É do povo? Pode! É vedada? Deve!

por Giba Assis Brasil
em 11 de junho de 2017

Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, dizia Heráclito de Éfeso, bem antes do Lulu Santos, “pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou”. Portanto, concluía Heráclito antes de Hegel, “o real é sempre fruto da mudança, ou seja, do combate entre os contrários”. Séculos depois, o segundo princípio da termodinâmica, tal como formulado por Rudolf Clausius, tratou de associar a necessidade que o universo tem de mudança a uma quantidade, a entropia: grosso modo, “a desordem de um sistema fechado só pode crescer ou permanecer igual”. Já nos anos setenta do século vinte, minha avó Luizinha, voltando pra casa depois de um fim de semana em Belém Velho, chegou à síntese definitiva de uma das mais antigas questões da filosofia: “a volta nunca é igual à ida”, disse ela no banco de trás do fusca amarelo.

A volta nunca é igual à ida.

Menos nos palíndromos.

Daí, talvez, o fascínio da humanidade (tá bom: de uma pequena, ínfima parte dela) por estas frases que vão e voltam do mesmo jeito, pra lugar nenhum, deixando às vezes até uma sensação de significado.

Já escrevi sobre palíndromos no Não (junho de 2006) e no Terra Magazine (fevereiro de 2007). Quem não leu sabe o que perdeu, e não lamenta, pelo contrário. Mas, desde então, fiquei achando que, se eu voltasse ao assunto, meus amigos iam desconfiar que é mania. Pior.

De uns tempos pra cá, tenho dedicado muito do meu tempo pra cá: pra essa lida de empurrar letras de um lado pro outro, buscando uma simetria impossível em um mundo cada vez mais assimétrico. E tenho lido sobre o tema, e aprendido muita coisa: artigos do poeta Bráulio Tavares, livros publicados por Andrés Sandoval e Marina Wisnik, um livro ainda não publicado mas que eu achei no Google, uma matéria na Piauí, outra no Globo, um bando de gente tuitando em capicua, uma exposição gráfica de altíssimo nível, um especialista em Direito Internacional que está organizando uma antologia brasileira, saites em inglês e em espanhol (os maníacos estão por toda parte) e principalmente a correspondência que eu tenho mantido com o (Guaracy) Fraga, um frasista tão sofisticado que eu acho que se tornou palindromista pra dificultar um pouco o seu trabalho - como o “homem que calculava” Beremiz Samir, que em vez de contar camelos somava patas e orelhas, e depois dividia por seis.

Na busca pela simplicidade, descobri, por exemplo, que um palíndromo pode ser apenas um pedido a uma amiga para passar adiante uma mensagem:

Remeta, Rô: FORA TEMER!

Pode ser também um questionamento à fé inabalável de alguns procuradores que, como todos nós, só acham o que procuram:

Missa e Lava-jato? Tá! Já vale assim?

Mas nem sempre acham:

O pavor! Peso na meta, jogo joia, ata. Moro mexe mal, ataca Lula. “Cata lá, mexe, Moro! Mata!” Aí o jogo já tem anos: e prova, pô?

Um palíndromo pode ser ainda uma investigação sobre como o pessoal da Fiesp deve ter raciocinado antes de colocar na rua sua tropa de patinhos de borracha:

A sacar é Dilma, Temer é títere: metam líder à casa.

Ou sobre os destemperos de um garoto mimado que vai entrar pra História como aquele que, tendo perdido uma eleição, não se conformou e fez o país inteiro pagar por isso:

Roda aí, vil Aécio: cada coice alivia a dor?

Algumas palavras parecem impossíveis de inverter, mas um palindromista não desiste tão fácil. Nomes próprios são aceitos, mas em geral se convenciona que sejam razoavelmente comuns, ou de pessoas reais, conhecidas, que tenham relação com o tema da frase. Caso contrário:

É muito fácil fazer palíndromos com nomes próprios inventados, como Mocso dat Nevni, Soirpo R. P., Semon Mocsomord, Nila P. R. e Zaflica Fotiume.

Mesmo um encontro consonantal, digamos, polonês, pode ser palindromado com o uso de uma sigla, um acrônimo, ou mesmo uma palavra em outra língua qualquer. No caso, a pergunta que não quer calar, conforme um apresentador que também não quer, é: “Pode isso, Arnaldo?”

Por exemplo, o falecido Rômulo Marinho (1932-2017), considerado o maior palindromista brasileiro, chegou a escrever que devem ser evitados “advérbios terminados em ente, gerúndios e tritongos, além de letras mudas e a palavra ‘Volkswagen’”. Com toda razão. Mas, um dia desses, eu descobri a existência de um movimento de jovens na periferia de algumas grandes cidades norte-americanas que, por não serem negros (e provavelmente por acharem que não seria ‘cool’ eles serem confundidos com negros), se intitulam, justamente “White Suburban Kids”, ou WSK. Portanto, sejamos bilíngues:

Nega, WSK love é Volkswagen.

Aberta essa brecha, como diria o Tim Maia, vale tudo, ou quase. Por exemplo, sobre as investigações a partir de dados da Receita Federal:

Tucanos à tona, juiz, na RF? Ele franziu, janota: só na CUT.

Ou sobre o que pretendemos deixar dito sobre esse momento tão estranho que vivemos, em que a maioria parece ter medo das palavras, enquanto outros, menos numerosos, temem o que elas significam:

Remeto a carta, menor relato do golpe cometido. Só ditem o CEP. Logo, do tal erro, nem atraca o Temer.

E o que dizer do recente julgamento absolutamente não-palindrômico do Tribunal Superior Eleitoral, em que a Constituição Brasileira foi reescrita para que “o pau que porventura bata em Chico jamais se atreva a bater em Francisco”? Uma semana atrás, no começo do espetáculo, a sensação era mais ou menos essa:

Adota na mesa este TSE a semana toda.

E no final:

Ego foi de matar, comédia este TSE! Aí, democrata médio: foge!

Ou apenas:

Este TSE…

Mas talvez seja preciso ainda apontar uma direção, mesmo que, a essa altura do campeonato, ninguém mais acredite nela. Como na formulação de Galeano sobre a utopia, que afinal “serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”. Mesmo em círculos, sem sair do lugar, como num palíndromo: mas olhando para os dois lados e percebendo que

Ué? Dar o gás até? Ri dele: diretas agora! Deu!

Um anagrama não tem nada a ver com um palíndromo.

Mas tem.