Começar bem: a cena 1

por Jorge Furtado
em 01 de dezembro de 2018

Começar bem.
(anotações para conversa com estudantes de cinema)

Em “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll, o Rei de Copas dá a Alice uma das mais sintéticas e profundas lições de como se contar uma história: “Comece do começo. Vá até o fim. E então pare.”

Parece simples, não é. Onde é o começo? Qual o melhor caminho? Onde é o fim?

O começo precisa ser criado de modo que se instaure o tempo e o espaço da fantasia e então passe a vigorar a “fé poética”. A definição é de Samuel Taylor Coleridge, filósofo inglês (1772 -1834), em “Biographia Literaria”, ensaio publicado em 1817, onde Coleridge cria o conceito de “suspensão da descrença”, na busca de entender o efeito da poesia, do romance e dos dramas sobre o espírito humano. O trecho, na tradução de Liziane Kugland:

“Ficou entendido que meus esforços deveriam ser direcionados a pessoas e personagens sobrenaturais, ou pelo menos românticos, e ainda com o intuito de buscar em nossa natureza interior um interesse humano e uma aparência de verdade suficientes para fornecer a estas sombras de imaginação aquela momentânea suspensão voluntária da descrença, a qual constitui a fé poética.”

“… It was agreed, that my endeavours should be directed to persons and characters supernatural, or at least romantic, yet so as to transfer from our inward nature a human interest and a semblance of truth sufficient to procure for these shadows of imagination that willing suspension of disbelief for the moment, which constitutes poetic faith.”

A cortina que se abre, as batidas com o bastão no palco que marcavam o início das comédias de Molière, os três sinais no teatro que avisam ao público que a função vai começar, as luzes que se apagam, são alguns dos muitos elementos que marcam o início do espetáculo. Prepare-se: “Era uma vez, num país distante…

Uma fórmula introdutória de narrativa oral, tribo africana:

“Antigamente era antigamente e hoje é um outro tempo. Escutem. Escutem e ouvirão a história daquele que partiu em busca da Primavera. Escutem. Os surdos dos dois tímpanos levarão a notícia aos ausentes, e os cegos dos dois olhos mostrarão aos coxos das duas pernas o lugar onde se passou. Era uma vez, e não era uma vez, e ainda assim era uma vez.””

Por tudo isso, a primeira cena de um filme tem, ao meu ver, uma importância extraordinária, acredito mesmo que deve ser uma síntese do filme. Uma história começa quando um personagem deseja alguma coisa e o leitor/espectador se pergunta: ele vai conseguir? Como? E quando?

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Trechos de “Galáxias”, de Haroldo de Campos

e começo aqui
e meço aqui este começo
e recomeço e remeço e arremesso e aqui me meço
quando se vive sob a espécie da viagem
o que importa não é a viagem mas o começo da
por isso meço
(…)
por isso começo
pois a viagem é o começo
e volto e revolto
pois na volta recomeço
reconheço
remeço
um livro é o conteúdo do livro
e cada página de um livro é o conteúdo do livro
e cada linha de uma página
e cada palavra de uma linha é o conteúdo da palavra da linha da página do livro
(…)
Há milumaestórias na mínima unha de estória.

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Lewis Carroll, Aventuras de Alice no país das maravilhas.

-- Eu poderia contar minhas aventuras… começando por hoje de manhã - disse Alice um pouco timidamente -, mas nem adianta lembrar de ontem, porque, ontem, eu era outra-pessoa.

-- Explique tudo isso direitinho - disse a Tartaruga Falsa.

-- Não, não! Explicações demoram um tempo horrível. Conte as aventuras primeiro - disse o Grifo num tom impaciente.

(Tradução de Jorge Furtado e Liziane Kugland, Editora Objetiva.)

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Em “Bagombo Snuff Box: Uncollected Short Fiction”, Kurt Vonnegut lista oito regras para escrever uma história curta:

  1. Dê aos seus leitores o máximo de informação o mais cedo possível. Que se dane o suspense. Leitores devem ter um entendimento completo do que está acontecendo, onde e por quê, para poder finalizar a história por eles próprios se as baratas comerem as últimas páginas.

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“Agarre o espectador pela garganta. E não solte”. Billy Wilder

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Conversa de Jorge Luis Borges com Osvaldo Ferrari.

B - Eu não sei se li novecentos volumes em toda a minha vida (risos) mas consultei muitos livros. Já que estamos o senhor e eu sozinhos, posso lhe dizer que não li nenhum livro do princípio ao fim, exceto alguns romances e exceto… História da filosofia ocidental, de Bertrand Russel, acho que não li nenhum livro na íntegra. Gosto de folhear, isso quer dizer que sempre tive ideia de ser um leitor hedonista, nunca li por sentimento de dever.

F - Talvez o senhor voltasse sempre aos índices dos livros que lhe eram familiares e que não tivesse percorrido em todo o seu conteúdo.

