A ADAPTAÇÃO LITERÁRIA PARA CINEMA E TELEVISÃO

por Jorge Furtado
29/08/2003

Palestra na 10ª Jornada Nacional de Literatura, Passo Fundo/RS

O tema do nosso encontro hoje é a transposição da literatura para a linguagem audiovisual. Vou comentar o assunto sob dois pontos de vista: o primeiro, técnico ou estético. O segundo, ético. Quanto aos aspectos estéticos, há muitas diferenças entre a linguagem escrita e a linguagem audiovisual. Eu vou tentar lembrar aqui três dessas diferenças.

A primeira e mais evidente diferença é que na linguagem audiovisual toda a informação deve ser visível ou audível. Isto parece uma obviedade ululante mas quem já tentou fazer um roteiro sabe como é difícil evitar a tentação de escrever: João acorda e lembra de Maria. Isso é muito fácil escrever e muito difícil de filmar. Palavras como pensa, lembra, esquece, sente, quer ou percebe, presentes em qualquer romance, são proibidas para o roteirista, que só pode escrever o que é visível. A literatura, que a todo momento nos remete ao fluxo de consciência dos personagens, pode utilizar todas essas palavras. Mas não necessariamente precisa utilizar todas essas palavras, o que faz com que alguns textos sejam muito mais facilmente adaptáveis do que outros.

A segunda diferença fundamental, e que também diz respeito à natureza dessas linguagens, pode ser analisada a partir de uma frase de que Umberto Eco: “toda a narrativa se apóia parasiticamente no conhecimento prévio que o leitor tem da realidade”. A metamorfose de Kafka começa com a seguinte frase: “Ao despertar após uma noite de sonhos agitados Gregor Samsa encontrou-se em sua própria cama transformado num inseto gigantesco”. Esta frase, talvez a melhor primeira frase da história do romance, disse tudo que é preciso saber para que a história comece. Cada um de nós, leitor, imaginou a sua própria cena, o escritor nos informa apenas aquilo que ele julga ser necessário, o leitor imagina todo o resto.

Já os cineastas - e os roteiristas - precisam fazer grande parte do trabalho do leitor. Qual a cor do inseto? É uma cama de madeira ou de metal? Qual a cor das paredes do quarto? Como é a luz do quarto? Há uma janela? A luz entra pela janela? Através da persiana ou através das cortinas? Como é o piso desse quarto? É de madeira ou está coberto por um tapete? A cama tem lençóis? Há outros móveis no quarto? Mesmo que muitas dessas perguntas sejam respondidas na seqüência do livro o cineasta precisa imediatamente tomar essas decisões, adiadas pelo autor. Lendo, cada leitor crias suas próprias imagens, sem custos de produção e limites de realidade. É natural que se decepcione quando veja as imagens criadas pelo cineasta e diga: “gostei mais do livro”.

A ordem em que as informações são liberadas no cinema ou na literatura são inteiramente diferentes. Lembro de um trecho de um livro de Dashiel Hammet, o mais filmável dos romancistas, em que Sam Spade descreve sua entrada numa casa: “Havia duas mulheres na sala. As duas estavam nuas mas só uma estava morta”. A frase de Hammett nos surpreendente pela avalanche de informações. Hammet primeiro nos informa que há duas mulheres na sala, depois nos informa que estão nuas e em terceiro lugar nos informa que uma delas está morta. A adaptação desta cena para o cinema quase que inevitavelmente perde o caráter surpreendente desta escolha ao revelar simultaneamente a existência das duas mulheres, o fato de estarem nuas e o fato de uma delas estar morta.

O terceiro aspecto técnico a ser considerado é que o cinema, como a música, é uma forma de expressão em que o tempo de apreensão das informações é definido exclusivamente pelo autor. Cada um de nós estabelece o próprio ritmo de leitura. Cada um de nós passa o tempo que quiser observando um quadro. Mesmo no teatro, o ator pode esperar que o público pare de rir de uma piada para dar seqüência ao texto. Mas um filme de 1 hora e 32 minutos é visto por qualquer espectador em 1 hora e 32 minutos.

