Eu não sei

por Giba Assis Brasil
em 15 de outubro de 2018

(15/10/2018, mesa de abertura do Salão UFRGS, no Campus do Vale, “Vozes Diversas, Diversos Saberes”, com Fernanda Carvalho e Cíntia Moscovich, mediação Jane Tutikian)

Eu confesso que, quando a Márcia Barcelos me convidou pra participar desse evento, três meses atrás, a minha primeira reação foi recusar. Eu sempre acho que eu não tenho muita coisa a dizer, e o tema “Vozes diversas, diferentes saberes” me deixou ainda mais constrangido.

Eu não sei o que eu posso dizer sobre diversidade. Branco, de formação cristã, de classe média, filho de uma dona de casa e um bancário, casado há 33 anos, com dois filhos, o que é que eu posso dizer sobre diversidade? Eu não sei.

Mas enfim pensei em começar citando esse texto aqui:

“Os judeus não têm olhos? Os judeus não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações, paixões? Não ingerem os mesmos alimentos, não se ferem com as armas, não estão sujeitos às mesmas doenças, não se curam com os mesmos remédios, não se aquecem e refrescam com o mesmo verão e o mesmo inverno que aquecem e refrescam os cristãos? Se nos espetarem, não sangramos? Se nos fizerem cócegas, não rimos? Se nos derem veneno, não morremos? E se nos ofenderem, não devemos vingar-nos? Se em tudo o mais somos iguais a vocês, teremos de ser iguais também a esse respeito.”

Isso é Shakespeare, claro. “O mercador de Veneza”, fala do Shylock na primeira cena do terceiro ato. Gosto dessa fala porque ela começa como uma universal defesa da diversidade e termina como uma mesquinha justificativa de vingança. Isso é Shakespeare, mais uma vez expondo a nossa humanidade.

Assim como Shylock, eu também não sei até que ponto nós devemos ser tolerantes com os intolerantes, mas eu acho que nós não devemos ser iguais a eles.

Aliás, eu não sei muita coisa. Eu não sei dirigir automóvel. Eu não sei desenhar absolutamente nada. Eu sou péssimo na cozinha, e por isso sempre me disponho a lavar os pratos. Eu não sei pregar um quadro na parede sem deixar um rombo. Eu não sei passar roupa (já tentei, não deu certo). Eu não sei dançar “tão devagar pra te acompanhar”, como diz a Marina Lima. Eu nunca consegui decorar a letra de “Se eu quiser falar com Deus”, do Gilberto Gil.

Eu gosto muito de literatura, e de música, e até de cinema, mas eu tenho uma grande dificuldade pra entender arte abstrata, e espetáculos de mímica, e até de dança.

Eu não sei qual é a origem da expressão “estar na capa da gaita”: signfica estar gasto, quase fora de uso, mas por que “na capa da gaita”? Eu não sei quem foi que disse que “Livros não mudam o mundo, as pessoas é que mudam o mundo; os livros só mudam as pessoas”. (Sei que a internet diz que foi o Mario Quintana, mas eu desconfio que não foi; ou que foi o tribuno romano Caio Graco, e eu duvido. Mas eu não sei.)

Eu não sei por que motivo uma pessoa assistiria um filme, ou leria um livro, ou ouviria uma música, se não fosse pra tentar entender um pouquinho mais sobre os outros seres humanos que convivem com a gente nesse planeta, por isso eu não consigo entender por que as pessoas se interessam tanto por filmes e livros que não são sobre pessoas.

Eu sempre fui um bom aluno em matemática, mas nunca consegui entender economia. Por mais que eu me esforce, eu não consigo entender como é que um pedaço de papel pintado, e com um carimbo do banco central, se transforma em dinheiro, e transforma as pessoas em volta dele. Pior: eu não consigo nem chegar perto de entender como é que esse dinheiro, que já era abstrato no papel, hoje se tornou impulsos eletrônicos no cartão de crédito, bitcoins, e continua fazendo com que algumas pessoas tenham muito e outras não tenham nada.

Eu não faço a menor ideia de por que alguém acredita em Deus e ao mesmo tempo acredita que o seu Deus é melhor que o Deus do outro; e algumas pessoas inclusive se matam por causa disso. Eu não sei.

Tem muita coisa que eu não sei. Por exemplo, eu não sei o que vai ser desse país.