B - Não sei se tanto. (risos) Não quero me gabar mas sempre há um prazer em reler que não há em ler… Sim, por exemplo, eu sempre digo que meu escritor preferido é Thomas De Quincey. Pois aí tenho os quatorze volumes que adquiri há muito tempo, e provavelmente quando eu morrer descobrirão que há tantas páginas sem cortar nesse livro preferido. Mas isso não quer dizer que não seja preferido, quer dizer que minha memória volta a ele e que eu o reli muitas vezes.

Borges / Osvaldo Ferrari, Sobre a amizade e outros diálogos. Editora Hedra.

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Quando um romance começa?

David Lodge, em A arte da ficção.

“Qualquer que seja a definição, o começo de um romance é a fronteira que separa o mundo real que habitamos do mundo que o romancista imaginou. Assim, ele deve nos transportar, como se costuma dizer. Não é uma tarefa simples. Ainda não estamos acostumados com a voz do autor, com o seu vocabulário, com seus hábitos sintáticos. A leitura começa devagar e hesitante. Temos um bocado de novas informações para absorver e guardar, como o nome dos personagens, suas relações de afinidade e consanguinidade e os detalhes relativos a tempo e espaço, sem os quais é impossível acompanhar a história. Será que este esforço vai valer a pena? A maioria dos leitores dá ao autor uma chance de pelo menos alguma páginas antes de decidir voltar atrás. Com os exemplos mostrados aqui, no entanto, nossa hesitação tende a ser mínima ou inexistente. Somos cativados desde a primeira frase.”

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“A arte das séries de tv” , de Vincent Colonna. (tradução de Guel Arraes)

É preciso dizer tudo, explicar oralmente desde a apresentação até o final, de maneira que o telespectador, mesmo que sua atenção divague, mesmo que ele esteja distraído por barulhos parasitas, mesmo se sua escolha não tenha se concentrado realmente sobre a história, se sinta cativado por ela.

Examine o início de séries como Dr. House, Lost, Desperates Housewifes, Malcolm.* Você vai ver que não há exceção. Todas as séries que deram certo começam por cenas de apresentação explícitas que contam tanto verbalmente como visualmente as informações que se deve conhecer sobre os personagens principais.

Já na abertura do primeiro episódio encontraremos sempre a formulação das premissas da série, a identificação dos personagens importantes e do seu meio, a menção as suas finalidades, às vezes os obstáculos para atingir essas finalidades.

> Homeland, House of cards, Breaking bad, Boardwalk empire, A sete palmos, etc, etc.

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Doze grandes começos de livros:

  • “Ao despertar após uma noite de sonhos agitados, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama transformado num inseto gigantesco.” A Metamorfose, Franz Kafka.
  • “Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte.” Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis.
  • “Você vai começar a ler o novo romance de Ítalo Calvino, Se Um Viajante Numa Noite de Inverno. Relaxe. Concentre-se. Afaste todos os outros pensamentos. Deixe que o mundo a sua volta se dissolva no indefinido”. Se um Viajante Numa Noite de Inverno, Ítalo Calvino.
  • “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendia haveria de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”. Cem anos de solidão, Gabriel Garcia Márquez.
  • “Mamãe e papai não passavam de duas crianças quando se casaram. Ele tinha dezoito anos, ela dezesseis e eu, três.” Autobiografia de Billie Holiday, na verdade escrita pelo músico e escritor americano William Dufty.
  • “Tudo isso aconteceu, mais ou menos.” Matadouro Número 5, Kurt Vonnegut.
  • “Contudo, nunca foi bem estabelecida a primeira encarnação do Alferes José Francisco Brandão Galvão, agora em pé na brisa da Ponta das Baleias, pouco antes de receber contra o peito e a cabeça as bolinhas de pedra ou ferro disparadas pelas bombardetas portuguesas, que daqui a pouco chegarão com o mar”. Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro.
  • “Me chame de Ismael. Alguns anos atrás - não importa precisamente quantos - tendo pouco ou nenhum dinheiro na bolsa, e nada que me interessasse particularmente em terra firme, decidi navegar um pouco por aí e ver a parte aquosa do mundo. É um jeito que tenho de espantar a melancolia e regular a circulação do sangue. “ Moby Dick, Herman Melville.
  • “Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. “ Grandes Sertão: Veredas, Guimarães Rosa.
  • “A arte de amolecer diariamente o tijolo, a tarefa de abrir caminho na massa pegajosa que se proclama mundo, esbarrar cada manhã com o paralelepípedo de nome repugnante, com a satisfação canina de que tudo esteja em seu lugar, a mesma mulher ao lado, os mesmos sapatos e o mesmo sabor da mesma pasta de dentes, a mesma tristeza das casas em frente, do sujo tabuleiro de janelas de tempo com seu letreiro Hotel de Belgique.” Histórias de Cronópios e de Famas, Julio Cortazar.
  • “As famílias felizes são todas iguais, cada família infeliz é infeliz a sua maneira”. Ana Karenina”, de Leon Tolstoi.
  • “Se querem mesmo ouvir o que aconteceu, a primeira coisa que vão querer saber é onde eu nasci, como passei a porcaria da minha infância, o que meus pais faziam antes que eu nascesse, e toda esta lengalenga tipo David Copperfield, mas, para dizer a verdade, não estou com vontade de falar sobre isso.” O Apanhador no Campo de Centeio, J.D. Salinger.

