A MÁGICA DA IMAGEM

por Jorge Furtado
dezembro de 1995

“Não farás para ti imagem (…) nem figura alguma do que há em cima do céu e do que há em baixo da terra, nem do que há nas águas debaixo da terra. Não adorarás tais coisas, nem lhes prestarás culto.” Livro do Êxodo, Capítulo 20, Versículo 4.

De todas as leis divinas, nenhuma tem sido mais ignorada do que esta. Muitos milhares de anos antes do Deus de Abraão falar a Moisés, o homem já rabiscava o teto de sua caverna tentando aprisionar a mágica da imagem. Nós estamos aqui, milhares de anos depois, discutindo o seu futuro. Maomé também adverte os fazedores de imagem que, por tentarem imitar a Deus, único que pode criar seres vivos, deverão ser severamente punidos no dia do Juízo. “Chamados a dar vida às suas criaturas e falhando”, avisa o profeta, “serão condenados”. Será a high-definition capaz de enganar o criador, nos garantindo a absolvição e o paraíso? Não perca a resposta desta e de muitas outras eletrizantes perguntas neste mesmo canal, no dia do juízo final que, esperamos, não esteja tão próximo.

Desde o momento em que, há 15 mil anos, pigmentos naturais coloriram as cavernas de Altamira, até este exato segundo, quando feixes de elétrons atravessaram cabos de fibra óptica para se recompor em figuras no tubo da sua televisão, a verdadeira pergunta a ser feita aos hereges fazedores de imagem não é, nem nunca foi, como fazê-las. A pergunta é: por que fazê-las?

Imagens dão muito dinheiro, é verdade, e esta tem sido a maior motivação dos hereges. São uma grande indústria e há um número cada vez maior e mais diversificado de compradores de imagens. Dinheiro é importante, mas não é tudo.

A criação autoral, processo estranho ao pintor de Altamira, sempre contém alguma dose de vaidade. O herege fazedor de imagens, como o alpinista que deixa sua bandeira no topo da montanha ou o idiota que rabisca seu nome a canivete nos monumentos históricos, afirma sua presença no mundo da maneira mais simples e primitiva: “eu estive aqui”. A vaidade também é importante. Mas também não é tudo.

Podemos fazer imagens para enganar quem as vê. Os deuses e seus profetas muito nos alertaram: elas são boas para isso. Imagens que enganam são fascinantes: acalmam o espírito, distraem, fazem passar o tempo ou, como definiu Hugo Mauerhofer, aliviam “o fardo da vida cotidiana e servem de alimento à nossa imaginação empobrecida”. Imagens que enganam nos transformam apenas transitoriamente. Dá tempo para sair com os amigos e comer uma pizza, aproveite.

Podemos também fazer imagens para tomar posse da alma de seu modelo. Acho que o pintor de Altamira pensava assim. Ao imobilizar sua caça no desenho, ele acentuava seu domínio sobre o animal, perpetuava seus feitos de caçador e, principalmente, tornava-se magicamente proprietário de sua imagem. Gombrich conta que um pintor europeu desenhava alguns animais de uma aldeia africana quando foi questionado pelos nativos apreensivos: “Se você levar nossos animais, como iremos viver?”. Se esta ilusão é possível na pintura, é muito mais vigorosa no cinema e na televisão. A ilusão de volume das figuras que se movem uma sobre as outras, a extraordinária semelhança com o modelo, a cumplicidade do espectador que quer acreditar no jogo ficcional, processo que Umberto Eco chama de “suspensão da descrença”, tudo contribui para que as imagens em movimento criem uma perfeita simulação do real.

Esta simulação do real tem sido desde sempre o mais forte atrativo da mágica da imagem e também o seu pior efeito colateral. Trancados em nossas cavernas, cada vez mais assistimos a vida pela tela da televisão. É uma vida mais segura, com limites de tempo e espaço estabelecidos pelo controle remoto que está em nossa mão. Convivo transitoriamente com as imagens que o tubo me oferece, sem correr riscos. Posso me emocionar com a família que perdeu sua casa numa enchente num país distante, mas pouco ou nada sei sobre meu vizinho. Posso sofrer com a jovem abandonada pelo namorado na telenovela, vibrar com o jogador de futebol que marcou o gol decisivo da partida e desejar ardorosamente o copo espumante de cerveja no filme publicitário. Mas se qualquer destes sentimentos se tornar incômodo ou enfadonho, basta mudar de canal. É muito simples. Mas não é real.

Uma geração inteira que conhece a vida quase que exclusivamente pelo tubo de imagem está agora chegando ao poder. Novas tecnologias levam imagens cada vez mais perfeitas a cada vez mais gente. E o poder das imagens nunca foi tão vasto. Este parece ser um ótimo momento para que nós, os hereges fazedores de imagem, paremos para nos perguntar: o que fazer com elas?

