A personificação da raiva

por Jorge Furtado
23/11/2019

Quem acha que lendo “Maus” (Art Spiegelman) e “Terror e Miséria no Terceiro Reich” (Brecht), vendo “A lista de Schindler” (Spielberg) e “Noite e Nevoeiro” (Alain Resnais), tendo lido “O Diário de Anne Frank” na adolescência, já sabe o suficiente sobre os horrores do nazismo e os crimes abomináveis do holocausto, sugiro a leitura de “O Holocausto, uma nova história”, de Laurence Rees, historiador e documentarista inglês. (Editora Vestígio, trad. Luis Reyes Gil). O livro tem a fluência de uma ótima reportagem e a solidez de um clássico, com todas as fontes, referências, índice onomástico e bibliografia, capa dura e até fitinha para marcar a página, e novas e aterrorizantes histórias daquele momento de desvario, onde uma nação culta e “pessoas de bem” mergulharam num turbilhão de ódio, sofrimento, destruição e dor, deixando um rastro de muitos milhões de mortos.

O nazismo floresceu na Alemanha num ambiente de desalento, de desemprego, desesperança, pós derrota na Primeira Guerra, quando um país destruído teve que pagar pela reconstrução dos países que, afinal, destruíra, como mandava o tratado de Versailhes. Vários nazistas, bem antes de Hitler, descobriram que podiam culpar os judeus - perto de 2% dos alemães - por qualquer coisa que quisessem. Se a Alemanha perdeu a guerra foi porque os judeus não lutaram, ficaram em casa enriquecendo, embora a realidade informasse que eles foram proibidos de lutar, mas quem se importa com a realidade quando está com fome e raiva? Se o pequeno comércio tinha dificuldades, a culpa era de grandes magazines judeus como a Woolworth, embora o próprio fosse metodista, e não judeu. Se os agricultores tinham dificuldade por causa das ferrovias que traziam alimentos de longe para os grandes centros, ou se os produtos artesanais perdiam competitividade com os fabricados, a culpa era dos judeus das ferrovias e das fábricas. “O Protocolo dos Sábios do Sião”, pai de todas as fakenews, uma fraude confessada e um plágio descarado que falava de uma “conspiração judaica” para tomar o mundo, circulava como verdade histórica.

Rees conta que em 1919, em Munique, a Sociedade Thule exigia que que cada candidato a filiação jurasse que “nenhum sangue judeu” corria “pelas suas veias ou de sua esposa”. Um dos membros mais destacados da sociedade era o dramaturgo Dietrich Eckart, um alcóolatra de 50 anos que exerceria uma grande influência sobre o início da carreira de Hitler, então apenas um obscuro e medíocre cabo austríaco de 30 anos de idade, rancoroso e verborrágico, que culpava os judeus e os comunistas por tudo e por qualquer coisa.

No dia 12 de setembro de 1919, Hitler compareceu a uma reunião do Partido dos Trabalhadores Alemães, um pequeno grupo de extrema-direita da Baviera, que pregava contra o comunismo e, especialmente, contra os judeus. Eckart era um antissemita convicto, autor de uma peça, “Familienvater” (Um homem casado), a história de um corajoso jornalista que escreve uma peça teatral para denunciar o poder corrupto dos judeus na mídia, que usam sua influência para fazer a peça fracassar. A peça de Eckart fracassou e ele culpou, é claro, os judeus da mídia. Para Eckart, a “questão dos judeus” era o “problema que engloba todos os demais problemas”, simples assim. Na reunião, Hitler impressionou a todos com sua eloquência e dramaticidade e foi convidado a juntar-se ao partido, embora alguns companheiros classificassem seu comportamento como “peculiar”. E foi exatamente isto que interessou Eckhart.

Rees: “A intolerância de Hitler, suas inadequações sociais, sua incapacidade de travar uma conversação normal e sua absoluta certeza de estar com a razão, todos estes passaram a ser, para Eckart, atributos positivos. Eckart acreditava que havia agora muita coisa que despertava raiva e que Hitler era a personificação da raiva. Isso, combinado com seus pontos de vista extremados a respeito de quem deveria ser culpado pela atual situação, era exatamente o que as confusas massas de Munique precisavam ouvir. Acima de tudo, a atuação de Hitler na guerra como soldado comum destacava-o da velha elite no poder, que fizera a nação fracassar tão ostensivamente: “A multidão precisa ser aterrorizada”, dizia Eckart. “Não posso mais usar a autoridade, o povo não tem mais qualquer respeito por eles. O melhor seria um trabalhador que soubesse fazer as coisas direito. Não precisa ser inteligente, a política é o negócio mais estúpido do mundo”. Tudo isso levou Eckart a lançar a profecia a respeito de Hitler: “Este é o homem para a Alemanha, um dia o mundo vai falar dele”.

Eckart foi, segundo Rees, o relacionamento mais próximo que Hitler teve com um ser humano. Hitler idolatrava Eckart, “ele brilhava aos nossos olhos como estrela polar”. Eckart não viveu para ver cumprida a sua profecia, os nazistas pularam de 2% numa eleição para a vitória na outra, Hitler foi eleito chanceler. Na eleição de 1936, teve 88% de votos para se tornar chefe do estado. E 98% de apoio para invadir a Renânia. (Na eleição de 1936 a Alemanha já estava dominada pelos nazistas, só havia um partido - desde 1933 - e a eleição foi uma fraude.)

As diferenças culturais e históricas entre a Alemanha de 1930 e o Brasil de hoje são imensas, seria cansativo enumerá-las, mas os personagens alucinados e o entrecho do drama, que passa pela comédia e termina em tragédia, com muitos mortos, são tristemente semelhantes, e assustadores. Tentar entender o que aconteceu parece ser uma boa ideia para tentar evitar que aconteça outra vez.