ESPAÇOS DO CINEMA GAÚCHO

por Giba Assis Brasil
junho de 1993

PÊSSEGOS

Em 1972, no saudoso suplemento literário do Correio do Povo, o professor e pensador portoalegrense Aníbal Damasceno Ferreira publicou um pequeno ensaio intitulado OS PÊSSEGOS DE SAINT-HILAIRE, onde eram colocadas no devido lugar algumas reflexões até então feitas a respeito daquilo que hoje chamamos “o cinema gaúcho”.

Para começar, perguntava-se Damasceno se o cinema gaúcho de fato existiria, e chegava a comparar Porto Alegre à Tarascón de Tartarin e Daudet, onde, embora a fauna fosse paupérrima, todos se diziam caçadores e freqüentavam clubes de caça. Por aqui, “Teixeirinha ainda não havia se pilchado para rodar o CORAÇÃO DE LUTO e já por toda parte proliferavam os cursinhos de cinema, os debates, as conferências e os cineclubes”.

Os pêssegos do título referiam-se a uma observação feita pelo viajante Auguste de Saint-Hilaire (1820) a respeito da irresponsabilidade de nossos antepassados, incapazes de “faire à l’avenir le plus léger sacrifice” (fazer qualquer sacrifício ao futuro), e que por isso acabavam sempre comendo os frutos antes que estivessem maduros. Pouco mais de vinte anos atrás, os pêssegos verdes eram os filmes de Teixeirinha e José Mendes, escassos de “qualidade artística” mas, acreditava-se, destinados a dotar o estado da infra estrutura cinematográfica necessária a vôos mais pretensiosos. “Fominhas”, segundo Aníbal, eram os cineastas intelectuais (tarasconianos ou não), decididos a “libertar o cinema gaúcho da grossura”.

Passadas duas décadas, o ciclo representado pelos filmes de bombacha e chimarrão se fechou em definitivo, e até mesmo alguns pêssegos maduros foram experimentados. Mas a questão inicial o cinema gaúcho existe, concretamente, como processo, e não apenas como coleção de episódios isolados? permanece no ar, apesar do sucesso relativo de alguns filmes longos feitos nos anos oitenta, do sério inventário crítico publicado por Tuio Becker e mesmo dos prêmios internacionais conquistados pelos curtas-metragens de Jorge Furtado e seus parceiros a partir de 1986.

PROJETO

Mais recentemente, em 1990, num seminário a respeito da “Estética do cinema gaúcho”, o crítico Jean-Claude Bernardet simplesmente negou-se a reconhecer essa categoria. Segundo ele, as qualidades que podiam ser encontradas em filmes como DEU PRA TI ANOS 70 e ILHA DAS FLORES eram qualidades de filmes brasileiros e de filmes contemporâneos à procura de um espaço, e o fato de terem sido realizados no Rio Grande do Sul era de natureza geográfica ou político-cinematográfica, jamais estética.

Decepção geral. Nós, cineastas provincianos, certamente esperávamos que o crítico de São Paulo que tanto nos ensinou a respeito de cinema brasileiro se dispusesse a encontrar os sinais, que nós sabíamos não ter colocado em nossos filmes, mas que definiriam aquilo que nós nunca tínhamos conseguido definir: um projeto - estético, filosófico, ideológico, culinário, o que fosse, mas um projeto - para o nosso cinema.

E, se esse projeto nunca surgiu, foi simplesmente porque não tinha como ter surgido. Creio não precisar voltar muito no tempo para concluir que, a qualquer momento da história do (vá lá) cinema gaúcho, um projeto totalizante teria sido pretensão, bravata, gauchada: comer os pêssegos verdes e lamber os dedos para a galera. Mas acreditar que o crítico pudesse descobrir o que nós não fomos capazes de fazer foi ainda pior: correspondeu ao nosso ancestral anseio separatista, de proclamação não da república farroupilha, mas da província autônoma da pessegada.

O seminário, promovido pela Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre, foi de histórica importância. Se não gerou respostas, suscitou dúvidas, fez os cineastas pensarem em conjunto sobre a sua atividade e os seus filmes, geralmente recebidos até pelos próprios colegas com um misto de condescendência e desinteresse, e lançou no ar uma idéia-chave, também extraída da palestra de Bernardet: o cinema gaúcho seria uma forma de expressão à procura de um espaço. Ou, segundo a formulação dada pelo professor João Massarolo no título de sua tese sobre o cinema gaúcho: uma filmografia em busca de UM LUGAR AO SUL .

LUGARES

Lugar que já foi o Passo da Estiva, próximo a Pelotas, onde Francisco Santos rodou O CRIME DOS BANHADOS (1914), primeiro longa-metragem do estado - e do país! Lugar que se multiplicou pelas fazendas e pequenas cidades do interior, onde Eduardo Hirtz, Eduardo Abelim e Eugênio Kerrigan encenaram seus filmes pioneiros. Lugar que começou a se definir como espaço tipicamente gaúcho nos títulos dos filmes de Carlos Comelli: PAMPA SANGRENTO (1923) e UM DRAMA NOS PAMPAS (1927).