Quando, como criadores, pensamos no futuro da imagem, não podemos esquecer que é fundamental que a grande rede de transmissão de imagens sirva para aproximar as pessoas, para democratizar o acesso a informação, para eliminar fronteiras. Não é esta a tendência que se tem percebido. No Brasil, onde há a pior distribuição de renda do planeta, onde os dez por cento mais ricos detém cinquenta e um por centos das riquezas do país, algumas poucas famílias que há décadas mantém o controle sobre as redes de televisão, jornais e rádios, agora são também proprietárias da telefonia celular e das redes de televisão à cabo. Uma casta dominante que centraliza o poder sobre as fontes de informação e exerce extraordinária influência sobre a política, a economia e a cultura de um país não é uma exclusividade brasileira. Será possível esperar que novas imagens, criadas para dar ao ser humano uma visão mais rica de si mesmo e de seu semelhante, sejam distribuídas por uma vasta rede tramada para cristalizar desigualdades? Qualquer debate sobre o futuro da criação de imagens deve passar necessariamente pelo debate sobre a democratização dos meios de distribuição destas imagens.

Creio que a ditadura das imagens tem duas grandes dívidas com a minha e com as futuras gerações. E estas duas dívidas apontam para dois dos muitos caminhos a serem percorridos pela imagem no século vinte e um. A primeira dívida é com o mundo real e seus habitantes. A mídia, para chamar nossa atenção e garantir grande audiência, desfila ante nossos olhos uma infinidade de seres humanos destacados do anonimato por seus feitos extraordinários: este matou a mãe a facadas; aquele outro bateu recorde mundial de demolição de pianos com o uso das mãos; este é um sósia perfeito de Michael Jackson; este é o próprio Michael Jakson. Trancados em nossas cavernas, estes seres extraordinários, ou pelo menos muito estranhos, tornam-se os poucos seres humanos que conhecemos. Onde está o agricultor que, todos os dias, produz o nosso alimento com seu trabalho? Onde está a operária, o estudante, a dona de casa? O mundo das imagens tem uma enorme dívida com o ser humano comum. Creio que esta dívida pode ser paga, agora que novas tecnologias permitem mais opções e, principalmente, mais tempo para as imagens. Pressionados pela concorrência, os poucos canais de televisão VHF acabavam todos por se parecer, fragmentando cada vez mais suas imagens, tentando, como um vendedor ambulante, chamar nossa atenção aos gritos. Hoje, e cada vez mais no futuro, a imensa variedade de canais nos permite vislumbrar o mundo real com mais paciência, aprofundar conteúdos, e até conviver mais longamente com um ser humano comum em seus afazeres diários. Ainda não é um ser humano real, mas ele começa a ficar mais parecido com o seu modelo. Tenho certeza que, num futuro próximo, o ser humano comum se tornará um importante fenômeno de mídia.

A segunda dívida do mundo das imagens é com a palavra. Nascidas juntas no teto da caverna, imagens e palavras traçaram caminhos próprios. E se hoje as imagens encontraram seu altar nas novas tecnologias de cinema e vídeo, a palavra continua tendo na literatura, especialmente na poesia, a sua catedral. As grandes descobertas de nossos antepassados, suas mais profundas visões do mundo que nos cerca e de nós mesmos, nos foram deixadas como um tesouro de palavras. Perto deste tesouro, o mundo das imagens não passa de um punhado de moedas de cobre. Mas há uma geração inteira, ou quase inteira, que mal conhece o mundo das palavras, ou só conhece as palavras como escravas submissas da imagem. O mundo das imagens tem uma enorme dívida com a poesia. Penso ser esta também uma dívida pagável. A crescente qualidade das imagens e, mais uma vez, a multiplicidade de opções, permitem uma maior experimentação de linguagens. Que esta busca aproxime palavras e imagens, na procura de uma poética da imagem.

Mas esta busca ainda não responde a pergunta: por que fazer imagens? Acho que a mais nobre motivação dos hereges é a transformação do homem. Podemos fazer imagens para transformar quem as vê e, em conseqüência, o mundo. A convivência, mesmo que temporária e parcial, com muitas outras vidas, ou com um universo poeticamente impregnado de idéias, um universo inteiramente novo construído pelo cinema ou pela televisão, é capaz de transformar o espectador e, por conseqüência, transformar o mundo. Por enquanto, é este o nosso limite.

Pois o que realmente buscamos como criadores, para além das fronteiras da utopia, é roubar ao sol o fogo da criação para entregá-lo a criatura. E então este ser, criado a nossa imagem e semelhança, poderá olhar a si mesmo e descobrir que está nu.

(C) Jorge Furtado
palestra proferida na mostra “A TV do futuro”, Tóquio, dezembro de 1995