Além destas três, poderíamos lembrar ainda de muitas outras diferenças. O cinema, ao contrário da literatura, é um evento, um ritual para o qual nos vestimos, saímos de casa e pagamos ingresso, um ritual compartilhado com outros espectadores. O cinema é um trabalho coletivo, ao contrário do texto, quase sempre expressão de um indivíduo. A linguagem cinematográfica, ao contrário do texto, é intuitiva, ninguém precisa ser alfabetizado para entender um filme. Mas é importante lembrar que o cinema não é só literatura. Ele mistura fotografia, teatro, música, dança pintura e literatura, criando a sua própria linguagem, que está em constante transformação, como qualquer linguagem. Muitos outros elementos, não presentes na literatura são utilizados pela linguagem do cinema, como os movimentos de câmera, os enquadramentos, a música, a cor e a luz. Cabe ao roteirista agregar esses elementos ao filme de modo a ser fiel - ou não - ao espírito do texto.

A linguagem audiovisual, tendo como base a literatura ou não, tem dado, neste século de existência, uma enorme contribuição ao acervo do conhecimento humano. Eu não precisaria aqui lembrar de como o cinema e também a televisão contribuíram para compartilhar as diferentes visões de mundo, de diferentes épocas e países. Vários livros sagrados nos alertam do perigo de criar imagens, mas qualquer raciocínio no sentido de uma contra-revolução da imagem acaba, em extremo, na imperdoável explosão das estátuas de Buda no Afeganistão.

As relações entre o cinema e a literatura são antigas e nem sempre amistosas. Antes da invenção do direito autoral, em 1910, os cineastas simplesmente roubavam histórias dos livros. Em 1911, Gabriele d’Annunzio vendeu toda a sua obra, já escrita e futura, para uma empresa cinematográfica italiana. Desde lá, milhares de livros têm sido adaptados para o cinema. Segundo Ely Azeredo, a Bíblia é o livro campeão de adaptações, com incontáveis filmagens. O segundo lugar é de Sir Arthur Conan Doyle, com mais de 200 versões de Sherlock Holmes. Em terceiro lugar aparece o Drácula de Bram Stoker.

Esta é uma platéia de leitores e professores, mas duvido que algum de vocês já tenha ouvido falar em Cornell Woolrich. No começo dos anos 50 ele publicou numa revista barata de contos policiais uma história intitulada “Tinha que ser assassinato”. Em 1954 o conto de Woolrich se tornaria um dos maiores clássicos da história do cinema, adaptado por Alfred Hitchcock com o título de “Janela Indiscreta”. Isso não me faz concordar com a divertida afirmação de Hitchcock de que “livros ruins é que dão filmes bons”. Dashiell Hammet e James Cain eram grandes escritores e seus livros deram ótimos filmes. James Ellroy é um ótimo escritor e seu livro “Los Angeles, Cidade Proibida” virou um ótimo filme. Shakespeare, para citar o maior dos autores, já foi transformado em pelo menos três grandes filmes: Ran (baseado em Rei Lear) e Trono manchado de sangue (baseado em Macbeth), duas adaptações de Akira Kurosawa, além do Hamlet de Laurence Olivier.

Mas é certo que a boa literatura não necessariamente dá bons filmes. William Faulkner, além de nunca ter virado um bom filme, trabalhou em Hollywood e foi um roteirista medíocre. Dostoievski, Kafka, Cervantes, Proust, Machado de Assis ou Eça de Queirós ainda não entraram para a história do cinema.

A literatura é uma forma de expressão muitíssimo mais complexa que o cinema, não só pelo seu acesso fácil ao inconsciente alheio, mas também porque começou quatro ou cinco mil anos antes. Se achamos que “Cidadão Kane” é um clássico por ter sido o seu “valor posto à prova do tempo”, o que dizer de Homero, Aristóteles, Montaigne, Shakespeare e Cervantes?

