empregos, inclusão social, etc.) simplesmente porque a eleição, base da democracia, é uma escolha e a oposição não tem nenhuma proposta para apresentar ao país, e por isso não o fez, nestes 10 anos em que esteve (pela primeira vez) afastada do poder central.

Sabendo de tudo isso - da falta de ética que distorce declarações, dos interesses escusos e da absoluta falta de ideias da oposição para o futuro do país - a imensa maioria da população brasileira, coberta de razão, não dá a mínima importância ao que pensam ou escrevem os editorialistas anônimos.

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O editorial do Estadão, na íntegra:

LULA E A FALTA DE ÉTICA (EDITORIAL)
O Estado de S.Paulo

Sob o comando de Lula, o PT antecipou o início da campanha presidencial, cuja eleição se realiza daqui a 17 meses, de modo que tudo o que as lideranças do partido e do governo fazem e dizem deve ser considerado de uma perspectiva predominantemente eleitoral.

E desse ponto de vista ganham importância as mais recentes declarações do chefe do PT que, do alto de seu irreprimível sentimento de onipotência, anda sendo acometido por surpreendentes surtos de franqueza.

No lançamento de um livro hagiográfico dos 10 anos de governo petista, Lula garantiu que não existe político “irretocável do ponto de vista do comportamento moral e ético”. “Não existe”, reiterou. Vale como confissão.

Lula está errado. O que ele afirma serve mesmo é para comprovar os seus próprios defeitos.

Seus oito anos na chefia do governo foram de uma dedicação exemplar à tarefa de mediocrizar o exercício da política, transformando-a, como nunca antes na história deste país, em nome de um equivocado conceito de governabilidade, num balcão de negócios cuja expressão máxima foi o episódio do mensalão.

É claro que Lula e o PT não inventaram o toma lá dá cá, a corrupção ativa e passiva, o peculato, a formação de quadrilha na vida pública. Apenas banalizaram a prática desses “malfeitos”, sob o pretexto de criar condições para o desenvolvimento de um programa “popular” de combate às injustiças e à desigualdade social.

Durante oito anos, Lula não conseguiu enxergar criminosos em seu governo. Via, no máximo, “aloprados”, cujas cabeças nunca deixou de afagar. O nível de sua tolerância com os “malfeitos” refletiu-se no trabalho que Dilma Rousseff teve, no primeiro ano de seu mandato, para fazer uma “faxina” nos altos escalões do governo.

O que Lula pretende com suas destrambelhadas declarações sobre moral e ética na política é rebaixar a seu nível as relativamente pouco numerosas, mas sem dúvida alguma existentes, figuras combativas de políticos brasileiros que se esforçam - nos partidos, nos três níveis de governo, no Parlamento - para manter padrões de retidão e honestidade na política e na administração pública.

O verdadeiro espírito público não admite mistificação, manipulação, malversação. Ser tolerante com práticas imorais e antiéticas na vida pública pode até estigmatizar como réprobos aqueles que se recusam a se tornar autores ou cúmplices de atos que a consciência cívica da sociedade - e as leis - condenam.

Mas não há índice de popularidade, por mais alto que seja, capaz de absolver indefinidamente os espertalhões bons de bico que exploram a miséria humana em benefício próprio.

Aquela tolerância, afinal, caracteriza uma ofensa inominável não só aos políticos de genuíno espírito público que o País ainda pode se orgulhar de possuir, como à imensa maioria dos brasileiros que na sua vida diária mantêm inatacável padrão de honradez e dignidade.

Não é à toa que as manifestações públicas de Luiz Inácio Lula da Silva, além das manifestações de crescente megalomania, reservam sempre um bom espaço para o ataque aos “inimigos”.

A imagem de Lula, o benfeitor da Pátria, necessita sobressair-se no permanente confronto com antagonistas. Na política externa, são os Estados Unidos. Aqui dentro, multiplicam-se, sempre sob a qualificação depreciativa de “direita”. Mas o alvo predileto é a mídia “monopolista” e “golpista” que se recusa a endossar tudo o que emana do lulopetismo.

Uma das últimas pérolas do repertório lulista é antológica: “Acho que determinados setores da comunicação estão exilados dentro do Brasil. Eles não estão compreendendo o que está acontecendo”.

Essa obsessão no ataque à imprensa, que frequentemente se materializa na tentativa de impor o “controle social” da mídia no melhor estilo “bolivariano” - intenção a qual a presidente Dilma, faça-se justiça, tem se mantido firmemente refratária -, só não explica como, tendo a conspirar contra si todo o aparato de comunicação do País, o lulopetismo logrou vencer três eleições presidenciais consecutivas.

O fato é que Lula e seus seguidores não se contentam com menos do que a unanimidade.