Maya Angelou

Longos e tortuosos são os caminhos dos ignorantes autodidatas, eu só fui conhecer Maya Angelou por conta da Billie Holiday, veja só. Billie Holiday (1915-1959), isso quase todo mundo sabe, foi a maior cantora da história, melhor que o silêncio, só Billie Holiday. O encontro das duas é descrito no delicioso livro “Primeiros encontros”, escrito por Nancy Sorel e ilustrado por Edward Sorel. [Ed. Alfred A Knopf, Nova York, 1994].

Em junho de 1958, Maya Angelous era uma jovem atriz, bailarina e cantora, tinha acabado de voltar e uma excursão pela Europa, foi a protagonista feminina no musical “Porgy e Bess”. Ela tinha 30 anos, um filho adolescente para criar e um emprego como cantora numa boate em Laurel Canyon, Hollywood. Um dia, o seu preparador vocal apareceu na porta e disse que Billie Holiday, Lady Day, a maior cantora do planeta, estava na cidade e queria conhecê-la, perguntou se ela saberia lidar com isso. “O que há para lidar? Ela é uma mulher. Eu sou uma mulher.”

“Lady Day era uma mulher complicada. No início, Angelou achou sua convidada hostil, sua conversa uma mistura de sarcasmo e obscenidades. Mas depois do almoço - frango frito, arroz, molho do Arkansas - Holiday se suavizou. Maya era uma boa moça e também uma boa cozinheira, disse ela”. Parece que Lady Day fez de tudo para levar Maya para cama, pelo menos a princípio, sem sucesso. (“Você é muito careta, menina!”) Ninguém sabe ao certo o que aconteceu. Nancy Sorel é discreta, Maya nunca tocou no assunto, Holiday morreu um ano depois. Billie Holiday passou cinco dias com Angelou, e só no final voltou a sua irritação habitual. Na última noite, durante uma apresentação de Maya na boate, Billie bebeu demais, gritou com ela fora do palco. Um vexame. No outro dia, Billie foi embora com uma profecia: “Você vai ser famosa, mas não será por cantar.”

Me interessei em saber quem era esta mulher capaz de merecer tamanha atenção de uma artista tão grande e em pouco tempo descobri o quanto Lady Day estava certa. Maya Angelou foi uma mulher absolutamente extraordinária. Ela fez tantas coisas – bailarina, cantora, poeta, ativista, romancista, roteirista, diretora de cinema – que é melhor você ir direto na wikipedia. Li alguns dos seus livros, relatos autobiográficos, poemas, artigos, todos são muito bons. “Eu sei por que os pássaros cantam na gaiola” é uma obra-prima.

Maya nasceu e cresceu na época e no lugar mais racista dos Estados Unidos, sofreu abuso do namorado da mãe aos 7 anos, acabou denunciando o abusador, que foi morto pelos seus tios. Sentindo-se culpada por suas palavras terem provocado a morte de um homem, Maya ficou quase em completo silêncio por cinco anos. Neste período, mergulhou na leitura, leu todos os clássicos, todo Shakespeare, que ela descreve como “Meu primeiro amor branco”. (Quando, com 8 anos, leu pela primeira vez o soneto 29, Maya concluiu: “Shakespeare deve ser uma garota negra.”) Ela e seu irmão Bailey decoravam longos trechos de Shakespeare, mas a sua avó não podia saber de jeito nenhum que se tratava de um autor branco. Uma mente brilhante, Maya destacou-se na escola, ganhou uma bolsa, foi para a universidade.

A profecia de Billie Holiday se cumpriu à risca. Maya Angelou se tornou poeta, escritora e ativista dos direitos civis, amiga de Martin Luther King e Malcon X. Seu livro “Eu sei por que os pássaros cantam na gaiola” é um clássico da literatura americana, romance de formação de uma menina negra que, segundo seus próprios relatos, mudou a vida de mulheres com Ophra Winfrey, Michele Obama e muitas outras. Na posse de Bill Clinton, Maya foi convidada a escrever e recitar um poema. “”On the Pulse of Morning” tornou-se um clássico imediato, presente em qualquer antologia de poemas americanos.

Maya morreu em 2014, aos 86 anos. Entre seus muitos feitos e glórias, Maya Angelou foi, que eu saiba, a primeira mulher negra a virar uma moeda de seu país. Sua imagem ilustra uma edição comemorativa do quarto de dólar, 25 cents que eu carrego no bolso, só para me lembrar, de vez em quando, por que os pássaros cantam na gaiola.

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Acréscimo:

Não li “The heart of a woman”, mas uma matéria da New Yorker transcreve um trecho em que Maya conta um pouco mais sobre seu encontro com Billie Holiday.