O cinema sempre aprendeu com a literatura, não só filmando suas histórias mas também reproduzindo seu procedimentos narrativos. Usando como guia o livro “Mimesis”, de Erich Auerbach, poderíamos fazer um paralelo entre os modos de representação da realidade na literatura e no cinema. De Homero o cinema aprendeu o flash-back e a idéia de que cronologia é vício. De Petrônio, o poder dramático da prosódia e a subjetividade do discurso. De Dante, a vertigem dos acontecimentos, a rapidez para mudar de assunto. De Boccaccio, a idéia da fábula como entretenimento. De Rabelais, os delírios visuais e certeza de que a arte é tudo que a natureza não é. De Montaigne, o esforço para registrar a condição humana. De Shakespeare, Cervantes (e também de Giotto) a corporalidade do personagem e o poder da tragédia. Da comédia de Moliére o cinema aprende que a história é uma máquina. Voltaire ensinou a decupagem, a técnica do holofote e o humor como forma avançada da filosofia. De Goethe o cinema (e também a televisão) aprendem o prazer do sofrimento alheio. De Stendhal e Balzac vem o realismo, a narração off e o autor como personagem. De Flaubert, vem a imagem dramática e o roteiro como tentativa de literatura. Brecht é o pai do cinema-teatro e a idéia de que realismo tem hora.

Eu, é claro, não fui o primeiro a buscar na literatura a chave para a compreensão dos procedimentos narrativos do cinema. Eisenstein foi fundo sobre o tema no seu texto “Dickens, Griffith e nós”:

“Deixemos Dickens e toda a plêiade de antepassados, que remontam inclusive aos gregos e a Shakespeare, lhes lembrarem mais uma vez que ambos, Griffith e nosso cinema, provam que nossas origens não são apenas as de Edison e seus companheiros inventores, mas se baseiam num enorme passado cultural; cada parte deste passado, em seu momento da história mundial, impulsionou a grande arte da cinematografia. Que este passado seja uma reprovação às pessoas inconscientes que trataram com arrogância a literatura, que contribuiu tanto para esta arte aparentemente sem precedentes e é, em primeiro lugar, e no mais importante: a arte de observar - não apenas ver, mas observar.” Eisenstein, em “A Forma do Filme”.

Claro, é disso que se trata, no cinema, na literatura ou em qualquer forma de expressão: a arte de observar. Observar a vida e traduzi-la em obra, seguindo o conselho de Stravisky: “arte requer comunhão”.

Para falar sobre o os aspectos éticos da relação do cinema com a literatura, eu começo lembrando uma frase de Thomas Edison, um dos pioneiros do cinema: “estou trabalhando numa invenção extraordinária e em pouco tempo as crianças não precisarão ler nenhum livro”.

Este encontro em Passo Fundo, e o interesse das milhares de crianças que participam da Jornadinha, é uma prova de que a profecia de Edison, felizmente, não se cumpriu. Mas é certo que a necessidade de ouvir histórias e contar histórias, que até o século dezenove era em grande parte suprida pela literatura (e, para a maioria analfabeta, pelo teatro) foi substituída em grande parte pelo cinema e depois pela televisão. Quem tem filhos sabe da dificuldade de convencê-los a enfrentar a longa, silenciosa e solitária leitura de um romance. Mas quem ama realmente seus filhos e já sentiu pelo menos uma vez o prazer da leitura, não desiste de tentar. E quase sempre tem sucesso.

O cinema aprofundou uma transformação chamada por Daniel Boorstin de “a revolução gráfica”. Ela começou nos EUA no século dezenove. Graças às novas tecnologia de impressão de fotos, os jornais foram inundados de imagens. Alguns críticos começaram a se queixar do excesso de ilustrações da imprensa. O cinema, surgido no final do século dezenove e desenvolvido no início do século vinte, elevou os efeitos desta revolução ao cubo. Na opinião de Boorstin, o que esta enchente de imagens tem de mais preocupante é que ela possa incentivar apenas o pensamento imagético, “pensar em termos de uma imitação ou representação artificial da forma externa de qualquer objeto e, sobretudo, de uma pessoa”.

