Jabor x Ancinav

(mensagem para Jorge Furtado em 02/01/2005, quinze anos atrás)

Finalmente consegui ler o tal texto do Jabor que encerra o ano de investidas contra o projeto da Ancinav. Tu disseste que “concorda com algumas coisas e discorda de outras”. Pois eu encontrei muitas coisas pra discordar e ainda estou procurando alguma pra concordar. O artigo é pouco mais que uma lista de adjetivos e metáforas, com quase nada de argumentação.

O projeto da Ancinav, segundo Jabor, é um “aborto ideológico”, uma “babaquice”, uma “demência”, resultado de um “tumor inoperável” ou de um “raciocínio tosco”, além de estar cheio de “medidas sorrateiras”. Seus responsáveis, que ele nunca nomeia, mas que de alguma forma se aproveitaram da “ingenuidade ou desatenção do Gilberto Gil”, são uma “tróika de rancorosos”, de “velhos esquerdistas”, “bolchevistas de carteirinha” ou “leninistas que tomaram o poder” e usam uma “tática maoísta” como decorrência de uma “atitude baixamente gramsciana”, além de “vulgar e tardia”. (Pelo menos a palavra “stalinismo” não apareceu dessa vez.)

Quando parece que ele vai entrar no mérito, é só pra dizer que o projeto tem “itens, subitens, parágrafos insidiosos, meias palavras, frases nebulosas” e, então, esclarecer aos leitores o que o projeto “ambiciona”, “visa”, “parte da idéia de que”, “tem a intenção de” e “a finalidade principal clara de”. Pois a intenção da Ancinav, segundo Jabor, é “usar o cinema como boi de piranha” e sua “finalidade principal clara” é “colocar a TV Globo de joelhos”.

Certo, digamos que seja isso. Mas, para atingir tais objetivos, o que exatamente o projeto faz, diz, determina, estabelece? Em todo o texto de 1129 palavras, tem UM ÚNICO MOMENTO em que o Jabor cita algum trecho do projeto que ele tanto critica (se é que dá pra chamar isso de crítica). É quando ele “analisa” o artigo 13, parágrafo 2º do anteprojeto de lei, que define a natureza da Agência:

“Um item extraordinário do tal projeto de lei trata de sua fisionomia burocrática e seus poderes, vejam: ‘A natureza de autarquia especial conferida à Ancinav é caracterizada por autonomia administrativa e financeira, ausência de subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes.’ Nem o Lula tem tais poderes. Nem o José Dirceu, de onde, dizem, emana essa ideologia.”

Isso é o que diz o Jabor. O engraçado é que o artigo que ele cita é EXATAMENTE IGUAL ao art. 8º, parágrafo 2º da Lei 9.472/97 (http://www.sulradio.com.br/lei_9472.asp), que criou a Anatel, Agência Nacional de Telecomunicações, ainda no Governo Fernando Henrique Cardoso - que, pelo jeito, devia estar cheio de “rancorosos”, “leninistas” e “sorrateiros”.

Outras agências reguladoras foram criadas no governo FHC: a Lei 9.427/96 criou a ANEEL, de Energia Elétrica; a Lei 9.478/97, a ANP, de Petróleo; a Lei 9.782/99, a ANVISA, de Vigilância Sanitária; a Lei 9.961/2000, a ANS, de Saúde Suplementar; a Lei 9.984/2000, a ANA, de Águas; e finalmente a Lei 10.233/2001 criou a ANTAQ, de Transportes Aquaviários e a ANTT, de Transportes Terrestres. Nem todas essas leis usam os mesmos termos, mas todas - TODAS - estabelecem os mesmos princípios para o funcionamento das agências.

Aliás, a própria Ancine, criada pela Medida Provisória 2228/2001, é uma “autarquia especial” (artigo 5º), com “autonomia administrativa e financeira” (artigo 5º), “mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes” (artigo 8º). Só não está explícita a tal “ausência de subordinação hierárquica”.

(Tá certo, eu nem deveria perder tanto tempo discutindo isso, que é um aspecto de menor importância da Ancinav. Mas o que é que eu posso fazer? É a ÚNICA citação que o Jabor faz do projeto!)

O conjunto de princípios que, segundo o Jabor, coloca a Ancinav “acima do Legislativo e Judiciário, invadindo atribuições de ministérios e autarquias” ficou tão consagrado na era FHC que a própria CVM, Comissão de Valores Mobiliários, que havia sido criada em 1976, foi reestruturada em fevereiro de 2002, pela Lei 10.411, nos seguintes termos: “É instituída a Comissão de Valores Mobiliários, entidade autárquica em regime especial (…) dotada de autoridade administrativa independente, ausência de subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes, e autonomia financeira e orçamentária.” Igualzinho ao projeto da Ancinav. Diz o Jabor que “nem o Lula nem o José Dirceu” têm tantos poderes. Pois é, mas os diretores da CVM, da ANATEL, ANEEL, ANP, ANVISA, ANA, ANTAQ e ANTT parece que têm.

Não que esses princípios sejam indiscutíveis. Em maio de 2003, por exemplo, a deputada Telma de Souza, do PT, apresentou um projeto visando acabar com a “ausência de subordinação hierárquica” das agências e ampliar a capacidade de controle dos ministérios. Na época, a gritaria foi forte, o que fez com que o projeto, até hoje, não tenha ido a plenário.