“Na noite anterior à sua partida para Nova York, ela disse a Guy [o preparador vocal, amigo comum] que cantaria “Strange Fruit” como sua última música. Billie falou e cantou em tom rouco e seco a conhecida canção de protesto. Sua voz rouca e seu fraseado literalmente me encantaram. Eu vi os corpos negros pendurados nas árvores do sul. Vi o sangue das vítimas do linchamento escorrer das folhas pelos troncos e chegar às raízes… Guy interrompeu a música. “O que é uma cena pastoral, senhorita Holiday?” Billie ergueu os olhos lentamente e estudou Guy por um segundo. Seu rosto tornou-se cruel e quando ela falou sua voz era desdenhosa. “Significa quando os crackers estão matando os negros. Significa quando eles pegam um neguinho como você, arrancam as bolas dele e enfiam na garganta dele. É isso que significa.”

Descrevendo a primeira visita de Holiday à sua casa, ela diz:

A realidade de Lady Day vindo à minha casa me atingiu e fez meu corpo tremer. Era bem sabido que ela usava drogas pesadas e eu quase não fumava mais maconha. Como eu poderia dizer a ela que ela não poderia injetar ou cheirar na minha casa? Também houve rumores de que ela teve casos lésbicos. Se ela me fizesse uma proposta, como eu poderia rejeitá-la sem fazê-la pensar que eu a estava rejeitando? Eu a vi pela porta de tela e meu nervosismo rapidamente se transformou em choque. O rosto inchado continha apenas uma sombra de sua beleza familiar. Quando ela entrou em casa, seus olhos eram de um preto fosco e sua mão estava na minha como um brinquedo de borracha de criança.”

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“Eu sei por que os pássaros cantam na gaiola”, de Maya Angelou.

Capítulo 19:

“O último espacinho foi preenchido, mas as pessoas continuavam a se espremer junto às paredes do Mercado. Tio Willie tinha sintonizado o rádio no volume mais alto, para que os jovens na varanda não perdessem uma palavra. Havia mulheres sentadas em cadeiras de cozinha, em cadeiras de sala de jantar, em bancos e em caixas de madeira viradas. Havia crianças pequenas e bebês em todos os colos disponíveis, e os homens estavam apoiados nas prateleiras ou uns nos outros.

O humor apreensivo era quebrado com gracejos, assim como um céu negro é cortado por relâmpagos.

“Não estou preocupado com essa luta. Joe vai acabar com aquele sujeito como se ele fosse de papel.”

“Vai bater nele até o garoto branco o chamar de mamãe.”

Finalmente a falação acabou, a música da propaganda das lâminas de barbear acabou e a luta começou.

“Um soco rápido na cabeça.” No Mercado, as pessoas grunhiram. “Uma esquerda na cabeça e uma direita e outra esquerda.” Um dos ouvintes cacarejou como uma galinha e foi silenciado.

“Eles estão agarrados, Louis tentando se soltar.”

Algum comediante amargo na varanda disse: “Aquele branco não se importa de abraçar o preto agora, aposto”.

“O árbitro vai separá-los, mas Louis finalmente empurrou o oponente e deu um uppercut no queixo. O oponente está com a cabeça baixa, está recuando agora. Louis o acerta com um soco de esquerda no maxilar.

Uma série de murmúrios de aprovação escapou pelas portas até o pátio. “Outro de esquerda e outro de esquerda. Louis está poupando a poderosa direita…” O murmúrio no Mercado tinha virado uma mini gritaria interrompida pelo soar de um sino e a voz do narrador: “É o sino do terceiro round, senhoras e senhores”.

Enquanto entrava no Mercado, pensei se o narrador tinha refletido que estava chamando de “senhoras e senhores” todos os Negros do mundo que estavam suando e orando, grudados na “voz do mestre”.

Só houve alguns poucos pedidos de R . C . Colas, Dr Peppers e Hire’s root beer. As verdadeiras comemorações começariam depois da luta. Aí até as senhoras cristãs, que ensinavam os filhos e se obrigavam a dar a outra face, comprariam refrigerantes. E, se a vitória do Bombardeiro Marrom fosse particularmente sangrenta, elas comprariam pés de moleque e também chocolate Baby Ruth.

Bailey e eu colocamos as moedas em cima da caixa registradora. Tio Willie não nos deixava receber pagamentos durante uma luta. A caixa registradora era muito barulhenta e podia abalar o clima. Quando o gongo soou no final do round seguinte, passamos pelo silêncio quase sagrado até onde estava a horda de crianças lá fora.

Ele encurralou Louis nas cordas e agora foi um de esquerda no corpo e um de direita nas costelas. Outro de direita no corpo; parece que ele bateu baixo… Sim, senhoras e senhores, o árbitro está sinalizando, mas o oponente continua golpeando Louis. Outro no corpo, e parece que Louis está caindo.

Minha raça gemeu. Era nosso povo caindo. Era outro linchamento, mais um Negro enforcado em uma árvore. Mais uma mulher emboscada e estuprada. Um garoto Negro chicoteado e ferido. Eram cachorros na trilha de um homem correndo por pântanos gosmentos. Era uma mulher branca estapeando a empregada por ser esquecida.