Este pensamento nasce à custa do pensamento ideal: “pensar em termos de alguma idéia o valor ao qual se pode aspirar.” Neal Gabler afirma que “a profusão de imagens nos direciona para o aqui e o agora, para algo imediatamente útil. O ideal nos direciona para algo acima e além, para algo cuja utilidade não é aparente de pronto”. Para Boorstin a revolução gráfica foi também uma revolução moral porque substituía a aspiração pela gratificação.

Neil Postman acrescenta uma observação a isso: o texto impresso exige raciocínio. Empregar a palavra escrita significa seguir uma linha de pensamento que exige um poder considerável de classificação, de inferências e argumentação. Uma sociedade baseada sobretudo no texto escrito seria aquela em que a lógica, a ordem e o contexto predominam. Numa sociedade baseada em imagens, por outro lado, lógica e contexto perdem terreno para a gratificação imediata. A revolução da imagem transformou nossa maneira de pensar. Não seria o caso de afirmar, como Godard, que o cinema foi um erro, mas é fundamental reconhecer que ele supre parcialmente nossa necessidade de compartilhar histórias e ocupa um espaço antes preenchido pela literatura.

É importante lembrar, a favor da transposição da literatura para o cinema ou para a televisão, que todas as obras adaptadas aumentam em muito suas vendas. Eu não sei se as pessoas lêem os livros mas sei elas compram os livros, o que é bom. Certamente, algumas lêem os livros. O simples fato de incentivar a leitura justifica as adaptações. E já que o tema da Jornada é a inclusão, é preciso lembrar que somos o país de maior concentração de renda do mundo, o campeão planetário da desigualdade. E se temos sem-terras, sem-teto e sem-emprego, temos também milhões de sem-livros e de sem-cinema. A televisão, presente em quase todas as casas brasileiras, assume assim um papel fundamental de difusão cultural. É pena que seja tão raramente utilizada com qualidade. Os milhões de brasileiros, sem livros e sem cinema, merecem, pelo menos, uma televisão melhor. Como afirma Jean-Claude Bernardet, é fundamental “entender a dramaturgia como um laboratório social porque é através dela que pesquisaremos e aprofundaremos as nossas relações com o social”. É na sua produção cultural que um povo se reconhece e, se reconhecendo, pode se transformar.

Para terminar quero deixar registrado, especialmente aos pais presentes, de que as narrativas audiovisuais, por melhores que sejam, não substituem a importância e o prazer da leitura. Só a leitura produz escritores e só a leitura produz bons cineastas. O cinema e a televisão criam imagens, a leitura cria imaginação.

Jorge Furtado
Passo Fundo, 29 agosto de 2003

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Bibliografia:

AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura universal. Editora Perspectiva, 1992.

AZEREDO, Ely. A tentação da literatura na tela. Texto para o Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 2002.

BERNARDET, Jean-Claude. A prática da dramaturgia como laboratório social. Texto para o jornal O Estado de São Paulo, 8 de setembro de 2002.

BOORSTIN, Daniel J. Os Criadores. Civilização Brasileira, 1995.

ECO, Umberto. Seis passeios pelo bosque da ficção. Companhia de Letras, São Paulo, 1994.

ECO, Umberto. Viagem na Irrealidade Cotidiana. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1984.

ECO, Umberto. Lector in Fábula. Coleção Narratologia, Editora Perspectiva, São Paulo, 1976.

ECO, Umberto. Sobre literatura. Editora Record, São Paulo, 2002.

EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Jorge Zahar, 2002.

GABLER, Neal. Vida, o filme: como o entretenimento conquistou a realidade. Companhia de Letras, São Paulo, 2000.

MAMET, David. Três usos da faca: sobre a natureza e a finalidade do drama. Civilização Brasileira, 2001.

POSTMAN, Neil. Technopoly: the surrender of culture to technology. New York, 1992.

XAVIER, Ismail. O Discurso Cinematográfico. Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1977.

(C) Jorge Furtado
agosto de 2003