E apesar disso, recentemente, a Unisinos, onde eu trabalho desde 2003, me concedeu um título de “notório saber” equivalente ao grau de mestrado. E eu agradeço imensamente à Unisinos por isso, porque esse título me permite continuar dando aula. Mas, puxa vida! notório saber… Tem muita, muita, muita coisa mesmo que eu não sei.

E apesar disso eu dou aula. Eu sou professor há mais de 25 anos. E eu gosto muito de dar aula, porque pra dar aula eu me obrigo a organizar as poucas coisas que eu sei, e as muitas que eu não sei, e tentar encontrar um caminho que me permita ficar uma aula inteira falando, e ouvindo, e mostrando coisas, e provocando coisas, sem expor demais o tamanho do que eu não sei.

É claro que ninguém, muito menos um professor, gosta de expor a sua ignorância, mas é lindo, é maravilhoso, é transformador, quando um aluno faz uma pergunta e eu sou obrigado a responder pra ele: Não sei, não sei mesmo, mas se tu chegaste a formular essa pergunta, dessa forma, então a minha aula não foi inútil.

Quando eu comecei a dar aula de cinema (aqui na UFRGS, na Fabico, em 1994), numa época em que não havia nenhum curso superior de audiovisual na região sul do país, alguns colegas - colegas cineastas e colegas professores - me perguntavam: é possível ensinar cinema?

Acontece que, bem antes disso, eu já tinha dado aulas particulares de matemática, física e química pra vestibulandos, então eu tinha uma resposta pra isso, e a minha resposta dava a impressão de que pelo menos uma coisa eu sabia. E a minha resposta era: não, não é possível ensinar cinema, porque não é possível ensinar coisa alguma.

Ensinar não existe. O que existe é aprender. O papel do professor não é ensinar, é tentar mostrar como ele gosta daquele assunto, como ele se esforçou pra dominar aquilo, é demonstrar entusiasmo pela matéria, porque só assim existe alguma possibilidade de o aluno buscar construir na cabeça dele aquele conhecimento. E, por incrível que pareça, isso às vezes acontece. Eu juro que acontece. Eu já vi, no olho do aluno, da aluna: esse aqui tá aprendendo, aquela ali também. Aprender existe.

Talvez essa minha teoria sem pé nem cabeça seja uma simplificação de Piaget, ou uma deturpação de Vygotsky, sei lá, mas eu acho que é Paulo Freire. Não tenho certeza. Mas é bom guardar esse nome, porque o programa de governo do candidato que está em primeiro lugar nas pesquisas, e que talvez seja o nosso presidente dentro de poucos dias, promete “expurgar” Paulo Freire das escolas do Brasil. Não é fake news, podem conferir, tá lá no programa dele.

Expurgar. Banir. Torturar. Riscar da face da terra. Matar. Matar 30 mil pessoas. “Armas não matam, quem mata são as pessoas.” Verdade. O problema é que quem morre também não são as armas. São as pessoas.

Matar uma pessoa é pior do que matar 30 mil, mas matar 30 mil… é pior.

Contexto: a frase foi tirada do contexto? Agora me digam: qual é o contexto possível pra frase “só vai resolver quando matar 30 mil”? Matar pra resolver? Contexto?

Ameaçar matar não é tão ruim quanto matar? E mandar matar? E deixar matar? E fingir que não vê?

Meu amigo Hilton Jorge Machado, o Melô, negro, sociólogo, músico, professor, atualmente diretor da Escola Estadual de Ensino Médio Cristóvão Colombo, no Sarandi, meu colega de futebol de rua quando a gente tinha 9-10 anos de idade na pracinha do Alto da Bronze, está organizando uma antologia da música negra contemporânea de Porto Alegre, e deve lançar um CD e talvez um canal no Youtube nos próximos meses, se tudo der certo. Em nome da nossa amizade de mais de 50 anos, ele pediu que eu escrevesse um texto de apresentação pro disco. Foi uma das tarefas mais difíceis que já me passaram. O que é que eu posso dizer sobre música negra contemporânea de Porto Alegre?

Claro que ele me passou as músicas, eu ouvi. Eu me emocionei com algumas, eu cantei junto com outras, eu bati o pé no ritmo, ou mais ou menos no ritmo, eu descobri alguns cantores e cantoras e instrumentistas e grupos de que eu nunca tinha ouvido falar. Mas o que é que eu posso dizer sobre música negra contemporânea de Porto Alegre?