Espaço que não chegou a ser urbano, mas que se deslocou para o litoral, para discutir a relação cidade/praia através da história do desconhecido que chega a uma comunidade de pescadores e destrói seu equilíbrio, no clássico VENTO NORTE (1952), de Salomão Scliar com roteiro de Josué Guimarães, nosso primeiro longa sonoro.

Mas espaço que voltou ao pampa para constituir o mais duradouro e produtivo episódio da história do cinema gaúcho: o tal “ciclo da bombacha e do chimarrão”, que num período de 15 anos rendeu 25 filmes de longa-metragem (12 deles com Teixeirinha), a partir de CORAÇÃO DE LUTO (1966). Que não chegou a criar qualquer forma mais duradoura de infra-estrutura, mas que teve alguns inquestionáveis sucessos de bilheteria, inclusive em outros estados, como PÁRA, PEDRO (1969), MOTORISTA SEM LIMITES (1970) e ELA TORNOU-SE FREIRA (1972). E que, independentemente da qualidade dos produtos (do verdor dos pêssegos?), colocou o Rio Grande do Sul como o terceiro centro produtor de filmes do país.

MIGRAÇÃO

Verdade que alguns dos filmes realizados em pleno período do gauchismo tentaram encontrar novos espaços, fugindo do cenário pampeano. Mas também não conseguiram fixar-se na cidade, em geral terminando suas histórias à beira-mar - caso de UM É POUCO, DOIS É BOM (1971), de Odilon Lopez, e PONTAL DA SOLIDÃO (1974), de Alberto Ruschel. As exceções ficam por conta dos curtas-metragens, especialmente o poético A CIDADE E O TEMPO (1971), de Antônio Carlos Textor, e o irreverente PORTO ALEGRE, ADEUS (1979), de Jesus Pfeil. Ambos, como os títulos já sugerem, com uma certa nostalgia de uma Porto Alegre não mais existente, mesmo que ainda não devidamente retratada em imagens.

Assim, no início dos anos oitenta, quando uma nova geração de cineastas surge do super-oito e da televisão (e mais tarde, e em menor grau, também do vídeo e da publicidade), a radical inversão de espaços ainda está por ser feita. Porto Alegre, a nossa cidade presente, espaço de nossas vidas e lugar de nossas emoções, ainda é praticamente virgem às câmaras. É hora de comer os pêssegos com casca e tudo.

O pampa, de onde talvez tenham vindo nossos pais, deixara de ser referência cultural, na medida em que o latifúndio deixara de ter hegemonia econômica. Ou vice-versa, não importava: se não tínhamos um projeto, por um breve momento acreditamos que ao menos tínhamos um inimigo: ele era velho (nós, claro, tínhamos a vida pela frente), ele era provinciano (nós, claro, transpirávamos cosmopolitismo) e ele era rural (nós éramos talvez índios urbanos). Ele tinha um rosto, um triste rosto: o do “Laçador” de Caringi, perdido na entrada de Porto Alegre, o olhar fixo no horizonte, procurando o cavalo deixado pra trás ou uma tropa de novilhos que nunca passou por aqui, ou mesmo quem sabe um empreguinho qualquer na construção civil. E nós tínhamos uma palavra de ordem: Abaixo o imperialismo de Uruguaiana!

PORTO

DEU PRA TI ANOS 70 (1981) foi um longa-metragem feito em super-oito e exibido no circuito alternativo: salas especiais, escolas, faculdades, cineclubes. Os personagens (e o público) falavam portoalegrês e gravitavam em torno da Redenção. Quando o protagonista Marcelo, bêbado e chapado de juventude, tenta fugir da cidade (de si próprio), esbarra no mar e não consegue ir adiante, enquanto na trilha Nei Lisboa diz que “a gente vai e volta / a gente sai e solta / a mente / vai e volta / pro mesmo lugar”. Lançado simultaneamente, mas nos cinemas tradicionais, A FILHA DE IEMANJÁ, último filme de Teixeirinha, é o primeiro a terminar sem final feliz: a musa Mary Terezinha volta ao mar, seu reino, enquanto o seu amado chora - o público, nem sempre. Alguma coisa estava mudando, a partir de um choque maior do que o simples conflito campo/cidade: o cinema gaúcho procurava um novo espaço - para refletir, para filmar, para ser exibido, para tocar as pessoas.

Se DEU PRA TI terminava com Marcelo e Ceres discutindo alternativas de convivência no espaço de seu possível futuro lar, COISA NA RODA (1982) investigava a vida e as propostas de felicidade numa pequena comunidade urbana, e o herói de INVERNO (1983) acabava inventando uma companheira imaginária para resolver sua necessidade de viver sozinho com seu apartamento, com a cidade, com o frio. Embora ainda viessem a dar alguns frutos, o espaço do super-oito, e de um tardio sonho hippie portoalegrense, estavam esgotados.

