A CHUVA, O CINEMA E A CARA-DE-PAU DO MALUF

por Giba Assis Brasil, 1995

Tentando se eximir de responsabilidade pela chuva que provocou desabamentos e matou mais de 40 pessoas na periferia de São Paulo em fevereiro, o secretário de obras de Maluf, Reynaldo de Barros, criou uma frase histórica, daquelas que merecem o bronze: “Fazemos obras para beneficiar a população que paga impostos e tem o direito de exigir serviços.”

Em outras palavras: se é a população dos Jardins quem paga (o que, pela quantidade de impostos indiretos que existem no Brasil, já é discutível), é nos Jardins que o dinheiro deve ser aplicado. Assim, free-ways, praças e shopping-centers não são apenas prioridade sobre saneamento básico, esgoto pluvial e remoção de áreas de risco, mas passam a ser o próprio objetivo de uma prefeitura. Uma tal noção distributiva (tirar principalmente dos ricos para dar aos ricos) vai além do conceito neoliberal de “estado mínimo” e pode mesmo chegar à idéia do “estado inútil”: afinal, pra que serve uma administração? Por outro lado, quem é mesmo que “tem o direito de exigir serviços”?

Há várias respostas possíveis. Enquanto Porto Alegre, por exemplo, inventa o Orçamento Participativo, Maluf talvez esteja recriando o conceito original de imposto, em que o rendimento do trabalho dos servos financiava os bailes e banquetes do Rei. E a “patuléia” (como diz o Paulo Francis) que morra afogada, soterrada, desabrigada.

Como se vê, a História não acabou: o exercício da política continua sendo a tomada diária e contínua de decisões: levar água encanada às vilas ou desafogar o trânsito no centro? resolver o problema de caixa da Previdência ou distribuir remédios aos hospitais? aumentar o salário mínimo ou socorrer os pobres bilionários que perderam dinheiro na bolsa mexicana? Maluf e seus asseclas não são piores que muitos outros administradores: apenas têm a cara-de-pau de explicitar os seus critérios.

E o cinema? Bom, o cinema, como se sabe, é uma brincadeira cara, consumida por uma população cada vez menor (já foi divertimento exclusivo da classe trabalhadora, na América de 1905-1915) e fabricada por uma gente bem mais próxima dos “merecedores de serviços” do Maluf que dos freqüentadores de reuniões do Orçamento Participativo. Normalmente visto como uma indústria altamente lucrativa, o cinema, enquanto atividade econômica tomada isoladamente, só dá dinheiro em três países no mundo: Estados Unidos, Índia e Hong Kong. O que nos leva a quatro perguntas óbvias, que vamos tentar responder de forma esquemática, incompleta e tendenciosa - como este artigo, se é que vocês ainda não notaram.

Pergunta 1: Por que o cinema dá dinheiro nestes três países?

Nos Estados Unidos, porque o enorme capital acumulado no início do século permitiu a criação de um mercado exibidor planetário totalmente voltado para a exibição de seus filmes. Na Índia, porque uma barreira cultural histórica faz com que os indianos sejam os únicos espectadores do mundo a preferirem o cinema “nacional” em detrimento do norte-americano. Em Hong Kong, por ter se especializado em produzir um único tipo de produto (o filme de “artes” marciais), relativamente barato e de fácil aceitação no mercado internacional.

Pergunta 2: Por que o cinema não dá dinheiro nos outros países?

Porque é caro. Porque o cinema norte-americano estabelece um padrão de “qualidade” - que envolve desde o evidente preparo de seus profissionais até a glamurização de suas estrelas, passando por efeitos especiais, truques de roteiro, etc. - que nenhum outro país consegue igualar, ou mesmo chegar perto. E principalmente porque o mercado de exibição (isto é, as salas de cinema) do mundo inteiro existe e se mantêm em função de um único objetivo: exibir filmes de Hollywood.

Pergunta 3: Por que as pessoas insistem em fazer cinema nos países onde ele não dá dinheiro?

Porque o cinema é uma linguagem, e as pessoas têm necessidade de se expressar, e algumas pessoas investem parte de suas vidas para aprender a utilizar essa linguagem (e muitas não aprendem nunca, mas isso é outra história) e, depois, acreditam que têm direito e obrigação de fazer filmes. Além disso, claro, fazer cinema é uma atividade pessoalmente gratificante, atraente, interessante - e, como dizia um amigo meu, “isso come gente”.

Pergunta 4: Como ainda é possível fazer cinema onde ele não dá dinheiro?

Se a pessoa for rica, jogando o seu dinheiro fora. Se a pessoa tiver amigos influentes, jogando fora o dinheiro público. E, se o país entender que precisa de cinema (porque o cinema é uma linguagem, porque a questão cultural é uma questão de identidade coletiva e em conseqüência também uma questão social, etc.), fazendo um uso não-malufiano dos conceitos de imposto, distributividade, função social.

É assim e é por isso que se faz cinema na Alemanha: retendo uma porcentagem da bilheteria dos filmes norte-americanos e aplicando-a na produção de filmes alemães. É assim e é por isso que se faz cinema na Argentina: taxando o lucro do mercado de vídeo dos filmes de Hollywood. É assim e é por isso que se faz cinema na França: obrigando por lei as televisões a fazerem filmes em sistema de parceria (se o cinema isoladamente não dá dinheiro, isso não quer dizer que ele continue deficitário quando associado à televisão, ao vídeo, ao turismo, etc.). É assim na Espanha, na Inglaterra, na Austrália - em todos os países onde se tem convicção de que é necessário fazer cinema.

E no Brasil? Aqui, como disse brilhantemente Caetano Veloso, “tudo parece que ainda é construção e já é ruína”. A cada novo governo, a discussão recomeça, aparentemente do zero. Novas leis mudam as regras do jogo a cada quatro ou cinco anos, e muitas vezes (coisa que só acontece no Brasil) “não pegam”. Organismos encarregados de apoiar a produção surgem do nada e desaparecem em seguida. A televisão, longe de ser um bem público, é um negócio de nove famílias. E o que é pior: tudo acontece como se a sociedade, a população, o público não tivesse nada a ver com essa questão essencial: afinal, o país precisa de cinema?

Sei que alguns colegas têm dificuldade de colocar as coisas dessa forma, mas para mim se trata exatamente disso: ou a população brasileira, de alguma maneira, manifesta a sua vontade de que o cinema continue existindo (ou volte a existir) no país, ou não há justificativa moral para qualquer “retomada”. A tática distributiva pressupõe, evidentemente, uma estratégia de consenso - que certamente não virá de Washington. Afinal, como diria o Maluf, quem tá na chuva é pra se molhar.

(c) Giba Assis Brasil, 1995
(17 de fevereiro de 1995 - publicado originalmente no jornal Usina do Porto, Porto Alegre)