O que me salvou foi o Slam. Meus filhos tinham há pouco me chamado atenção que havia um novo fenômeno cultural nas cidades brasileiras. Na verdade, é um fenômeno que surgiu nos anos 1980 em Chicago, em paralelo com a cultura hip-hop, mas que só chegou ao Brasil nessa década, e em Porto Alegre há poucos anos.

O slam, se é que eu entendi bem, é um campeonato de poesia, ou melhor: uma rede de campeonatos de poesia, disputados na rua, em lugares e horários pré-determinados, por jovens (ou não), negros (ou não), muitas mulheres, vários gays, alguns trans. A palavra de ordem é: todos podemos fazer poesia. Todos podemos usar a palavra para nos manifestarmos.

Então, já que a minha tarefa era pretensiosa, eu resolvi ser mais pretensioso ainda: escrevi um texto como se fosse uma apresentação de slam, que eu chamei de “Lugar de branco”. Ficou bonito, eu acho. Ficou assim:


Esse texto é serviço de branco: pensa que vem da casa-grande pra redimir a senzala, mas chega atrasado, atrapalhado e, pra ser franco, nem sabe direito qual é o seu lugar de fala.

“Eu não tenho culpa.” “Eu nem sabia, eu nem era nascido.” “Meu bisavô era abolicionista, meu pai aprendeu com o pai dele a não ser racista.” Mas e o racismo do dia-a-dia? E o racismo escondido? Eu não posso fugir da memória: meu lugar na História é o lugar da cor da minha pele, não é o de Zumbi, nem de Marielle. E certamente tem sacanagem com preto na história da minha família. O que eu sei dessa história eu contei pra minha filha, e é disso que se trata: eu fiz o que pude, mas o meu povo não teve virtude, pois começou sendo escravocrata.

E, quando os pretos e as pretas de Porto Alegre se juntam pra cantar, pra celebrar, pra gravar, pra procurar o seu lugar (que é todo lugar, que um dia há de ser todo lugar), o que é que um branco pode fazer pra não continuar pagando de filho da puta? Eu não sei, não sei mesmo. Mas vou me sentar, vou ouvir (a começar por esse CD aqui). Vou tratar de achar meu lugar de escuta.


Então, eu não sei o que dizer sobre diversidade, a não ser que a vida não faz nenhum sentido sem ela. Assistam o filme “O triunfo da vontade”, de 1935, dirigido pela Leni Riefenstahl, especialmente os desfiles militares nazistas, e aquela vontade, aquela necessidade de todos parecerem absolutamente iguais, os mesmos uniformes, os mesmos penteados, os mesmos olhares fixos no horizonte, o mesmo ritmo nas passadas em direção a lugar nenhum. Ou assistam qualquer desfile militar, em qualquer época. Ou ouçam o nosso grande líder político do momento bradando com toda a força dos seus pulmões: “As minorias se adequam, ou simplesmente desapareçam.” Vida não é isso. Vida tem que ser diversa.

Quando eu fui aluno da UFRGS, nos anos setenta do século passado, a universidade tinha menos mulheres (ainda que muito mais do que na época dos meus pais), poucos gays, digamos, à luz do dia, raríssimos negros, nenhum índio. Quando eu dei aula na UFRGS, já no final do século, pouca coisa tinha mudado.

Meus filhos entraram na universidade agora nesse início de século, e a universidade continua restrita, sem dúvida ela deveria ser mais diversa, mas é muito mais diversa do que na minha época. Meus filhos, brancos, de classe média, conviveram na universidade com bem mais diversidade humana do que eu. E eu sei (sei? acho que sei.) que isso fez deles pessoas melhores. Acho mesmo.

Eu não sei o que vai acontecer com esse país, mas eu acredito que algumas conquistas não se perdem. Não sei quem foi que disse, mas eu gostei, usei e repito: seja o que for que aconteça, as mulheres não vão voltar pra cozinha, os gays não vão voltar pro armário, os negros não vão voltar pra senzala. Quem não tá satisfeito com isso, e tem muita gente que não tá satisfeita com isso, vai fazer muito barulho, vai machucar muita gente, talvez até consiga matar 30 mil - espero sinceramente que não. Mas não vai fazer a História andar pra trás, pelo menos não por muito tempo. Eu acho.

Eu acho? Eu acredito? Eu espero? Eu não sei. Mas, exatamente porque é um momento difícil, acho que a gente não tem o direito de ser pessimista. E por isso termino citando Frei Beto, essa frase eu tenho certeza que é dele.

Vamos deixar o pessimismo para dias melhores.

Frei Beto: “Vamos deixar o pessimismo para dias melhores.”