Segundo a CBIEE (Câmara Brasileira de Investidores em Energia Elétrica), “as agências foram criadas para evitar que os interesses políticos do governo influenciassem ou determinassem decisões que devem ser tomadas por critérios técnico-empresariais” e “por esse motivo, as agências têm garantia de independência administrativa, ausência de subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes e autonomia financeira.” (http://www.cbiee.com.br/noticias02.asp?id=2872) Argumentação muito semelhante pode ser encontrada em sítios de outras entidades empresariais, como a Câmara Americana do Comércio (http://www.amcham.com.br/revista/revista2003-04-17b/materia2003-04-17g/pagina2003-04-17h), o Instituto Patri (http://www.patri.com.br/862.htm) ou a Comparatel (http://www.comparatel.com.br/news/shownews.asp?id=1071).

O raciocínio parece ser este: nas áreas de energia elétrica, telecomunicações, petróleo, saúde, transportes, etc, mais autonomia para as agências significa menos ingerência dos ministérios e portanto mais liberdade de mercado; no audiovisual, uma agência minimamente autônoma significa “colocar a TV Globo de joelhos”. Desculpe, mas não dá pra levar a sério. No fundo, o que ele parece estar dizendo é que “tudo pode e deve ser regulado, menos a televisão”.

Aliás, a regulação do setor audiovisual não deve sequer ser discutida em público, pois isso pode “prejudicar o cinema”. Ou melhor, segundo o Jabor, “já prejudicou, pois esse ano ninguém conseguiu captar dinheiro algum, com as empresas assustadas pelas notícias”. Claro que isso, além de terrorismo, é puro chute: nem a Ancine tem ainda os dados sobre a captação efetiva em 2004. A tendência, visível desde 2001, é uma diminuição drástica nas captações via artigo 1º e Lei Rouanet, e aumento significativo em artigo 3º e artigo 39 (que só passaram a funcionar depois da criação da Condecine), além dos novos Funcines. Se é pra chutar, eu chutaria que o total de captação em 2004 vai ser igual ou levemente superior ao de 2003. Mas - repito - é só um chute.

Realmente, o Jabor não chega a associar a queda de público do cinema brasileiro em 2004 ao projeto da Ancinav - o que talvez fosse barroco demais até pra ele. Mas lê de novo a frase “Depois de 2003, quando todos os recordes de sucesso foram batidos, 2004 foi uma retração terrível por causa do absurdo comportamento desses caras.” Percebe a “frase insidiosa”, o “parágrafo nebuloso”? A “retração” de que ele fala é na captação de recursos (chutada, mas possível), só que os “recordes de sucesso” se referem evidentemente ao comportamento do público. Mesmo sem dizer, ele sugere que, se não houve novos “Carandiru”, “Lisbela” e “Os Normais” em 2004, foi porque “esses caras” do Minc ficaram discutindo projetos “absurdos”.

Em resumo: se há sucesso, é por causa das leis em vigor; se há retração, é por causa do projeto de uma lei que ainda não entrou em vigor. De novo, não dá pra levar a sério.

O apoio ao projeto da Ancinav, segundo Jabor, só pode vir de dois lados: ou do pessoal da “linha chinesa”, da qual ele admite já ter feito parte; ou dos “cineastas que não conseguem filmar ou emplacar algum sucesso” e, por isso, “apóiam essas leis estatizantes e controladoras”.

Reforçando essa última tese, anda circulando por aí o texto de um cineasta que, há 13 anos sem filmar, escreveu: “não há cinema em país ‘sub’ sem uma lei de amparo estatal”; “não vai escorrer migalha alguma se não protegermos nosso acesso ao mercado interno”; e “sempre que falamos em proteger o mercado de cinema, nossa imprensa grita, como se isto fosse uma violência ou arcaísmo nestes tempos neoliberais”. Engraçado é que o texto, publicado no jornal O Globo de 8 de junho de 1999, é assinado pelo mesmo Arnaldo Jabor, que, infelizmente para o cinema brasileiro, não filmava (e não filma) desde 1986.

Quanto à “linha chinesa”, Jabor agora parece fazer um papel semelhante ao dos ex-bandidos e ex-drogados nos shows de catarse coletiva das igrejas evangélicas. Assim como os novos convertidos submetem-se à humilhação pública de relatar detalhadamente seus crimes para justificar a fé atual, Jabor faz o mesmo com suas antigas “convicções”: “quem vos fala vibrou quando, na revolução cultural, Mao Tsé-tung proibiu Beethoven na China”.

Os evangélicos “puros”, ou que no máximo cometeram pequenos pecados antes de “encontrar Jesus”, ouvem como o sujeito batia na própria mãe para tirar o dinheiro da velha e comprar droga, e se irmanam a ele no choro e na redenção. Os atuais leitores de Jabor talvez pensem algo parecido: puxa, será que eu também, em algum momento da vida, achei que “seria bom para os intelectuais uma temporada na colheita de arroz”?

O problema é que Jabor se trai, ainda que em tom de piada, ao sugerir que o trabalho forçado numa colônia agrícola “talvez fosse bom hoje em dia para os assessores do Minc”. Se o “pastor” prestar atenção nesas palavras, talvez conclua que o “ex-maoísta Jabor” ainda não está plenamente “curado”. Ou, em outras palavras: “Quem é o autoritário aqui, cara-pálida?”