Mas o espaço tradicional, o circuito exibidor de filmes de longa-metragem em 35 milímetros, quando foi tentado, já não era o mesmo dos tempos de Teixeirinha. Nele já não cabia sequer a competente produção carioca estrelada pelos nomes globais do momento e distribuída pela Embrafilme, muito menos as tentativas descentralizadoras que dialogavam apenas (e nem sempre) com o teatro e a música urbana locais. Não por acaso, indefine-se o espaço cênico dos filmes: tenta voltar à pequena cidade do interior na jovem crônica de costumes de VERDES ANOS (1984); em ME BEIJA (1984), começa fugindo com Raul, da cidade para a serra, e acaba fugindo com Vera, de volta ao Rio de Janeiro, frustrados ambos os personagens em suas intenções; esboça um oásis de encontro no “deserto de almas” de uma megalópole mais próxima de São Paulo que de Porto Alegre em AQUELES DOIS (1986). Assim como não deve ser por acaso (admitido aqui o princípio de que nada é por acaso) que o mais recente filme gaúcho feito “para o mercado”, O MENTIROSO (1988), opte com seus personagens pela estrada, espaço de passagem, de u-topia, de lugar nenhum.

ESPAÇO

E de repente, como um fruto maduro caído da árvore, surgiu o espaço do curta-metragem: uma lei que criou um mercado de exibição obrigatória para os curtas, e tornou viável a sua realização em bases mais ambiciosas. Que em pouco tempo possibilitou uma verdadeira renovação nas caras, temas e formas do cinema brasileiro. E que foi responsável direta pelo amadurecimento do, enfim, cinema gaúcho.

Cinema gaúcho que esteve em alguns lugares de difícil generalização: o trem rumo ao interior de “532” (1988) e o avião rumo ao exterior de AU REVOIR, SHIRLEI (1991), a simbólica ponte de BATALHA NAVAL (1992) e o metafórico palácio de O REINO AZUL (1989). Cinema que tentou retomar alguns velhos caminhos: contar a saga da colonização em MAZEL TOV (1990), dramatizar a vida no pampa em FESTA DE CASAMENTO (1990), individualizar o êxodo rural em ESTA NÃO É A SUA VIDA (1991).

Mas cinema que, antes de mais nada, tem retratado espaços urbanos: o supermercado em INTERLÚDIO (1983), o muro violentado em GRAFITE (1984), o táxi em PASSAGEIROS (1987), a feira hippie em NO AMOR (1982), o terreno baldio dos sem-teto em URBANO (1983), a prisão militar em O DIA EM QUE DORIVAL ENCAROU A GUARDA (1986), o hotel em VIVA A MORTE (1987), o estúdio de rádio em A HORA DA VERDADE (1988), o estádio de futebol em BARBOSA (1988), o teatro em A COISA MAIS IMPORTANTE DA VIDA (1990), o cinema em MEMÓRIA (1990), o depósito de lixo em ILHA DAS FLORES (1989).

E sobretudo o apartamento: espaço de construção da loucura em OBSCENIDADES (1987), espaço de êxtase e auto-destruição em VICIOUS (1988), espaço de conflito de identidade em BLECAUTE (1990), espaço da intimidade devassada em VISTA DA JANELA (1992), espaço de solidão absoluta em NESTA DATA QUERIDA (1985) e A VOZ DA FELICIDADE (1988).

Não, ainda não chegamos a um projeto de cinema, nem sequer a uma síntese satisfatória e não-rancorosa entre a história campeira, o presente citadino e essa alma inquieta que sempre volta a contemplar o mar. Mas talvez já possamos ao menos definir o espaço de nossos filmes como eminentemente urbano e geralmente portoalegrense.

Mas definir para quê? Em pouco tempo, tudo isso será parte do século passado: o do cinema, de acordo com um antigo cineasta baiano. Se, então, lembrarmos do que hoje constitui o projeto de vida de algumas pessoas (fazer cinema! e no Brasil!! e em Porto Alegre!!!) apenas como brincadeiras do tempo, registros como este talvez sirvam de testemunha (para nós mesmos? para as novas gerações de cineastas videomakers trabalhadores da expressão audiovisual?) de que, afinal, alguma existência o cinema gaúcho chegou a ter.

Mas se, por outro lado, estivermos ainda ativos e inquietos construindo o espaço das imagens do terceiro milênio (certamente, neste caso, acompanhados/combatidos pelos mais novos), aí então estes filmes serão retratos vivos do momento em que os pêssegos começaram a amadurecer.

(c) Giba Assis Brasil 1993
originalmente publicado em NÓS OS GAÚCHOS 2 - Editora da Universidade/UFRGS, Porto Alegre, 1994