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“in medias res” e o “ab ovo’.

In media(s) res (latim, “no meio das coisas”) é uma técnica literária onde a narrativa começa no meio da história, em vez de no início (ab ovo ou ab initio).

Os personagens, cenários e conflitos são apresentados através de uma série de flashbacks ou através de personagens que discorrem entre si sobre eventos passados. Obras clássicas tais como a Eneida, de Virgílio, a Ilíada, de Homero, ou a obra renascentista Os Lusíadas, de Luís de Camões, começam no meio da história.

Os termos in medias res e ab ovo (literalmente “desde o ovo”) vem da Ars Poetica do poeta romano Horácio, onde ele descreve seu poeta épico ideal:

Nem deve ele começar a Guerra de Tróia a partir do ovo duplo, mas sempre adiantar-se na ação e agarrar o ouvinte no meio das coisas…

O “ovo duplo” é uma referência à origem da Guerra de Tróia com o nascimento mítico de Helena e Clitemnestra de um ovo posto pela mãe de ambas, Leda, depois que esta foi violentada por Zeus sob a forma de um cisne.

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“O roteirista muitas vezes perde tempo apresentando o personagem antes que comece a trama. Creio que é natural, porque os roteirista novatos não conhecem seus personagem e por isso inventam situações que lhes permita explorar quem são. Todos os filmes de estudantes começam com alguém na cama”.

Steven Zaillian, em Roteiristas de Cinema.

Alguém não acordou hoje? “I woke up this morning” (Pesquisa no Google em 19.12.14, mostrou, “aproximadamente 787.000 resultados” para “I woke up this morning”.) Pule esta parte, a não ser que você tenha acordado na forma de inseto.

Uma brilhante exceção: “Cidade das ilusões”, de John Huston.

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David Mamet dava um conselho divertido sobre o melhor a fazer quando um filme fica pronto: “Jogue fora o primeiro rolo!”

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Erros mais comuns quanto ao começo, segundo Eugene Vale:

  • Começo muito lento, retardando o envolvimento do espectador. (Na televisão, um erro fatal, o público muda de canal.)
  • Começo muito impressionante, dificultando a gradação da trama. ( No cinema, um erro fatal, o público pode dormir.)

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Doze grandes começos de filmes:

  • A Ópera dos Três Vinténs, de G. W. Pabst, 1931. Roteiro de Bertolt Brecht, Béla Balázs, Léo Lania e Ladislaus Vajda, sobre peça de Bertold Brecht.
  • Ninotchka, de Ernst Lubitsch, 1939. Roteiro de Charles Brackett, Billy Wilder e Walter Reisch. Baseado em história original de Melchior Lengyel.
  • Cinco covas no Egito, de Billy Wilder, 1943. Roteiro de Charles Brackett e Billy Wilder, sobre peça de Lajos Biró.
  • Ladrões de Bicicleta, de Vittorio de Sica, 1948. Roteiro Cesare Zavattini, Suso Cecchi D’Amico, Vittorio De Sica, Oreste Biancoli, Adolfo Franci e Gerardo Guerrieri. Sobre novela de de Luigi Bartolini.
  • A noite do Iguana, de John Huston, 1964. Roteiro de Anthony Veiller e John Huston, sobre peça de Tenesse Williams.
  • Três homens em conflito, de Sergio Leone, 1966. Roteiro de Agenore (Age) Incrocci, Furio Scarpelli, Luciano Vincenzoni e Sergio Leone.
  • Cabaret, de Bob Fosse, 1972. Roteiro de Jay Allen, baseado no romance de Christopher Isherwood e na peça de John Van Druten.
  • Nós que nos amávamos tanto, de Ettore Scola, 1974. Roteiro de Ettore Scola, Agenore (Age) Incrocci e Furio Scarpelli.
  • Procura insaciável, de Milos Forman, 1971. Roteiro de Milos Forman, John Guare, Jean-Claude Carrière e John Klein.
  • Cidade das ilusões, de John Huston, 1972. Roteiro de Leonard Gardner, sobre sua própria novela.
  • Toy Story, de John Lasseter, 1995. Roteiro de Joss Whedon, Andrew Stanton e Joel Cohen. História original de John Lasseter, Pete Docter, Andrew Stanton, Joe Ranft e Alec Sokolow .
  • Fargo, de Joel Coen, 1996. Roteiro de Joel e Ethan Coen.

(c) Jorge Furtado


COMENTÁRIOS

Enviado por Jorge Ernesto Couto de Castro em 05 de junho de 2019.

Fui conferir ontem o documentário, O Mercado de Notícias, foi ótimo o filme e a peça, que apareceu dentro desse filme, ficou uma coisa maravilhosa, brilhante! Parabéns por esse trabalho brilhante sobre a imprensa e a realidade que felizmente eu pude assistir ontem. (04/06/2019).