Os homens no Mercado se afastaram das paredes, alertas. As mulheres apertavam os bebês no colo enquanto, na varanda, as cartas embaralhadas e os sorrisos, os flertes e beliscos de alguns minutos antes tinham parado. Podia ser o fim do mundo. Se Joe perdesse, estaríamos de volta à escravidão, sem chance de ajuda. Seria tudo verdade, as acusações de que éramos do tipo mais baixo de ser humano. Só um pouco acima dos macacos. Seria verdade que éramos burros e feios e preguiçosos e sujos e sem sorte e, pior de tudo, que o Próprio Deus nos odiava e nos mandava ser carregadores de madeira e coletores de água para sempre, sem nunca ter fim.

Nós não respiramos. Nós não tivemos mais esperança. Nós apenas esperamos.

Ele se afastou das cordas, senhoras e senhores. Está indo na direção do centro do ringue.” Não houve tempo de sentir alívio. O pior ainda podia acontecer.

E agora parece que Joe está com muita raiva. Ele acertou Carnera com um gancho de esquerda na cabeça e um de direita na cabeça. Um soco de esquerda no corpo e outro de esquerda na cabeça. Um cruzado de esquerda e um de direita na cabeça. O olho direito do oponente está sangrando, e ele não consegue manter o bloqueio. Louis está penetrando em todas as defesas. O árbitro está se aproximando, mas Louis enfia um soco de esquerda no corpo e um uppercut no queixo, e o oponente está caindo. Ele está na lona, senhoras e senhores.

Bebês foram para o chão quando as mulheres se levantaram e os homens se inclinaram para o rádio.

“Aqui está o árbitro. Ele está contando. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete… O oponente está tentando se levantar novamente?” Todos os homens gritaram: “NÃO”.

“… oito, nove, dez.” Houve alguns sons da plateia, mas eles pareciam estar se segurando contra uma pressão tremenda.

“A luta acabou, senhoras e senhores. Vamos levar o microfone até o árbitro… Aqui está ele. Ele está segurando a mão do Bombardeiro Marrom, ele a está levantando… Aqui está ele…” E a voz, rouca e familiar, soou ao nosso redor: “O vencedor e ainda campeão mundial dos pesos pesados… Joe Louis.

Campeão mundial. Um garoto Negro. O filho de uma mãe Negra. Ele era o homem mais forte do mundo. As pessoas beberam Coca-Cola como se fosse ambrosia e comeram chocolate como se fosse Natal. Alguns dos homens foram para trás do Mercado e botaram bebida alcoólica nas garrafas de refrigerante, e alguns dos garotos maiores foram atrás. Os que não foram expulsos voltaram soprando o hálito como se fossem fumantes orgulhosos.

Demoraria uma hora ou mais para as pessoas saírem do Mercado e voltarem para casa. Os que moravam longe demais fizeram arranjos para ficarem na cidade. Não seria bom um homem Negro e sua família serem pegos em uma estrada solitária na noite em que Joe Louis provou que éramos o povo mais forte do mundo.

Trecho de Maya Angelou: “Eu sei por que os pássaros cantam na gaiola”. Tradução de Regiane Winasky. Astral Cultural, 2018.

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Ainda assim eu me levanto

Você pode me marcar na história
Com suas mentiras amargas e distorcidas
Você pode me esmagar na própria terra
Mas ainda assim, como a poeira, eu vou me levantar.

Meu atrevimento te perturba?
O que é que te entristece?
É que eu ando como se tivesse poços de petróleo
Bombeando na minha sala de estar.

Assim como as luas e como os sóis,
Com a certeza das marés,
Assim como a esperança brotando,
Ainda assim, eu vou me levantar.

Você queria me ver destroçada?
Com a cabeça curvada e os olhos baixos?
Ombros caindo como lágrimas,
Enfraquecidos pelos meus gritos de comoção?

Minha altivez te ofende?
Não leve tão a sério
Só porque rio como se tivesse minas de ouro
Cavadas no meu quintal.

Você pode me fuzilar com suas palavras,
Você pode me cortar com seus olhos,
Você pode me matar com seu ódio,
Mas ainda, como o ar, eu vou me levantar.

Minha sensualidade te perturba?
Te surpreende
Que eu dance como se tivesse diamantes
Entre as minhas coxas?

Saindo das cabanas da vergonha da história
Eu me levanto
De um passado enraizado na dor
Eu me levanto
Sou um oceano negro, vasto e pulsante,
Crescendo e jorrando eu carrego a maré.

Abandonando as noites de terror e medo
Eu me levanto
Para um amanhecer maravilhosamente claro
Eu me levanto
Trazendo as dádivas que meus ancestrais me deram,
Eu sou o sonho e a esperança dos escravos.
Eu me levanto
Eu me levanto
Eu me levanto.

Maya Angelou
Poesia Completa. Tradução de Lubi Prates. Editora Astral Cultural.

Maya Angelou e Billie Holiday, desenho de Edward Sorel